Pode não ser imediatamente evidente, mas o apagão desta segunda-feira não deixa dúvidas: a mobilidade urbana depende cada vez mais da electricidade. Do metro aos comboios, passando pelos eléctricos, pelas bicicletas GIRA e até por alguns barcos e autocarros, muitos transportes públicos não funcionam sem energia eléctrica. E com a electrificação crescente das frotas, essa dependência tende apenas a aumentar.

Metro de Lisboa e Metro Sul do Tejo sem energia. Fertagus sem conseguir circular, juntando-se aos comboios da CP que já não estavam a circular devido à greve. Bicicletas GIRA em baixo. Eléctricos da Carris imobilizados onde o apagão os deixou. Barcos eléctricos do Seixal parados. O apagão desta segunda-feira, 28 de Abril, deixou a mobilidade da área metropolitana de Lisboa em suspenso. Só os autocarros e barcos – pelo menos, os não eléctricos – davam garantias de assegurar o transporte de passageiros.
Foi por volta das 11h30 que toda a área metropolitana de Lisboa ficou sem luz. Assim, de repente. O apagão – que depressa se percebeu que não era local nem nacional, mas ibérico (fruto da nossa relação energética com Espanha) – imobilizou as composições do Metro de Lisboa, do Metro Sul do Tejo e da Fertagus que estavam em circulação. Os passageiros tiveram de ser evacuados, o que no caso do Metro de Lisboa significou fazê-lo pelos túneis e estações mais próximas.
A situação poderia ter sido mais problemática, não fosse a existência de uma greve da CP que tinha paralizado desde o início do dia praticamente todos os comboios do país. Linhas de Sintra, Azambuja, Sado e Cascais estavam vazias, pelo que ninguém ficou dentro dos comboios suburbanos.

Pelo meio-dia, as estações do Metro de Lisboa já estavam encerradas. Na da Baixa-Chiado, por exemplo, não se adivinhava que a situação ainda iria demorar. À porta, segurança e funcionários falavam com os passageiros, alguns deles surpreendidos com a situação por não estarem ocorrentes ainda do apagão em curso. As notícias foram correndo ao longo do dia, aos poucos e de forma incompleta, a par de uma rede móvel que ia dando sinais de fraqueza. Falava-se de um ataque que poderia estar a afectar toda a União Europeia e que teria sido ordenado pelos “russos”, mas ninguém conseguia ao certo confirmar ou desmentir porque o acesso à informação era escasso. Mas com a internet móvel a funcionar devagar, devagarinho, restava apenas o rádio FM como meio de informação – um recurso acessível a quem se desloca de carro, mas fora do alcance de quem estava a pé ou de transportes públicos.
Os boatos foram correndo, sem que impactassem muito a vida da cidade. Pelas ruas de Lisboa, dezenas de eléctricos ficaram parados onde o apagão os deixou. Sem energia, não conseguiam sair do sítio. À espera do verde de semáforos, a apanhar passageiros numa paragem ou simplesmente no meio do caminho… Era como se o tempo tivesse parado de repente ou tivesse havido uma evacuação repentina da cidade. Os guarda-freios, nome pelo qual são conhecidas as pessoas responsáveis por conduzir os eléctricos, aguardavam pacientemente no interior ou exterior dos veículos. Também sem compreender muito bem o que estava a passar e quanto tempo iria durar.
Não havia nada a fazer. Os eléctricos não conseguiam sair do sítio, só com reboque. Houve guarda-freios que acabaram por se juntar num mesmo veículo, fazendo da companhia uma forma de passar o tempo. Na zona do Cais do Sodré, os autocarros iam tentando contornar os eléctricos parados, numa ginástica difícil em que os motoristas tinham também de olhar para peões a atravessar a estrada ou carros a virem de diferentes direcções – não havia semáforos e, por isso, imperavam as regras base de cedência de passagem. A tarefas destes condutores profissionais não era a mais fácil.




Nas paragens, inúmeros passageiros aguardavam pelos autocarros – as filas iam sendo cada vez maiores, à medida que mais e mais pessoas se iam apercebendo de que o Metro não estava operacional. Para alguns passageiros, o autocarro já era a primeira opção, mas viam-se agora aflictos por não terem espaço, tal era a procura por quem ficou sem o seu modo de transporte habitual. Estamos ainda na hora de almoço e muitos trabalhadores foram mandados para casa pelos seus patrões – empresas e lojas fecharam porque sem luz não conseguiam laborar –, o que sobrecarregou ainda mais o sistema de transportes públicos, já bastante pressionado.
Os autocarros estavam preparados para cumprir os horários habituais de meio do dia – ou seja, a frota e os motoristas disponíveis não eram os de uma hora de ponta. Ainda assim, entre as 12 e as 14 horas, mais ou menos, formou-se uma espécie de hora de ponta inesperada – ou, melhor, forçada.
Os barcos funcionavam novamente, excepto os do Seixal. Nesta ligação, a frota é composta por uma embarcação a diesel e três eléctricas; os barcos eléctricos são carregados nos terminais (a cada duas viagens) e foram imediatamente encostados. Assim, a ligação entre Lisboa e o Seixal ficou, durante algum tempo, assegurada por apenas um barco, que foi colocado em regime “vai-e-vém”, deixando de fazer os horários tabelados; mais tarde, a TTSL adicionou um barco suplente ao serviço. Ainda assim, como cada ida e volta demora 40 minutos, esse era também o intervalo de espera. O segurança à porta do cais de embarque para o Seixal, no terminal do Cais do Sodré, ia respondendo pacientemente às muitas pessoas que lhe perguntavam se havia barcos. Os ecrãs estavam desligados e sem informação dos horários; não havendo qualquer horário afixado e estando a rede móvel limitada, não havia como saber as horas de partida, a não ser puxando pela memória.

Mais sorte tiveram os passageiros das restantes ligações fluviais, que funcionavam com a frota completa e dentro dos horários habituais. Os cacilheiros estavam a sair do Cais do Sodré para Cacilhas com mais pessoas que o habitual. A porta de embarque tem de ser aberta à mão porque não há electricidade para o mecanismo manual. Já no barco, as conversas a bordo iam sendo à volta do apagão e do regresso a casa antecipado – estávamos todos no mesmo barco, literalmente. Ora se tentava poupar bateria no telemóvel, activando o modo avião, ora se usava os resquícios de rede móvel para procurar a melhor forma de chegar a casa a partir de Cacilhas. É que, para alguns, a oferta de autocarros não era algo que conhecessem porque usam habitualmente o metro ou o comboio, mas podiam contar com a ajuda de outros passageiros, que davam indicações sobre que carreiras apanhar.


Em Cacilhas, o Metro Sul do Tejo estava parado. Ao lado, as paragens de autocarro a abarrotar. Os autocarros eram poucos, pois não estava prevista tal procura. Nem veículos, nem motoristas. O cenário manteve-se ordeiro: muitas pessoas não conseguiram entrar nos autocarros e tiveram de ficar à espera dos seguintes, que viriam sabe-se quando. Parece certo: não existe capacidade de os operadores responderem em tempo recorde a um pico de procura inesperado, ignorando os horários previstos e disponibilizando o maior número de veículos e de condutores possível. “O pessoal de Lisboa está na boa. Pode chegar a casa nem que seja a pé. Para nós aqui deste lado [Margem Sul] é mais complicado”, desabafa uma passageira.
Não está totalmente enganada. De volta a Lisboa, os autocarros continuam à pinha, sobrelotados. As filas nas paragens continuam a aumentar. Os eléctricos continuam parados no mesmo sítio. Os autocarros eléctricos circulam, mas parecem ser menos – dizem-nos que a sua autonomia dá para cerca de 200 km, o que corresponde a um dia de trabalho e que há capacidade nas estações para carregamento com geradores. A Carris não é a única a ter uma frota de autocarros eléctricos, também três dos quatro operadores da Carris Metropolitana, o que pode ter complicado a operação – ou, melhor, complicaria se o apagão durasse mais dias.

A mobilidade na área metropolitana de Lisboa está dependente da energia eléctrica. Cada vez mais. E, perante um apagão geral e prolongado como o de ontem, o sistema, que já é complexo por natureza, perde algumas das suas peças essenciais e deixa de funcionar convenientemente. Os modos metropolitano e ferroviário são dos primeiros a ficar inoperacionais perante um apagão. A frota de autocarros caminha para uma crescente e talvez total electrificação, como também a dos barcos. Aliás, quando os 10 barcos eléctricos estiverem operacionais no Tejo, apenas duas das cinco linhas fluviais vão continuar a funcionar a diesel: a ligação Belém-Trafaria e a ligação Terreiro do Paço-Barreiro. As novas embarcações vão substituir os cacilheiros e restantes navios, como já tem acontecido na ligação do Seixal.
Vale a pena notar que se tivéssemos já concluída a electrificação da frota fluvial, com os tais 10 novos barcos, seria muito difícil o atravessamento do Tejo e o regresso a casa das pessoas que tinham vindo para Lisboa trabalhar: só haveria barcos para a Trafaria e para o Barreiro, e o “comboio da ponte” também não estaria a funcionar. Pelas estradas, haveria soluções – não só de carro, como de autocarro (há algumas carreiras a atravessar ambas as pontes) – mas sujeitas à limitada capacidade das infraestruturas.

Em Lisboa, as bicicletas GIRA estiveram indisponíveis durante todo o período do apagão, uma vez que estão directamente dependentes da rede eléctrica e também de um sistema informático. Já as trotinetas de operadores como a Lime, a Bolt e a Bird puderam ser usadas enquanto houvesse acesso à internet pelos telemóveis – no entanto, há a registar dificuldades no término de viagens, uma vez que é exigida uma fotografia que prove o bom estacionamento, o que ainda pesa alguns megas, e não existe métodos de redundância. Sem GIRAs e com o serviço de trotinetas limitado, para vários a bicicleta própria, com ou sem bateria, acabou por ser a melhor alternativa de mobilidade. Nas estradas, há registo de trânsito intenso e complicado devido à ausência de semáforos, com a polícia a dar uma ajuda em algumas das principais intersecções.
Nesta terça-feira de manhã, 29 de Abril, os transportes públicos voltaram progressivamente à normalidade. O Metro de Lisboa demorou mais tempo e só teve a circulação retomada em toda a rede às 8h36, ainda que com alguns constrangimentos nos acessos mecânicos. Também a GIRA tinha ainda constrangimentos em 19 das 192 estações que constituem a rede.

Deixa-se como apontamento final: também os parquímetros, as cancelas dos parques de estacionamento, os elevadores e ascensores públicos da cidade – que ora ajudam a vencer colinas, ora a transpor linhas de comboio –, os serviços de TVDE ou os pilaretes automáticos de controlo de acesso a bairros históricos e zonas pedonais ficaram inoperacionais com o apagão desta segunda-feira, evidenciando ainda mais a dependência eléctrica não só da nossa mobilidade, como de todo o sistema urbano.