O número de pessoas em situação de sem abrigo não tem parado de aumentar na cidade de Lisboa. O que pode ser feito para reverter esta tendência? Paulo Santos, coordenador da equipa da Câmara de Lisboa dedicada a esta problemática complexa, explica em entrevista ao LPP as medidas implementadas pela autarquia.

No final de 2022, existiam 3138 pessoas em situação de sem abrigo na cidade de Lisboa, sendo que 394 viviam na rua (condição de sem tecto) e 2744 em alojamentos temporários (condição de sem casa). É na capital que o fenómeno das pessoas em situação de sem abrigo mais se sente, mas esta problemática não pode ser vista de forma isolada. Ela mexe com outros temas como a imigração, a dependência de drogas ou a violência doméstica. As respostas que a Câmara de Lisboa dá ao assunto são várias. E a autarquia quer continuar a trabalhar para que sejam mais diversas e específicas para cada problema e para cada pessoa. É preciso também actuar na prevenção a montante.
Numa entrevista ao coordenador do Plano Municipal para Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, que acabou por ser revisto, procuramos respostas para as questões que as pessoas mais fazem e entender melhor esta problemática e as respostas que são feitas. Paulo Santos, além de coordenador deste plano, dirige a Equipa de Projecto do Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem Abrigo (EPPMPSSA). Uma equipa específica da Câmara de Lisboa para atacar esta problemática e que não está trabalha sozinha, mas numa rede, da qual faz parte também a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Nota: esta entrevista faz parte de uma grande reportagem que pode ser lida aqui.
Começo com uma provocação, uma pergunta que muitas pessoas fazem. Porque é que a Câmara de Lisboa não consegue acabar com pessoas a viver na rua de um dia para o outro?
Isso é uma pergunta que nós estamos a fazer, constantemente. No meu entender técnico, a resposta a esta situação passa muito pela prevenção que está a montante. Costumo dar um exemplo prático, que qualquer pessoa consegue entender: em 2019, quando o Plano Municipal anterior foi aprovado, tínhamos 400 respostas financiadas pelo Município – e vou só falar apenas das respostas financiadas pelo Município e não também as da Santa Casa da Misericórdia e as da Segurança Social –; e vamos supor que, nesse mesmo ano, tínhamos 400 pessoas na rua. Em 2023, neste novo Plano Municipal, temos quase 1100 respostas financiadas pelo Município e continuamos a ter 400 pessoas na rua. Ou seja, não é pelo aumento do número de respostas, que quase que triplicou, que o problema se resolveu.
Dois terços das respostas de suporte habitacional do país estão concentradas na cidade de Lisboa. Há capacidade de resposta. Mas as políticas de prevenção públicas a montante são muito importantes, tendo em conta um cumulativo de problemáticas: a violência doméstica, a saúde mental, as dependências, os divórcios, os ex-presidiários, a imigração… Se uma política de protecção social falhar, o que vai acontecer é que essa pessoa entra dentro do circuito, e depois é muito mais difícil sair. Aquilo que o terreno nos diz e o que as IPSS com quem nós trabalhamos nos dizem, é que, mesmo havendo capacidade de resposta na cidade, é que cada vez mais há pessoas com menos tempo de situação de sem abrigo na rua, e isso diz-nos objectivamente que alguma coisa a montante está a falhar.
A tal prevenção.
Por exemplo, Lisboa tem 400 vagas de housing first contratualizadas. Comparativamente a grandes capitais europeias, nós estamos no top quase cinco de quantidade de respostas muito específicas. Só, os países nórdicos, têm aqui volume maior. Portanto, nós, resposta, temos. Mas se não haver a montante políticas públicas sérias que consigam travar o facto de novas pessoas ficarem nesta condição, por muita capacidade de resposta que tenhamos, novas pessoas irão chegar. E quando eu falo políticas públicas falo de Administração central, Administração local, IPSS, e a própria população. O cidadão comum também tem papel aqui importante.
Neste novo Plano Municipal, a Câmara reforça este eixo da prevenção. O que é que o Município quer e pode fazer para travar este flagelo?
Esta unidade orgânica que eu dirijo – a Equipa de Missão do Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem Abrigo – trabalha directamente sobre o fenómeno das pessoas em situação de sem abrigo. E nós aqui no Plano, trabalhamos a questão da prevenção na perspectiva de que, se a pessoa se autonomizou, fazemos todo o possível para que a pessoa não retorne à situação. Depois, há outra prevenção a montante, que é evitar que a pessoa chegue a esta condição. Isso é a Câmara como um todo a fazer, não é o meu departamento que gere esse tipo de apoios porque não são pessoas ainda na situação de sem abrigo. Mas passa, por exemplo, por políticas públicas de habitação.
Toda a habitação acessível que a Câmara conseguir construir está de alguma forma a fazer com que mais pessoas tenham acesso à habitação, portanto, pode contribuir para a redução do fenómeno da pessoa em situação de sem abrigo. Por exemplo, há também apoios como o Fundo de Emergência Social, que é uma verba que a Câmara transfere para as Juntas de Freguesia para apoiar aquelas famílias… por exemplo, um casal em que um membro perde o emprego; este Fundo dá uma bolsa de oxigénio para que essa pessoa rapidamente recupere o seu emprego ou o outro membro não o perca também, ou que o casal continue a conseguir pagar a renda da casa ou a conta da electricidade. Outro exemplo: cada vez que a Câmara constrói uma creche, e com esta política de as pessoas não pagarem uma creche, está a libertar uma família de pagar 300 ou 400 euros, portanto é mais dinheiro que fica retido para dentro da família. Portanto, há várias políticas públicas a montante que a Câmara já faz e, claro, pode fazer mais. Muitas políticas, locais ou nacionais, que podem ser colocadas no terreno para esta prevenção a montante.

A Câmara abriu recentemente, no Beato, um alojamento para pessoas que chegaram à situação de sem-abrigo há pouco tempo. Também se enquadra neste eixo da prevenção, não tanto a montante mas ainda numa fase inicial. Certo?
Sim, esses alojamentos têm uma especificidade muito própria. A Unidade que foi inaugurada no Beato destina-se – e por isso é que ela está dentro do Plano Municipal – destina-se a pessoas que estão efetivamente em situação de sem abrigo, mas há menos de mês. Ou seja, aquelas pessoas a que algo lhes correu mal. Em algum momento a tal de protecção social de que falei falhou e a pessoa entrou na condição de sem abrigo. E não havendo respostas desta natureza, o que ia acontecer é que esta pessoa ou vai para um quarto ou vai para um Centro de Alojamento de Emergência da cidade de Lisboa, mais ou menos comum, tipificado. Esta resposta que foi inaugurada no Beato, só tendo pessoas que estão a menos do mês da rua, permite que estas pessoas não entrem no circuito comum e tenham uma resposta específica, especial, com acompanhamento técnico especializado e consigam rapidamente voltar a sair desta condição. O objectivo é fazer com que aquela curva rapidamente ganhe uma ascendência e a pessoa saia da condição de ser abrigo, dando esse acompanhamento especializado e articulado com outras entidades públicas, como a Santa Casa ou a Segurança Social, a Saúde… tendo em conta a especificidade e o problema de cada uma das pessoas. E esta rede institucional tem que funcionar para perceber o que é que aconteceu na vida daquela pessoa, rapidamente atacar esse eixo, essa problemática.
E também há uma Unidade em Marvila, não é?
Sim, a Unidade Marvila é pouco diferente. Também trabalha muito a questão da autonomia, de as pessoas saírem também desta condição, mas pode haver pessoas que estão há mais tempo na condição de ser abrigo. O que a Unidade de Marvila trabalha é o eixo da empregabilidade. Acolhe pessoas que estão em situação de sem abrigo – e aqui não interessa o tempo – mas que têm emprego ou então formação com algum tipo de apoio financeiro. Para quê? Este fenómeno de pessoas a ficar nesta condição de sem abrigo com pouco tempo de rua são pessoas que, se calhar, tinham um emprego estável e que, de repente, por divórcio – dando um exemplo comum – perderam a casa. E, por isso, ficaram na condição de rua, mas mantiveram o emprego. Estas pessoas têm que ter uma solução de alojamento específica, porque, se não a tiverem, estando na rua e não tendo onde tomar banho ou não tendo um bom sítio onde possam descansar, o que vai acontecer dali uns meses vão perder o emprego. O apoio que a Unidade Marvilla tenta dar é precisamente isso.
Se alguém tem emprego, então fica ali alojado ali, está seis meses naquele local e não se tem que preocupar com essa parte, da estabilidade habitacional. Não se tem de preocupar com espaço para dormir, tomar refeições… para a pessoa se poder focar em não perder o emprego, e depois, a partir daí, seguir o seu projeto de vida e autonomizar-se. A rotina diária – o dormir bem, o tomar o pequeno-almoço… – é muito importante para garantir a estabilidade destas pessoas e trabalhar muito mais rapidamente o seu processo de autonomia. Este projecto também tem uma particularidade interessante: se uma pessoa, por exemplo, está em contexto de emprego e tiver um ordenado mínimo ou o que seja, contribui com 30% desse valor. É criado uma bolsa, e quando a pessoa sai, essa bolsa é-lhe devolvida na totalidade, até para funcionar como uma almofada financeira no processo de transição.
Estas respostas são novas?
Especificamente, não. Vou-lhe ser sincero, quase todos os centros de alojamento que existem na cidade já trabalham a área da empregabilidade, mas não estão focados só nesta área. Vou dar o exemplo de uma resposta que teve uma transformação ao longo do tempo e que se tem focado muito na área de empregabilidade e tinha passado despercebido: o Centro de Alojamento de Xabregas, ali no Beato e que é gerido pelo Exército de Salvação. É centro que tem anos e funcionava, e funciona ainda, apenas mas com alojamento noturno. E o espaço durante o dia não estava a ser potenciado. Aquilo que a Câmara criou dentro desse espaço, durante o dia foi uma COID, isto é, um Centro de Ocupação e Inserção Diurna. As pessoas, durante o dia, estão lá, neste centro de ocupação, e estão a trabalhar toda a área de empregabilidade, para potenciar rapidamente a inserção no mercado de trabalho. Isto num centro que já existe dia. Isto são algumas alterações que vão surgindo dentro de centros mais “tradicionais” que também trabalham a área de empregabilidade mas não só. É um espaço que aconselho. Todas as quintas-feiras, abre portas à comunidade, em que as pessoas, qualquer cidadão, pode dirigir-se ao espaço e fazer a sua refeição lá. E a refeição é preparada por pessoas que estão lá no COID. E não há um preço, aquilo é uma doação, a pessoa paga aquilo que sente que pode dar, mas o importante é que se está a trabalhar ali num contexto de empregabilidade com as pessoas que lá estão a servir à mesa, a fazer a comida.

A Câmara não funciona sozinha nestas respostas. Tem uma rede.
Há duas estruturas na cidade de Lisboa, em que a Câmara está diretamente envolvida. Depois, também há a Santa Casa da Misericórdia, que tem aqui papel importantíssimo e que é quem tem a responsabilidade da acção social na cidade de Lisboa. Mas no que diz respeito à Câmara, em 2020, formalmente criou uma equipa de projecto, esta, para se focar objectivamente neste problema, neste fenómeno, ou seja, arranjar uma solução consistente e articulada.
Mas já havia uma equipa antes, ou não?
Não. Esta área das pessoas em situação de sem-abrigo estava dentro de um departamento que tinha outras 17 áreas de trabalho. Estava no departamento dos direitos sociais que tinha a questão das dependências, do envelhecimento, da família, da infância, da migração, da interculturalidade, do voluntariado… era um departamento com 17 áreas. Mas, uma vez que o fenómeno na cidade de Lisboa tem vindo aumentar e tem ganho uma expressão bastante mais relevante, aquilo que a Câmara decidiu foi autonomizar numa estrutura orgânica da Câmara esta área de trabalho, com um plano e um orçamento específico. A Câmara, como é óbvio, não trabalha sozinha e, dentro da autarquia, financiamos 1100 vagas. E a Câmara não tem os recursos humanos nessas 1100 vagas, aquilo que temos é contratos com o IPSS que gerem este tipo de projectos. Aquilo que nós fazemos é acompanhamento muito próximo dos projetos do terreno.
Por exemplo, a Unidade de Prevenção do Beato é a Crescer que o está objectivamente a gerir, em articulação próxima com a nossa equipa. Com as equipas de rua, que estão no terreno, também é um contrato com a Câmara. Respostas de alojamento, de empregabilidade, respostas direcionadas mais para alimentação… há uma série de áreas que estão financiadas sobre alçada do Plano Municipal e que obriga, como é óbvio, a uma articulação entre as várias entidades. Paralelamente a isto, existe o NPISA, que é o Núcleo de Planeamento e Intervenção da Pessoa em Situação de Sem-Abrigo. O NPISA é uma figura nacional que deriva da rede social de Lisboa. Todos os concelhos que têm um fenómeno relativamente grande podem se constituir como NPISA. E quem é que faz parte do NPISA? Todas as entidades que directa ou indiretamente trabalham nesta área.
O NPISA Lisboa tem 33 entidades associadas. E há entidades que têm contratos com a Câmara no âmbito do Plano Municipal, há outras que não. A revista Cais faz parte do NPISA mas não tem protocolo associado. O NPISA é uma plataforma de entendimento entre todas as entidades que trabalham nesta área, directa ou indirectamente, e que, no fundo, definem as estratégias e as prioridades para a cidade nesta área. O NPISA tem vários grupos de trabalho. Por exemplo, tem o grupo de trabalho do alojamento, em que todas as entidades que gerem respostas de alojamento se sentam à mesa e discutem aquilo que deve ser o futuro das respostas de alojamento. Vou dar outro exemplo muito prático do que é trabalho de articulação entre entidades no âmbito do NPISA: temos entidades na cidade de Lisboa, várias, que têm diferentes focos de actuação. Umas mais especializadas na saúde, outras mais especializadas nas dependências, outras na identidade de género, várias.
E, por exemplo, há uma entidade que diz que precisa de apoio numa área na qual não tem especialização e procura-se nos parceiros do NPISA quem esteja preparado para dar esse apoio. Faz um bocadinho um match entre quem tem necessidade e quem pode dar. Outra área de actuação do NPISA é nas vagas de frio. Quando a Câmara decide, porque as temperaturas baixam, abrir centro de emergência especificamente para proteger as pessoas da vaga de frio, é a rede NPISA que automaticamente se organiza para ver que é que pode fazer o quê. A ARS garante apoio de saúde, as equipas de rua mobilizam-se e discutem os pontos da cidade onde as carrinhas devem passar para transportar as pessoas, a entidade X vai gerir o banco de roupa daquele espaço… Ou seja, no fundo, é trazer para dentro de uma especificidade muito própria o melhor que cada entidade pode trazer. O NPISA funciona desta forma muito orgânica.
E as equipas de rua, vocês também têm equipas de rua, mas também há equipas de rua das várias entidades. Como é que eles se articulam?
Nós temos cinco equipas técnicas de rua financiadas pela Câmara. Uma é a Médicos do Mundo, que cobre todo a cidade especificamente para acompanhar as pessoas nas necessidades médicas. Imaginemos se houver uma pessoa que precisa de penso rápido ou de ligação ao sistema de saúde, a Médicos do Mundo tem essa função. E depois, há aquelas quatro equipas de rua: a AVA – Associação de Vida Autónoma, a Comunidade de Vida e Paz, a Crescer e a Vitae. Cada uma dessas entidades é responsável por fazer o acompanhamento das pessoas que se encontram num território da cidade, definido. Estas equipas estão permanentemente no território, ou seja, não são activadas quando existe uma sinalização. Elas estão permanentemente no território… Com um grande grau de certeza, 90% das pessoas que estão na condição de rua, as equipas de rua já acompanham e conhecem bastante bem a história de vida aquelas pessoas e conseguimos perceber se aquela pessoa está há pouco tempo, se está há muito tempo, se já teve na condição, entretanto autonomizou-se e voltou a ficar, se veio do outro município ou de outro país.
Como as equipas estão permanentemente no terreno, têm um retrato muito fiel daquilo que é a situação actual. E depois trocam informações. Ali estão por fronteiras, mas as pessoas não se regem por fronteiras. Alguém que hoje está ali no Parque das Nações, não quer dizer que no dia seguinte não vá para Belém. E a função da minha equipa é fazer com que esta comunicação entre equipas de rua funcione. E existe flexibilidade porque essas fronteiras, como disse, são só um mapa, não existem na realidade. E o mais importante é que as respostas se adequem à necessidade de cada pessoa e não ao contrário, e a pessoa se adequar à resposta existente. Portanto, este grau de flexibilidade cada vez mais tem que ser trabalhado.
Que tipo de respostas dão na rua, de dia e de noite?
É indiferente de dia ou de noite. Há pessoas que, por exemplo, estão mais disponíveis para falar durante o dia, há outras que estão mais disponíveis para falar durante a noite. Daí estar a dizer já desta questão da flexibilidade. A pessoa em situação de sem abrigo não tem de ter um horário específico para ser acompanhada; as equipas é que têm de se adaptar à condição em que a pessoa está naquele momento. Tudo pode ser tratado em contexto de rua. Porque isto é mesmo caso a caso, se houver uma pessoa que está na rua e perdeu o seu Cartão de Cidadão, por exemplo, é a função desta equipa de rua ajudar e, se for preciso e se a pessoa assim o desejar, ir com essa pessoa ajudar a tratar do Cartão de Cidadão.
Se a pessoa não quer sair da rua mas precisa de roupa porque manifestou essa vontade, então é responsabilidade dessa equipa fazer chegar esse apoio. Se há uma pessoa que diz que o que gostava mesmo era de poder fazer uma refeição sentada à mesa, então é responsabilidade dessa equipa de rua falar com a rede de respostas que já existe e fazer a articulação para que essa pessoa passe a fazer essa refeição, por exemplo, no Refeitório dos Anjos. Se a pessoa não é conhecida por ninguém, é responsabilidade dessa equipa de rua fazer articulação com a Santa Casa para ter atendimento formal e para lhe ser atribuído gestor de caso, que é uma figura de referência a quem aquela pessoa, sempre que precisar de algum tipo de apoio, possa recorrer. Se é uma pessoa que está na rua e tem problema de saúde mental, é responsabilidade dessa equipa de rua articular, neste caso, com a ARS, para ser feita uma avaliação psiquiátrica daquela pessoa e perceber se tem de ser internada em contexto hospitalar, com um mandado de condução.
Portanto, há várias situações e tão diversas…
Não há uma resposta tipificada, porque cada uma das pessoas que está na rua tem uma história de vida, tem contexto próprio e tem a sua problemática, ou problemáticas. E é o papel desta equipa saber chegar a estas pessoas. É o papel destas equipas de rua saber ouvir, dar espaço para a pessoa verbalizar aquilo que tiver que verbalizar. E se não for hoje, daqui 15 dias, daqui um mês, será no tempo em que a pessoa se sentir confortável para o fazer. O papel desta equipa de rua é estar lá nesse momento. Portanto, é um trabalho muito humanizado, de muita resiliência e, como é óbvio, nem tudo corre bem. Há pessoas que de repente estão na rua, depois desaparecem e perde-se o contato. Temos de tudo, infelizmente temos muitas situações complexas na rua. Mas o papel dessas equipas de rua, se pudesse resumir, é estar lá para cada uma das pessoas, quando elas necessitarem.
Mas também tirar as pessoas da rua efectivamente.
Claro, não disse a mais importante. Se houver alguém que estiver na rua e deseje uma resposta de alojamento, é o papel dessa equipa de rua articular-se com as respostas de alojamento para ver qual é a resposta de alojamento mais adequada.
Tem de ser um desejo da pessoa?
Ninguém é retirado da rua à força, isso não é possível. As pessoas estão na rua e nós não podemos pegar em ninguém. Só há um contexto em que isso pode acontecer. O único momento em que há um grau de intervenção condição mais assertivo, mais direcionado, é realmente quando existe mandado de condução. Um mandado de condução para a pessoa ser avaliada no contexto, por exemplo, hospitalar, é por um motivo: é porque a pessoa está a colocar em risco a sua própria vida ou a vida de outro. Então, aí sim, é accionado o mandado de condução e a pessoa depois, por exemplo, no contexto de doença psiquiátrica, tem que ser avaliada no hospital. É o único momento em que isso pode acontecer. Aqui, por exemplo, na Almirante Reis, que é uma avenida mais da cidade de Lisboa que tradicionalmente mais tem pessoas em situação de sem abrigo: em 2023, mais de uma vintena das pessoas que ali estavam foram integradas e as que estão lá, são pessoas que, entretanto, chegaram. As pessoas não têm noção disso, porque vêem sempre pessoas na rua mas podem não ser as mesmas. Há um trabalho invisível das equipas que estão no terreno e que fazem um acompanhamento próximo de integração, mas não controlam as novas que chegam à rua, e que acabam de preocupar os espaços da cidade de Lisboa.
O importante é que, cada vez mais, as respostas se adaptem à condição em que a pessoa está. Daí temos respostas específicas na prevenção, como aquela empregabilidade, como temos respostas em que sabemos que as pessoas vão estar mais tempo. Por exemplo, no Plano vamos ter uma resposta específica para pessoas com mais 65 anos. Em muitos centros de alojamento, temos pessoas com mais 65 anos que são autónomas e que, se calhar, numa primeira leitura, dizemos que essas pessoas deviam ir para uma ERPI, uma Estrutura Residencial para Idosos. Mas as ERPIs muitas vezes têm horários muito rígidos, em que obrigam as pessoas a acordar às X horas, a tomar o pequeno-almoço e que não podem sair. E se uma pessoa tem 70 anos e é autónoma, não faz sentido ir para uma ERPI, mas também, se calhar, não faz sentido estar num centro de alojamento com todas as outras pessoas. Precisam de algum tipo de protecção especial. E o Plano prevê criar uma resposta específica para pessoas em situação de ser em abrigo e com mais 65 anos, que sejam autónomas, que consigam viver no contexto ainda de acompanhamento técnico, mas que vão estar de uma forma no ambiente mais protegido, em que vai até potenciar ainda mais e valorizar a sua autonomia.

Outra resposta específica que também está no Plano é para pessoas com problemas de saúde mental. Se uma pessoa sai do contexto hospitalar com um esquema medicamentoso para tomar, é importante que existam respostas que ajudem a continuar esse esquema medicamentoso, porque se a pessoa deixa de tomar, provavelmente, vai descompensar de pensar de alguma forma. Portanto, mais uma vez é uma resposta específica para pessoas que precisam de acompanhamento muito próprio.
Vou dar outro exemplo: pessoas com problemas de dependências de álcool, que é uma das principais problemáticas que temos. Há exemplos práticos de que o consumo de uma pessoa que entra numa resposta que trabalha especificamente a questão da dependência no álcool desce, ao fim de muito poucas semanas. Uma descida acompanhada, atenção, porque uma descida repentina pode ter graves problemas ao nível da saúde. É preciso aumentar as respostas em diversidade, porque as problemáticas são várias. O Plano tenta fazer isso: aumentar mas aumentar de uma forma diversificada, indo ao encontro daquilo que são as problemáticas que vamos sentindo.
Estamos aqui a falar da rua, queria perceber como olham para os fenómenos específicos que acontecem em determinadas zonas, como nos Anjos, no Oriente ou em Santa Apolónia, que são habitualmente pontos de concentração. Como é que se consegue fazer com que os acampamentos nessas zonas não continuem a aumentar?
Isso é uma pergunta difícil, porque, por exemplo, em relação aos Anjos, estamos a falar de contexto muito específico, em que houve, em Fevereiro, um contingente de pessoas migrantes, especialmente da Gâmbia e do Senegal, que chegaram num contexto de irregularidade e que, no fundo, a de cidade ou o país não está preparado para receber contingentes desta dimensão. E que vieram para Lisboa à procura de uma solução. Qualquer imigrante destes países vêm à procura de uma solução de emprego, de melhores condições de vida, muitas vezes até para ajudar a família que ficou no país de origem. E realmente o país não está preparado. O país de uma forma transversal. Não é só a autarquia, a Santa Casa, a Segurança Social, a AIMA… Não estamos preparados para fenómenos desta natureza e temos que nos adaptar a isso.
Chegou a ser preparada uma resposta específica naquele local.
Numa situação de emergência, soluções de emergência. E aquilo que se procurou logo ali fazer, foi fazer um atendimento personalizado àquelas pessoas. Como era um volume grande de pessoas, em vez de estar a fazer com que estas pessoas se deslocassem, por exemplo, ao atendimento na Santa Casa da Misericórdia, aquilo que se fez foi reunir quem poderia fazer uma avaliação social. O atendimento foi conjunto, foi entre a AIMA, a Santa Casa… não foi individualizado. Foi uma coisa concertada para avaliar a situação de cada uma daquelas pessoas e tentar arranjar uma solução para elas. Houve pessoas que tiveram resposta de alojamento, outras que ainda está a aguardar porque há um processo de regularização em curso. E para estas demoras é que, infelizmente, tem que se arranjar soluções inovadoras de emergência, mais ágeis, porque estes tempos de regularização demoram bastante tempo. E a verdade é que as pessoas ficam de uma forma desumana na rua. E temos que nos preparar e arranjar uma solução de emergência para estas pessoas. Não pode ser só uma responsabilidade da Câmara, é uma responsabilidade partilhada, também ao nível do Governo, da AIMA. São tantas entidades públicas que devem estar envolvidas num processo específico destes e fazer parte das ações.
A Gare do Oriente é um fenómento também muito particular. Apesar de ter um volume muito grande de pessoas, elas, de alguma forma, subdividem-se. Há aquelas pessoas que estão há mais tempo e há pessoas que estão ali dois, três, quatro dias, saem e chegam novos. Há uma grande flutuação de pessoas naquele local. E para as equipas técnicas de rua, se num dia têm contacto e tentam ajudar, se ao fim de três ou quatro dias ela já não está lá, perde-se o apoio social que se poderia dar. A Gare do Oriente é uma interface, pelo que há pessoas que estão ali como primeiro ponto de paragem e depois saltam para outro local, e pode não ser em Lisboa. Já vimos casos de pessoas que vieram tratar de uma documentação qualquer a Lisboa, que pararam ali, vieram tratar da documentação e depois voltaram, porque não tinham capacidade para arranjar espaço de pernoita. Temos realmente muita diversidade de problemas nestes espaços. O que está a acontecer na Gare do Oriente é também um atendimento personalizado, aqui com mais tempo, e que é feito com a Santa Casa, com a infraestrutura de Portugal e com a equipa de rua que acompanha aquelas pessoas. É um trabalho moroso. Há pessoas que estão disponíveis para ter resposta, há outras que não. Há outras pessoas que não são sequer de Lisboa e temos que articular com Faro, com Aveiro, com o gestor de caso dessa pessoa, até porque o apoio social da pessoa está nesse local de origem, e tem que perceber se faz sentido que essa pessoa seja acompanhada em Lisboa ou não. É mesmo muito complexo.

A questão de Santa Apolónia é uma concentração de pessoas com uma problemática muito específica. Há ali questões de dependência muito presentes e tem aqui outro tipo de intervenção, também personalizada. E aí depende muito, por exemplo, da articulação com o ICAD, o Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências. Vou dar um exemplo também muito prático: se houver uma pessoa que tem dependências e que se sinta motivado para iniciar um tratamento em comunidade terapêutica; se o processo de entrar em comunidade terapêutica demorar seis meses, pode perder-se uma janela da oportunidade – se não for naquele momento, a pessoa, no dia seguinte, se calhar, já não quer. Portanto, os processos de articulação com esses organismos públicos também têm que ser muito mais ágeis. Eu costumo dizer que o nosso Plano Municipal é robusto e tem uma grande capacidade de resposta, mas, por si só, não vai resolver o problema, porque depende de uma rede. É uma engrenagem de rodas dentadas. Todos têm que fazer a sua parte do trabalho. É processual. E os problemas das pessoas, muitas vezes, são cumulativos: tanto podem ter problema de saúde, como podem ter problema de documentação, como podem ter problema de falta de habitação… É uma panóplia de problemas tão complexos que têm que ser resolvidas cada vez mais de uma forma inter-ministerial. São vários ministérios – e daí para baixo – que têm que estar bem articulados para dar uma resposta mais célere, mais eficaz.
No Plano Municipal, há uma componente muito forte que é a da comunicação, informação e sensibilização. Porque é que isto é importante?
Sim, isso é dos grandes objectivos. A Câmara financia muitos projectos, mas não queremos ser meramente financiadores. Queremos estar juntamente com as IPSS no terreno. Até porque quando chega à altura de renovar ou reavaliar determinado projecto, nós temos uma visão enquanto Câmara/cidade/rede, e a entidade tem a visão enquanto projecto. E é importante casar essas duas perspectivas. E se nós não conhecermos aquilo que se passa no terreno, não estamos em pé de igualdade. É importante a Câmara ir também para o terreno conhecer esta realidade. E o que é que isso nos trouxe ao longo destes últimos quatro anos? Muita informação. Nós temos muita informação daquilo que se passa na rua, e agora que temos muita informação consolidada, e até comparável ao longo do tempo, o próximo desafio que está neste Plano é saber comunicar estes dados. Comunicar no sentido de conhecimento científico, conhecimento enquanto decisão técnica e, em última instância, decisão política.
E conhecimento para o munícipe e para a pessoa em situação de sem abrigo. Até porque ainda existe muito estigma associado a esta realidade. E uma forma de saber comunicar esta informação, na minha perspectiva, pode ser um contributo para reduzir o estigma, de achar que é alguém que se droga, que não quer trabalhar, que não quer saber de nada. E as coisas não são assim. Eu até costumo dar também este exemplo: a área das dependências na Câmara de Lisboa não está na responsabilidade da minha unidade orgânica. Porquê? E isso é algo muito importante, porque nem todas as pessoas consomem são pessoas em situação de senhora. É importante separar as coisas. Há pessoas que em situação de sem abrigo consomem, mas há outras não. O problema da dependência não têm que estar associado a esta problemática. É importante combater este estigma.
Mas voltando à importância de comunicar para o munícipe e para a pessoa em situação de sem abrigo. O munícipe também pode ter um papel importante e activo. Por exemplo, combatendo o estigma, pode fazer com que esse munícipe também não crie barreiras naquilo que, às vezes, é o trabalho técnico de muito tempo junto destas pessoas. E depois há a comunicação para a própria pessoa, ou seja, há pessoas que estão na rua mais ou menos desorganizadas, e é preciso dar a conhecer de forma estruturada e imediata a rede de respostas que existe na cidade de Lisboa.
Neste novo Plano, em relação ao anterior, é feito um balanço de que houve um aumento dos meios e também do financiamento para responder a esta problemática. Mas que mais conclusões, na perspectiva do Paulo, são importantes?
Se puder dizer uma, a principal conclusão é que a resposta para estas pessoas não passa só e unicamente pelo aumento exclusivo do número de vagas na cidade de Lisboa.
Daí o foco na prevenção.
Sim, daí a questão da prevenção. A montante e a jusante, ou seja, a montante no sentido de a pessoa que ainda não está na condição não fique nesta situação, e a jusante no sentido de que a pessoa se autonomizou, e é importante garantir que ela não retorne à situação. O follow-up é muito importante, por exemplo. E, como disse há pouco, o problema da prevenção é que não depende exclusivamente de uma entidade, mas de uma panóplia de actores – do Governo central, do Governo local, de várias IPSS… – que têm que estar muito articulados, para que menos pessoas cheguem a essa situação. Se olharmos para o que se passa na Europa e no Mundo, o número de pessoas em situação de sem abrigo está a aumentar pelas várias capitais. É realmente muito grave o que está a acontecer.
No caso Lisboa, uma coisa era dizer que estavam previstas criar vagas e elas não foram criadas. Mas elas foram criadas, o problema é que o fenómeno continua muito presente, os números estão a aumentar. Portanto, não foi pela falta de criação de respostas que o fenómeno reduziu As respostas são importantes, o acompanhamento das pessoas é importante, é essencial. O papel de uma estratégia nacional para a pressão em situação de sem abrigo, que é a ENIPSA, que está ao nível governamental e que pode abarcar os vários ministérios, no meu entender, é muito importante, até porque, apesar de estar concentrado em Lisboa, por vários factores da tratabilidade, o fenómeno é nacional. Existem mais de 10 mil pessoas em situação de sem abrigo no país: seis mil sem tecto, cinco mil sem casa.
Qual é a diferença, para as pessoas perceberem?
As pessoas em situação de sem abrigo sem casa são aquelas pessoas que, de alguma forma, têm uma resposta de suporte habitacional. Ainda não saíram da condição de sem abrigo, porque não têm casa própria, não são autónomas, mas têm uma resposta habitacional, seja mais individualizada, seja mais colectiva. Os sem tecto são aqueles que, e usando uma linguagem mais comum, estão efectivamente na rua. Os dados nacionais de 2022 diziam que no país, existia quase seis mil pessoas em situação de sem tecto, mas em Lisboa, existiam 394. Portanto, em termos percentuais, é um valor muito baixo. Os sem casa tínhamos quase cinco mil pessoas em situação de sem casa e em Lisboa estavam quase três mil. Portanto, dois terços das respostas de alojamento estão concentradas aqui.
Os sem abrigo que estão em condição sem casa, ou seja, que não estão na rua mas ao mesmo tempo não têm a sua casa, acabam por ser invisíveis. As pessoas vêem quem está a dormir na rua e são esses que também fazem as notícias.
Esquecem-se que existem três mil pessoas que estão em situação de sem casa em Lisboa, e que também são sem abrigo mesmo não estando a viver na rua. Claro que, para aqueles que no dia-a-dia não têm que ter esse tipo de preocupação, as pessoas que vêem efectivamente na rua é que estão visíveis e que geram preocupação. Quer dizer, ninguém é indiferente a uma pessoa que está na rua e vê-se está em estado de saúde débil, ou o que seja, ninguém é indiferente a isso. Mas há outras três mil que estão em contexto de alojamento. É uma rede invisível. É um trabalho invisível, que se calhar não se sabe o que faz, um trabalho diário.
Nas respostas de alojamento, é a Câmara que coordena tudo?
Não. Por exemplo, das três mil respostas de alojamento na cidade de Lisboa, dois mil são da Santa Casa, que tem a responsabilidade social. São quartos, pensões e algumas respostas de alojamento colectivo. Estou a dizer de uma forma genérica. E mil são da Câmara. Quem tem a responsabilidade social é a Santa Casa. Agora, o problema é da cidade e acho que mais importante que isso é resolver e que as entidades estejam todas alinhadas. E o NPISA serve precisamente para isso.
Quem preside o NPISA é uma comissão tripartida entre a Vereadora dos Direitos Sociais, a administração da Santa Casa e a directora da Segurança Social. Portanto, as três figuras centrais são, de alguma forma, responsáveis por esta matéria. Há uma especificidade: em todos os outros municípios do país, de há um ano para cá, quem tem responsabilidade da acção social são os municípios. Uma responsabilidade delegada da Segurança Social nas Autarquias. Em Lisboa, especificamente, não. É delegada da Segurança Social na Santa Casa. Mas como é um problema da cidade, a Câmara não pode, e bem, virar as costas, daí ter esta equipa e este plano. O Plano Municipal é um complemento daquilo que já é feito pela Santa Casa e pela Segurança Social, que também tem trabalho aqui na na cidade de Lisboa.
As políticas de Housing First (Casa Primeiro) têm sido exploradas pela autarquia. Desde quando e com que resultados? E o que é que se pretende aqui?
O Casa Primeiro nasceu em Nova Iorque há muitos anos e surge em Lisboa em 2009, já há muito tempo, com a AEIPS – Associação para o Estudo e Integração Psicossocial. Começou com poucas casas e actualmente temos 400 casas contratualizadas. No fundo, vem trabalhar a inserção ou o acolhimento destas pessoas de uma forma inversa. O processo era quase em escadinha: a pessoa está na rua, depois, se merecer, vai para o centro de acolhimento; e, no fim, se merecer, vai ter uma casa.
O Casa Primeiro é ao contrário. Não é direcionado para pessoas que estão há muito tempo na rua, como a Unidade do Beato. É precisamente o contrário: é para pessoas que já passaram por todas as respostas, que não se adaptaram, seja porque não conseguem estar com outras pessoas, seja porque estão em estado de dependência muito grave… Pessoas que estão em contexto de rua em situação crónica, em que estão desacreditadas de tudo. Então, a primeira coisa que se dá é uma casa e, a partir daí, começa-se a trabalhar todas as outras valências. E não há um tempo: a pessoa está naquela casa enquanto sentir que precisa, não há sequer aquela pressão de ao fim de seis meses tem que sai. A taxa de sucesso do projecto em Lisboa é que mais de 90% das pessoas não desistem, não abandonam. Isso é muito importante. Apesar de as pessoas estarem numa casa própria, há uma equipa técnica que os acompanha. Temos vários pessoas que entraram numa casa e só ao fim de dois meses é que começaram a dormir na cama. É uma vitória para a pessoa e para a equipa técnica. Dormiam no chão da casa. Estamos a falar de casos muito pesados. A pessoa que está numa casa, que tem uma cozinha, tem tudo. O acompanhamento técnico tem que ser muito presente, mas a pessoa tem que sentir que a casa é própria. Uma senhora que estava em situação de sem abrigo, e quando teve a casa, disse: ‘finalmente posso ser mulher’. Porque na rua, por ser mulher, por todas as questões que sabemos, quase que estava camuflada em roupa. E naquela casa sentiu que podia ser mulher, tratar-se como mulher.
O Casa Primeiro em Lisboa, no pós-Covid, tem um crescimento significativo. Não há muitas cidades europeias que tenham 400 casas primeiro implementadas. Mas também é um muito frágil, porque depende muito do mercado de arrendamento privado, que actualmente, como sabe, ao nível da habitação, não está propriamente fácil.
Lisboa é uma cidade que concentra 29% dos sem abrigo a nível nacional, por ser a capital isso parece normal. A nível metropolitano, o que pode ser feito?
Lisboa tem dois terços da resposta de alojamento do país. Num contexto metropolitano, ainda tem mais. As pessoas concentram-se mais em Lisboa porque é onde existe os apoios. Se estão numa situação vulnerável, tendem a ir para os locais onde serem que há mais apoio. Uma estratégia metropolitana pode permitir que as pessoas não se vejam obrigados a mudar da sua área da residência por falta de apoio. É de uma forma concertada de gerir respostas de apoio a essas pessoas, quer sejam respostas financeiras, que, no meu entender, devem ser homogéneas entre todos os municípios, quer seja de resposta de alojamentos. Se um outro concelho tem uma pessoa em situação de sem abrigo e se não tiver uma resposta de alojamento, o elemento técnico que acompanha essa pessoa vai encaminhar essa pessoa para Lisboa. Até pode fazer sentido, mas também pode não fazer sentido desenraizar a pessoa do espaço onde está. O facto de não haver pessoas a viver na rua não significa que não haja situações de pessoas sem abrigo ou pessoas em risco de ficar. E a abordagem metropolitana tem muito a ver com isso: olhar para o fenómeno como uma escala metropolitana, porque, se as pessoas circulam entre os municípios, então os equipamentos devem ser intermunicipais. Uma resposta de alojamento a nível metropolitano, por exemplo, pode ser gerido entre três municípios, que se calhar não tem uma expressão tão grande, mas, se calhar, uma resposta comum dá para entre os três municípios ser feita uma gestão mais eficiente. Isso é um passo que temos que dar nesse sentido, mas é processo.

Voltando a Lisboa, o objectivo é também descentralizar as respostas pela cidade? Tem existido agora a criação de respostas na freguesia do Beato.
O Beato tem 16% das pessoas em situação de sem abrigo da cidade. Não está tudo concentrado no Beato. Das três mil, 16% estão no Beato. Há centros no Beato, mas há outros espaços da cidade de Lisboa que têm centros. É muito importante descentralizar. Temos outras respostas noutras partes da cidade, mas também é preciso haver espaços para ter respostas para pessoas em situação de sem abrigo e a verdade é que os espaços não abundam pelo território todo. Temos respostas em Arroios, em Marvila, no Norte da cidade, na zona Oriental. Temos diversificado. O Beato, realmente, com a deslocalização do centro de Santa Bárbara para a Manutenção Militar foi bastante badalado. A minha perspectiva é olhar para isto como uma visão de cidade, não me foco numa freguesia ou noutra. Arroios está ligada à questão das pessoas em situação vulnerável desde o século XIX. As pessoas, quando vinham de outros países, paravam ali no Martim Moniz. Portanto, há histórico urbanístico, não é social, já associado à zona de Arroios, não é de agora. Há muitos anos que este lado da cidade já tem este carácter social de apoio às pessoas mais vulneráveis, em vários contextos.
Para fechar: o balneário de Santa Bárbara, os chafarizes públicos, os WCs com horários limitados. Pode a CML fazer alguma coisa para a infraestrutura pública da cidade dar resposta também a estas pessoas?
Sim, deve ser feito esse ajuste. A maior parte dos balneários e sanitários da cidade de Lisboa, tirando os da concessão publicitária, são geridos directamente pelas Juntas de Freguesia. Houve aqui uma descentralização. Não só nos balneários e sanitários, mas a capacidade dos vários equipamentos da cidade tem de se adaptar àquilo que o terreno nos vai dando. E sim, se é necessário ajustar, como foram agora, os sanitários aqui da Igreja dos Anjos. Foram ajustados os horários em função das pessoas que agora ali estão. Tem que haver esta flexibilidade, não só nos balneários e sanitários, mas em todas as respostas.