Chronicle.
A noite cai. Enquanto ponderamos se vamos ou se ficamos vemos no final do quarteirão um autocarro parado. As suas janelas estão a ser quebradas com calhaus da calçada. Depois chovem cocktails molotovs e o veículo começa a arder. Ao longe, várias pessoas observam o fogo atónitas e incrédulas, enfeitiçadas pelas chamas, como se o tempo tivesse parado, até que alguém grita «polícia!» e as ruas ficam imediatamente vazias. Só paramos de correr no final da rua, já perto do túnel que dá para a Buraca.
Cheguei ao Bairro do Zambujal com alguns amigos, a tempo de acompanhar a marcha que passava em frente à casa de Odair Moniz e dos seus familiares. Eram momentos de uma tristeza imensa. Alguém importante para toda aquela gente, para toda aquela comunidade, não iria voltar. Não por seu desejo, não por sua culpa, não por doença, não por acidente, apenas por ter estado no local errado à hora errada, sendo esse local errado a mira da arma de um agente da PSP demasiado assustado com o mundo para conseguir exercer conscientemente o poder mortal que lhe tinha sido confiado.
Parte de cada funeral, de cada vigília, de cada luto, é o encontro com aqueles com quem partilhamos a perda. Este não era diferente. Algumas pessoas choravam ao mesmo tempo que algumas crianças brincavam. Sem contraste nem dicotomia, apenas parte desse modo de estar juntos em que celebrar a vida dos que partiram preenche a amplitude da vida dos que ficaram.
A marcha ia caminhando pelo bairro. Muitas mulheres de várias idades, alguns homens, uma mão cheia de activistas de outros locais. Numa avenida pedonal circulou um megafone. Falou-se de justiça, de racismo, de uma polícia que era trazida de longe para infligir violência no bairro. Exigiu-se o fim ao «aperto na barriga que todas as mães sentem quando os seus filhos negros ou ciganos saem de casa» por não saberem se não é nesse dia que um polícia de 20 anos que nunca saiu da sua terriola decide que é ele o Cowboy de serviço na Amadora.
Raiva, muita raiva, mas uma raiva contida, porque não foi a primeira vez nem será a última. Ao longe bastante polícia. No sentido contrário, no final do quarteirão, na esquina do café, vários jovens, alguns já de cara tapada, deixam o tempo passar. De onde em onde vão buscar um contentor do lixo, ou arrancam um sinal de trânsito, ou explodem um petardo. Aguardam pela noite, reunindo elementos para uma barricada. Muitos são ainda crianças.
Saltam e pulam gritando «vingança, vingança!». Um miúdo já maior, de cara tapada, empurra um contentor até onde a polícia o pode ver e grita «chupa aqui ó bófias do caralho» enquanto segura os seus genitais. Pouco depois vem uma senhora à janela que o chama pelo nome para voltar para casa. Mal sabe ele que incorreu no crime de injúria à autoridade e que pôs em causa a ordem pública.
As pessoas da concentração e os jovens parecem constituir mundos diferentes. Pouco falam. Os jovens irão armar uma enorme confusão e ninguém os poderá impedir. Mas ao mesmo tempo há uma certa familiaridade presente. A situação contém algo de trágico, que não se esgota ali. Todos eles terão de continuar a lidar com o que há de violento e brutal no modo como Odair morreu, quando já nada disto aparecer nas notícias.
A tarde vai fazendo o seu caminho. Passam táxis, autocarros, pessoas a regressar do trabalho e da escola, pais com crianças. Numa esquina, alguns homens da Ásia do Sul fazem obras na entrada da sua mercearia, aparentemente indiferentes à situação que se aproxima. Dir-se-ia ser um dia normal num bairro tranquilo, não fosse o aparato policial numa ponta da rua e um motim em preparação na outra. Mas nem isso parece perturbar as pessoas. Ninguém corre, ninguém foge, apesar de toda a gente saber o que vai acontecer. A calma chega a ser sedutora, e à medida que vamos conhecendo as pessoas que nos vêm perguntar quem somos e o que andamos ali a fazer, quase nos esquecemos do que ali aconteceu, do que ali estamos a fazer. Podia ser apenas uma tarde bem passada a conhecer pessoas. Estamos, de certo modo, sozinhos no bairro. Não conhecemos ninguém, não temos nenhum contacto. E ainda assim nenhuma hostilidade. Toda a gente se apressa a falar amigavelmente connosco.
Explicam-nos que não acreditam na versão da polícia, que desmantelam de mil maneiras: «Onde estava a faca então? Se houvesse faca já a tinham mostrado»; «Isso são polícias do Norte que vêm para aqui para nos matar»; «Ele estava bêbado e tinha tido um acidente, como é que era uma ameaça?»; «o mais provável é que já lhe tivessem dado o tiro antes do carro bater no muro»; «Então porque é que se houve uma voz do oficial da PSP a dizer que que não havia necessidade?»
As opiniões repetem-se. Um homem cigano que tem uma banca em Benfica conta de um tio seu que morreu num tiroteio com a polícia, mas esse era bandido a sério, e quem vive pela espada morre pela espada. Todos concordam, que sim, que se ele fosse bandido a sério, amigo ou não, estaria a jogar um jogo onde estas coisas acontecem, mas que Odair era um tipo tranquilo, pacífico, inocente. Nada justifica os dois tiros que levou. Um outro homem, segurando um pitbull, pergunta se somos da CMTV. Explicamos que não e vamos falando, conta-nos dos seus programas de informais de assistência social, termina a conversa dizendo que aqui na Amadora são eles os Palestinianos. As pessoas vão-se juntando e afastando da conversa conforme a tarde vai passando.
O sol desaparece por trás dos edifícios. Toda a gente sabe o que vai acontecer. «Os putos não têm juízo» todos concordam, «mas eles têm razão, isto não podia ser assim». Escutamos várias versões disto ao longo do dia, como se as pessoas conversassem consigo mesmas. Por um lado, têm consciência que os motins que se avizinham serão perigosos e destrutivos, mas por outro também sentem um ultraje a que nenhum político ou comentador saberá alguma vez responder. Sabem que no dia seguinte serão crucificados nas televisões por uma dúzia de cabeças falantes que projectarão naqueles quarteirões os filmes americanos e brasileiros que viram na Netflix, falando de traficantes de droga e de gangues que reinam sobre o bairro com uma mão de ferro, mas também sabem que é precisamente por isso que tantos daqueles jovens passarão as próximas horas a queimar tudo a que conseguirem deitar mão. Portugal inteiro tem uma palavra a dizer sobre as suas vidas sem nunca ter passado cinco segundos perto delas.
A noite cai. Enquanto ponderamos se vamos ou se ficamos vemos no final do quarteirão um autocarro parado. As suas janelas estão a ser quebradas com calhaus da calçada. Depois chovem cocktails molotovs e o veículo começa a arder. Ao longe, várias pessoas observam o fogo atónitas e incrédulas, enfeitiçadas pelas chamas, como se o tempo tivesse parado, até que alguém grita «polícia!» e as ruas ficam imediatamente vazias.
Só paramos de correr no final da rua, já perto do túnel que dá para a Buraca. Uma torre de fumo gigante corta o azul-escuro do céu. As pessoas que estão a chegar ao bairro, vindas do comboio, aguardam ali que a situação acalme. É uma imagem estranha, que ecoa aquelas que toda a gente já viu mil vezes na televisão, mas em locais distantes do globo.
Uma jovem mulher negra, arranjada como se viesse de um emprego corporate no centro da cidade, repete o que ouvimos até então: «porra, agora ficamos sem paragem de autocarro? Mas olha, fizeram bem, estamos revoltados».
É essa a contradição em jogo: toda a gente ali aspira a ter uma vida normal, mas essa vida normal ser-lhes-á sempre negada com a mesma violência com que serão castigados por não a ter.
Artigo originalmente publicado no Punkto e aqui republicado com a devida autorização do autor. O Punko é uma revista online que se apresenta como um “projecto indisciplinar e indisciplinado sobre a prática e sobre a teoria: da arquitectura, da crítica, da política, do comum”.