Referendo ao AL em Lisboa esbarra na Assembleia Municipal. O que se passou?

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Depois do chumbo do Tribunal Constitucional, o Movimento Referendo Pela Habitaรงรฃo submeteu uma versรฃo reformulada da proposta ร  Assembleia Municipal de Lisboa, mas esta acabou por nรฃo a votar, depois de um parecer jurรญdico e de um e-mail do gabinete de Carlos Moedas, que levantavam dรบvidas sobre a correรงรฃo das irregularidades identificadas. Resultado: o referendo ao Alojamento Local (AL) em Lisboa nรฃo avanรงa, mas neste artigo explicamos melhor tudo o que se passou.

O referendo ao Alojamento Local em Lisboa nรฃo avanรงa, afinal (fotografia LPP)

Afinal, o referendo sobre Alojamento Local (AL) nรฃo pode avanรงar. Na semana passada, a Assembleia Municipal de Lisboa (AML) decidiu nรฃo realizar a votaรงรฃo que permitiria ร  proposta de referendo regressar, reformulada, ao Tribunal Constitucional. A Presidente da AML, Rosรกrio Farmhouse (PS), surpreendeu os deputados ao retirar o ponto da ordem de trabalhos ร  รบltima hora, depois de receber um parecer jurรญdico que alertava para a persistรชncia de irregularidades no processo e um e-mail do gabinete do Presidente da Cรขmara, Carlos Moedas, a indicar tambรฉm a persistรชncia de โ€œvicissitudes ou irregularidadesโ€.

Em reacรงรฃo, o Movimento Referendo Pela Habitaรงรฃo (MRH), o grupo de cidadรฃos proponente do referendo, referiu que โ€œa populaรงรฃo de Lisboa ficou assim sem a possibilidade de se pronunciar directamente sobre se as casas da cidade devem ser exploradas como alojamento localโ€. โ€œA Assembleia Municipal de Lisboa impediu que a proposta daquele que seria o primeiro referendo por iniciativa popular da democracia portuguesa fosse sequer votada e eventualmente re-apreciada pelo Tribunal Constitucionalโ€, considerou o MRH.

156ยช Reuniรฃo plenรกria da AML, 27 de janeiro de 2025

Bem, mas em que ponto estรกvamos?

No Verรฃo passado, o Movimento Referendo Pela Habitaรงรฃo (MRH), um grupo de pessoas que se comeรงou a juntar no final de 2022 e que se diz apartidรกrio, tinha conseguido as assinaturas suficientes โ€“ o mรญnimo legal de cinco mil assinaturas โ€“ para avanรงar com o primeiro referendo local de gรฉnese popular em Lisboa. A recolha de assinaturas tinha comeรงado em Novembro de 2023. Seguindo os trรขmites legais, o grupo entregou um total de 6600 assinaturas de residentes no concelho de Lisboa na Assembleia Municipal de Lisboa (AML), permitindo que este organismo pudesse dar inรญcio ao processo administrativo. Na mesma altura, os proponentes tambรฉm fizeram chegar ร  AML as duas questรตes que queriam referendar โ€“ duas perguntas que poderiam redefinir o Alojamento Local como o conhecemos na capital, levando ร  eliminaรงรฃo desta actividade econรณmica de fogos destinados a habitaรงรฃo.

After the aprovaรงรฃo do referendo na Assembleia Municipal no inรญcio de Dezembro, sรณ faltava um รบltimo passo: o OK do Tribunal Constitucional (TC). Mas o acรณrdรฃo dos juรญzes chegou logo num dos primeiros dias de 2025 e foi negativo; foram apontados alguns โ€œvรญciosโ€, isto รฉ trรชs falhas processuais โ€“ maioritariamente culpa da AML โ€“ e tambรฉm ilegalidades nas perguntas a referendar. No entanto, o MRH teve oportunidade de melhorar as questรตes e de entregar na Assembleia uma versรฃo melhorada. Segundo o grupo de cidadรฃos, as perguntas do proposto referendo foram ajustadas para responder ร s preocupaรงรตes do TC, aumentando o prazo para o cancelamento dos AL de 180 dias para um ano e especificando que a medida se aplica apenas aos AL registados como apartamentos (e nรฃo ร s outras modalidades de AL), considerados pelo MRH os mais prejudiciais ao direito ร  habitaรงรฃo e ร  vida comunitรกria.

BeforeAfter
1. โ€œConcorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local no sentido de a Cรขmara Municipal de Lisboa, no prazo de 180 dias, ordenar o cancelamento dos alojamentos locais registados em imรณveis destinados a habitaรงรฃo?โ€1. โ€œConcorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local no sentido de a Cรขmara Municipal de Lisboa, em prazo nรฃo superior a um ano, determinar o cancelamento dos alojamentos locais registados na modalidade โ€˜apartamentoโ€™?โ€
2. โ€œConcorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para que deixem de ser permitidos alojamentos locais em imรณveis destinados a habitaรงรฃo?โ€2. โ€Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para que o uso habitacional deixe de ser adequado ร  exploraรงรฃo de novos alojamentos locais nas modalidades โ€˜apartamentoโ€™ e โ€˜moradiaโ€™?”

Ao mesmo tempo, do lado da AML, ficou a tarefa de resolver as falhas processuais, nomeadamente a ausรชncia de um parecer do Presidente da Cรขmara.

O parecer jurรญdico

Excerto do parecer do Departamento Jurรญdico da CML (via AML)

Depois de o Movimento Referendo Pela Habitaรงรฃo ter entregue a proposta reformulada de referendo, com os ajustes ร s perguntas, a AML pediu ao Presidente da Cรขmara o parecer necessรกrio e pediu um outro parecer ao Departamento Jurรญdico da Cรขmara de Lisboa; Rosรกrio Farmhouse quis esclarecer junto dos juristas municipais duas coisas: se os vรญcios identificados no acรณrdรฃo do Tribunal Constitucional se encontrariam sanados; se as perguntas a submeter a referendo na proposta reformulada seriam legais. Este parecer dos serviรงos jurรญdicos chegou ร  AML no dia 24 de Janeiro, uma sexta-feira; no documento, o Jurรญdico do Municรญpio apontava que nรฃo possuรญa competรชncia para assegurar que a nova proposta cumpria todos os requisitos administrativos โ€“ atรฉ porque nรฃo tinha em posse nenhum parecer do edil โ€“ e alertava para o risco de que o TC, ao avaliar as novas perguntas, poderia chegar ร  mesma conclusรฃo que anteriormente e voltar a declarar o referendo ilegal.

Apesar do parecer jurรญdico, Farmhouse planeava manter a votaรงรฃo da proposta de referendo na sessรฃo plenรกria extraordinรกria marcada para segunda-feira, 27 de Janeiro. Nesse dia, os deputados municipais avaliariam a versรฃo reformulada das perguntas e, caso o resultado fosse uma aprovaรงรฃo, esta seguiria novamente para o Tribunal Constitucional. Na conferรชncia de representantes que habitualmente antecede os plenรกrios, tudo indicava que a votaรงรฃo decorreria normalmente. No entanto, no inรญcio da sessรฃo plenรกria, na grande sala do Fรณrum Lisboa, Rosรกrio Farmhouse surpreendeu todos ao anunciar uma decisรฃo da mesa da Assembleia de retirar da ordem de trabalhos o ponto 2, referente ao referendo.

โ€œGostaria de informar o plenรกrio que, apรณs reuniรฃo de conferรชncia de representantes, e em face do parecer jurรญdico recebido (…) e da mensagem recebida hoje do chefe de gabinete do presidente da Cรขmara Municipal de Lisboa, entende a mesa da Assembleia Municipal de Lisboa que ainda nรฃo estรฃo sanados os vรญcios identificados pelo acรณrdรฃo do TC pelo que retira o ponto 2 da ordem de trabalhos de hojeโ€, anunciou a Presidente da AML. Os deputados municipais foram surpreendidos com a decisรฃo, principalmente por ter sido uma posiรงรฃo diferente da apresentada momentos antes na conferรชncia de representantes, ร  porta fechada. 

O e-mail que mandou tudo

Rosรกrio Farmhouse justificou a decisรฃo da Mesa da AML com o parecer dos serviรงos jurรญdicos da Cรขmara de Lisboa e com um e-mail do chefe de gabinete de Carlos Moedas. Esse e-mail, recebido ร s 15h02, ou seja, durante a conferรชncia de representantes e horas antes do plenรกrio, indicava que โ€œa emissรฃo do parecer solicitado [ao Presidente da Cรขmara de Lisboa] ficou prejudicada pela persistรชncia de um conjunto de vicissitudes ou irregularidades no processo referendรกrio, identificadas pelo Tribunal Constitucional (…) e que ainda nรฃo se encontram corrigidasโ€. โ€œPara alรฉm disso, as perguntas referendรกrias ainda nรฃo refletem, de forma cabal, as preocupaรงรตes evidenciadas pelo Tribunal quanto ร  legalidade e constitucionalidade das mesmasโ€, podia ler-se no e-mail assinado por Antรณnio Valle.

Luรญs Newton, lรญder de bancada do PSD, foi dos primeiros a mostrar-se โ€œestupefactoโ€ com a decisรฃo da Presidente da AML. โ€œPassei uma hora e meia dentro de uma sala de conferรชncia de representantes a dizer ร  Senhora Presidente que o parecer [dos serviรงos jurรญdicos] da Cรขmara era taxativo, e a Senhora Presidente esteve uma hora e meia a responder-me dizendo que nรฃo entendia e que pareceres havia muitos. Agora chega aqui e de repente mudou de opiniรฃo e retira a proposta", disse. Por seu lado, a deputada Isabel Pires, do BE, tambรฉm mostrou surpresa e reiterou a posiรงรฃo do partido: โ€œque o ponto deve estar na ordem de trabalhos, os partidos posicionam-se e votamโ€. E lanรงou uma pergunta ร  Presidente da AML: โ€œse estรก a haver uma cedรชncia aos argumentos da direitaโ€. Jรก para Miguel Graรงa, deputado pelos Cidadรฃos Por Lisboa, toda a situaรงรฃo representava โ€œuma falta de respeito, atรฉ para os mandatรกrios e para todas as pessoas que assinaram esta petiรงรฃo de referendo localโ€.

Perante as crรญticas das diferentes bancadas, a Presidente da AML comeรงou por dizer que a mensagem do chefe de gabinete do Presidente da Cรขmara a fez โ€œpensar melhorโ€, mas a oposiรงรฃo continuou as crรญticas, uma vez que esse e-mail jรก tinha sido divulgado na conferรชncia de representantes. Em reaรงรฃo aos protestos, a Mesa da AML decidiu colocar a sua decisรฃo a votaรงรฃo: apenas BE, Livre, PCP, PEV, Cidadรฃos Por Lisboa (CPL) e PAN votaram a favor da manutenรงรฃo do ponto 2, tendo os restantes partidos votado favoravelmente ร  decisรฃo, incluindo o PS e PSD. โ€œMantรฉm-se a decisรฃo da mesaโ€, congratulou-se Rosรกrio Farmhouse. Por outras palavras, manteve-se a nรฃo votaรงรฃo da proposta reformulada de referendo.

Representantes do Movimento Referendo Pela Habitaรงรฃo (MRH), que assistiam ร  sessรฃo, que mais tarde categorizaram de โ€œcaรณticaโ€, acabaram por ser forรงados a sair da sala da AML depois de terem chamados os eleitos municipais de โ€œcobardesโ€ e de terem entoado uma cantiga em defesa da habitaรงรฃo, segundo relata o jornal Pรบblico โ€“ tal situaรงรฃo obrigou ร  interrupรงรฃo da AML por alguns minutos e ร  intervenรงรฃo da Polรญcia Municipal.

Now what?

Agora, nada. O referendo nรฃo avanรงa.ย 

Num comunicado, o MRH condenou aquilo a que chamou de โ€œcobardia polรญticaโ€, nรฃo sรณ da direita, que sempre mostrou alguma resistรชncia quanto ร  realizaรงรฃo deste referendo, mas tambรฉm do PS, partido que preside ร  AML. โ€œAo impedir a populaรงรฃo de decidir democraticamente o futuro das casas da cidade, a Assembleia Municipal de Lisboa colocou os interesses financeiros dos fundos de investimento, dos senhorios e da indรบstria turรญstica acima dos interesses dos seus eleitores e munรญcipesโ€, entende o grupo de cidadรฃos na mesma nota. โ€œA vontade dos cidadรฃos, princรญpio basilar da democracia, deveria estar acima de qualquer agenda partidรกria. Neste princรญpio, o MRH entende com alguma dificuldade a mudanรงa do sentido de voto do PS, quando anteriormente o mesmo grupo de deputados votou favoravelmente, o que se traduziu no fim deste processo de referendo popular.โ€

Uma unidade de AL na Rua da Alfรขndega (fotografia LPP)

O Movimento Referendo Pela Habitaรงรฃo diz ainda que โ€œo mรญnimo que a AML poderia ter feitoโ€ era ter permitido o reenvio da proposta para uma nova avaliaรงรฃo do Tribunal Constitucional, mas, dado que nรฃo deverรก haver interesse polรญtico em reagendar a votaรงรฃo โ€“ principalmente num ano eleitoral como este โ€“, o grupo de cidadรฃos decidiu marcar uma assembleia aberta para o prรณximo sรกbado, dia 8 de Fevereiro, em hora e local ainda a designar.

โ€œEstamos zangados porque estamos a perder o tecido social da nossa cidade. Estamos zangados porque nรฃo conseguimos viver em Lisboa. Mas, acima de tudo, estamos zangados por nos ter sido negada a possibilidade de decidirmos por nรณs prรณprios, em referendo. Foi tomada uma decisรฃo por nรณs, mas sem nรณsโ€, concluiu o MRH.

Recorde-se que a primeira versรฃo do referendo tinha sido aprovada em 3 de Dezembro, com o voto favorรกvel do PS, BE, Livre, CPL, PAN e PEV. O PCP e o MPT optaram pela abstenรงรฃo, enquanto PSD, CDS, IL, Chega, PPM, Alianรงa e a deputada Margarida Penedo (ex-CDS) votaram contra. No entanto, a oposiรงรฃo nรฃo teve votos suficientes para impedir o avanรงo do processo. 

No dia seguinte, 4 de Dezembro, o Ministรฉrio da Administraรงรฃo Interna (MAI) veio a pรบblico identificar a existรชncia de assinaturas invรกlidas, incluindo nomes repetidos, de falecidos e de nรฃo recenseados em Lisboa. Com essas irregularidades, o nรบmero de assinaturas vรกlidas baixou para 4 863, abaixo do mรญnimo exigido de cinco mil. Para corrigir a situaรงรฃo, os responsรกveis do MRH submeteram posteriormente mais 612 assinaturas. Este contratempo foi apenas o primeiro desafio legal enfrentado pelos proponentes do referendo. Como jรก referido, o processo viria ainda a esbarrar no acรณrdรฃo do Tribunal Constitucional, que no inรญcio do ano chumbou a primeira versรฃo das perguntas por razรตes processuais e legais. Agora, a nรฃo votaรงรฃo da proposta reformulada na AML, somada ร  nรฃo emissรฃo do parecer necessรกrio por parte do Presidente da Cรขmara, representou mais um contratempo, ditando o fim do percurso do referendo sem que a populaรงรฃo lisboeta tivesse a oportunidade de se pronunciar sobre o Alojamento Local na cidade.

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