4 reasons why migrants are not to blame for the housing crisis

Opinion.

We cannot allow them to scapegoat us for a problem whose cause we know: real estate speculation.

O bairro da Mouraria a partir da Praรงa do Martim Moniz (fotografia LPP)

โ€œA culpa รฉ dos imigrantes, que vรชm para cรก e nos ficam com as casas!โ€ 

โ€œSe nรฃo fossem os estrangeiros a viver amontoados em casas, as rendas nรฃo estavam tรฃo caras!โ€

Quantas vezes, nas ruas, nas redes sociais, e da boca de cada vez mais polรญticos, nรฃo ouvimos esta ladainha? Falso e perigoso, este discurso tem-se tornado cada vez mais instrumentalizado por forรงas que cultivam o รณdio e o ressentimento, com consequรชncias ร s vezes trรกgicas.

Para as desmontar, reunimos quatro motivos que explicam porque culpar pessoas migrantes nรฃo รฉ a soluรงรฃo para a crise da habitaรงรฃo, mas sim parte do problema.ย ย 

1. Pessoas migrantes sรฃo vรญtimas do sistema e nรฃo culpadas

As pessoas migrantes sรฃo expostas aos mesmos problemas que a restante populaรงรฃo โ€“ sรฃo exploradas nos seus trabalhos, recebem baixos salรกrios e, incapazes de fazer face ร s rendas atuais, veem-se subjugadas a condiรงรตes miserรกveis e indignas de habitaรงรฃo. Tambรฉm muitas pessoas nacionais continuam (ou voltaram) a morar na casa de familiares, por nรฃo conseguirem suportar o peso das rendas; muitas outras viram-se obrigadas a viver na rua ou em centros de acolhimento.ย 

ร€ crise habitacional que existe, soma-se a existรชncia de pensamentos xenรณfobos e racistas, que dificultam ainda mais o acesso de pessoas migrantes a uma habitaรงรฃo digna. Por exemplo, segundo o Relatรณrio de Diagnรณstico de Imigraรงรฃo e Discriminaรงรฃo publicado pela Casa do Brasil de Lisboa no final de 2023 “รฉ no arrendamento (59,6%) que as pessoas imigrantes inquiridas mais percebem a discriminaรงรฃo, sendo a xenofobia (75,2%) a principal forma de discriminaรงรฃo percepcionada”. Muitos dos testemunhos relatam senhorios que negam a existรชncia de quartos ou apartamentos livres quando os requerentes sรฃo vistos como imigrantes; jรก quando o mesmo pedido รฉ feito por pessoas lidas como nacionais ou brancas, a situaรงรฃo muda e afinal as casas estรฃo disponรญveis.

2. Se existe impacto na habitaรงรฃo por parte de estrangeiros, esse impacto nรฃo รฉ o de migrantes com menos capacidade econรณmica

According to Relatรณrio de Imigraรงรฃo, Fronteiras e Asilo, publicado pelo Serviรงo de Estrangeiros e Fronteiras em 2022, existiam em Portugal 781 915 cidadรฃos estrangeiros titulares de autorizaรงรฃo de residรชncia. A maior comunidade de imigrantes a viver no paรญs vem do Brasil (30%), seguida do Reino Unido (6%). No total, Europa e Amรฉrica sรฃo os continentes de onde recebemos mais imigrantes (com cerca de 33-34% do total de imigrantes cada).ย 

Qual o peso efetivo das pessoas imigrantes na habitaรงรฃo em Portugal? Segundo uma notรญcia do portal Idealista, “com a queda da compra de casa devido ao baixo poder de compra e os altos juros no crรฉdito habitaรงรฃo (-21,9% de vendas em termos homรณlogos), as famรญlias residentes em Portugal tรชm perdido quota de mercado para os estrangeiros.” No caso particular da รกrea metropolitana de Lisboa (amL), a diferenรงa entre o preรงo mediano de casas compradas por estrangeiros e por pessoas residentes na amL superou os 70%.ย 

On outro artigo do mesmo portal, รฉ indicado que o impacto dos estrangeiros no preรงo das casas รฉ limitado; porรฉm, admite-se que “nos รบltimos anos, observou-se um crescimento significativo do investimento em imobiliรกrio por parte dos estrangeiros: passou de 4% do PIB em 2008 para 13% do PIB em 2022”. Estes investimentos vรชm maioritariamente de quem tem direitos comunitรกrios, ou seja, cidadania europeia. O restante vem dos chamados vistos gold. Com a criaรงรฃo de outras formas de estadia no nosso paรญs, como os vistos para nรณmadas digitais, facilitou-se ainda mais a permanรชncia de pessoas com capacidade financeira alta e que suplanta o poder de compra de quem trabalha em Portugal.

Jรก em 2017, e relativamente ao perรญodo de crise 2007โ€“2011, um artigo lanรงado pelo Banco de Portugal adiantava que “o crescimento do investimento por estrangeiros em habitaรงรฃo ao longo desse perรญodo pode tambรฉm ter contribuรญdo para (…) evitar uma maior descida dos preรงos da habitaรงรฃo”. Quando sabemos que o investimento estrangeiro em imobiliรกrio desde entรฃo mais do que triplicou, nรฃo รฉ um salto assumir que hรก, de facto, estrangeiros a influenciar o preรงo da habitaรงรฃo. Mas estรฃo longe de ser os imigrantes que vivem em condiรงรตes de sobrelotaรงรฃo. Sรฃo antes daqueles que adquirem propriedade a valores 70% mais elevados que a capacidade financeira de nacionais.ย 

A que estrangeiros se referem os crรญticos da imigraรงรฃo, que nela colocam as culpas da crise da habitaรงรฃo? Como referimos, hรก efetivamente imigrantes que conseguem habitaรงรฃo a preรงos que nรณs nรฃo conseguimos pagar: pessoas com muito maior poder de compra, que entram no mercado habitacional portuguรชs atravรฉs dos vistos para nรณmadas digitais, os vistos gold ou com estatuto de residentes nรฃo habituais. Porรฉm, quem usa discursos xenรณfobos para perpetuar a ideia de competiรงรฃo e falta de casas, geralmente refere-se a imigrantes pobres e/ou racializados: do Sudoeste Asiรกtico, Mรฉdio Oriente, รfrica ou Amรฉrica do Sul. Pessoas que muitas vezes nรฃo tรชm alternativa a viver em espaรงos pequenos e em sobrelotaรงรฃo.

Estas pessoas sรฃo obrigadas a viver em sobrelotaรงรฃo porque as casas estรฃo insuportavelmente caras: sofrem das consequรชncias sem constituir as causas. Viver em sobrelotaรงรฃo รฉ uma estratรฉgia de sobrevivรชncia de quem nรฃo tem 1 000 โ‚ฌ para arrendar um T1, ou 500 โ‚ฌ por um quarto em Lisboa, e cuja รบnica hipรณtese รฉ partilhar espaรงo e renda com muita gente. Estas condiรงรตes nรฃo sรฃo condiรงรตes dignas de habitabilidade que devemos aceitar que existam. A sobrelotaรงรฃo รฉ um dos indicadores de pobreza habitacional, inclusivamente usado pelo Banco de Portugal.

Os culpados dos nossos problemas habitacionais nรฃo sรฃo grupos marginalizados, sem alternativa ou capacidade de defesa, que vivem em condiรงรตes indignas apenas para ter um tecto. Sรฃo sim os senhorios e as polรญticas predatรณrias que priorizam os interesses capitalistas em vez de garantir condiรงรตes mรญnimas de habitabilidade para qualquer pessoa, nacional ou migrante.ย 

ร‰ preciso tambรฉm notar que os preรงos da habitaรงรฃo nunca estiveram tรฃo altos, mesmo que Lisboa esteja, hรก dรฉcadas, a perder habitantes e seja a cidade europeia com mais casas por residente. Ou seja, nรณs, tanto migrantes como nacionais, estamos a viver mal, a ser explorados e expulsos da cidade, embora haja casas de sobra para toda a gente. Nรฃo existe โ€œexcesso de procuraโ€ por migrantes que querem de facto cรก ficar a viver e trabalhar. O que hรก รฉ excesso de investidores imobiliรกrios e consumidores que nรฃo vรชm para ficar, para trabalhar e contribuir, e que usam as casas para especular ou turistificar.

Praรงa do Martim Moniz, Lisboa (fotografia LPP)

3. Os imigrantes contribuem, e muito, para a riqueza cultural e econรณmica do paรญs

Os ataques que sรฃo dirigidos ร s populaรงรตes migrantes nรฃo sรณ nรฃo tรชm em consideraรงรฃo que viver em sobrelotaรงรฃo nรฃo รฉ uma ameaรงa, como nรฃo reconhecem que a presenรงa destas pessoas no nosso paรญs contribui fortemente para o nosso tecido cultural e social. 

Apesar de muitos deles terem vรญnculos laborais precรกrios, ou estarem em situaรงรฃo de irregularidade ou em limbos burocrรกticos (o que diz mais sobre os โ€˜patrรตesโ€™ e o nosso sistema de acolhimento do que sobre os trabalhadores), pagam impostos e todos os anos the contribuiรงรตes de pessoas imigrantes para a seguranรงa social batem novos recordes. Sabemos tambรฉm que estas pessoas contribuem bem mais do que recebem e tรชm uma capacidade contributiva maior do que os cidadรฃos nacionais.

Alรฉm do mais, contribuem tambรฉm para a nossa cultura com mรบsica, danรงa, comida, conhecimento, modaโ€ฆ

4. A migraรงรฃo faz parte da humanidade e sempre fez parte da realidade portuguesa

A movimentaรงรฃo geogrรกfica e a busca de melhores condiรงรตes de vida fazem parte da vida humana. E os portugueses nรฃo sรฃo exceรงรฃo. Quer seja pela fuga a condiรงรตes de vida difรญceis, para procurar seguranรงa ou liberdade, para fugir ร  guerra ou procurar melhores condiรงรตes de trabalho, ao longo dos anos os portugueses tambรฉm emigraram - e continuam a emigrar. ร‰ normal que haja outras pessoas que procurem o nosso paรญs com os mesmos objetivos com que nรณs procuramos outros paรญses, ou mesmo outras cidades dentro do nosso paรญs. ร‰ natural procurar outros lugares em que pensamos vir a ser mais felizes ou conseguir viver melhor.

Se pensarmos no caso portuguรชs, quando no sรฉculo passado milhares de pessoas emigraram para Franรงa, Luxemburgo, Suรญรงa, as suas condiรงรตes ร  chegada nรฃo eram dignas e muitas pessoas se subjugaram a situaรงรตes em que vemos (e nรฃo รฉ de agora) pessoas a viver no nosso paรญs. E nรฃo foram essas condiรงรตes que nos fizeram desistir de emigrar, pois sabรญamos que cรก era pior. 

Apesar de, felizmente, a situaรงรฃo nacional ter mudado, ainda hรก variados motivos que fazem com que Portugal seja o paรญs da Europa com maior taxa de emigraรงรฃo (15% da populaรงรฃo nacional) e o oitavo a nรญvel mundial. 

Nomear as causas, resolver os problemas

Criar bodes expiatรณrios รฉ รบtil para os poderosos: serve a velha mรกxima do dividir para conquistar. E as crises econรณmicas sรฃo tempos de fomento de divisรตes. Assim, tornam-se em crises sociais, onde os que tรชm pouco competem entre si pelas migalhas daquilo que deveria ser seu por direito. As fรกbulas multiplicam-se: um grupo รฉtnico que supostamente tem primazia na habitaรงรฃo social, estrangeiros que supostamente entopem os serviรงos ou โ€˜roubamโ€™ casas e trabalhos.

Na verdade, os imigrantes pobres sรฃo parte da populaรงรฃo sem-abrigo ou vivem em casas sobrelotadas ou mesmo insalubres que mal conseguem pagar. Como os nacionais, integram a forรงa de trabalho, descontam para a Seguranรงa Social e batalham para pagar as contas ao fim do mรชs e, especialmente, rendas incomportรกveis. Culpar um grupo marginalizado, que nรฃo tem poder no mercado, pela crise na habitaรงรฃo, nรฃo sรณ รฉ desonesto como tambรฉm tem outro motivo: catapultar a influรชncia que partidos e forรงas extremistas tรชm, infiltrando pensamentos racistas e xenรณfobos na populaรงรฃo.

Quem aumenta os preรงos das rendas sรฃo os senhorios. E aumentam porque estรฃo em total controlo da situaรงรฃo: eles รฉ que tรชm as casas que nรณs precisamos. Associaรงรตes como a ALEP (Associaรงรฃo do Alojamento Local em Portugal) ou a CPP (Confederaรงรฃo Portuguesa de Proprietรกrios) apenas servem para criar espaรงos em que estes proprietรกrios se reรบnem e comunicam entre si os preรงos praticados, articulam os seus movimentos e fazem pressรฃo polรญtica sobre as instituiรงรตes pรบblicas. Assim, mantรชm o poder que tรชm. E รฉ por isso tambรฉm que partidos de direita nรฃo sรณ apoiam associaรงรตes como estas, como papagueiam cada vez mais os seus argumentos. Nada mais รฉ que uma forma de manter o capital sempre nas mesmas mรฃos, e o poder nos mesmo grupos.

Nรฃo podemos permitir que nos apresentem bodes expiatรณrios para um problema cuja causa conhecemos: a especulaรงรฃo imobiliรกria. Sabemos o que รฉ preciso mudar. E sabemos o que queremos: que se cumpra o direito ร  habitaรงรฃo para todos.

Gostaste deste artigo? Foi-te รบtil de alguma forma?

Considera fazer-nos um donativo pontual.

IBAN: PT50 0010 0000 5341 9550 0011 3

MB Way: 933 140 217 (indicar “LPP”)

Ou clica aqui.

Podes escrever-nos para mail@lisboaparapessoas.pt.

PUB