Depois do chumbo do Tribunal Constitucional, o Movimento Referendo Pela Habitação submeteu uma versão reformulada da proposta à Assembleia Municipal de Lisboa, mas esta acabou por não a votar, depois de um parecer jurídico e de um e-mail do gabinete de Carlos Moedas, que levantavam dúvidas sobre a correção das irregularidades identificadas. Resultado: o referendo ao Alojamento Local (AL) em Lisboa não avança, mas neste artigo explicamos melhor tudo o que se passou.

Afinal, o referendo sobre Alojamento Local (AL) não pode avançar. Na semana passada, a Assembleia Municipal de Lisboa (AML) decidiu não realizar a votação que permitiria à proposta de referendo regressar, reformulada, ao Tribunal Constitucional. A Presidente da AML, Rosário Farmhouse (PS), surpreendeu os deputados ao retirar o ponto da ordem de trabalhos à última hora, depois de receber um parecer jurídico que alertava para a persistência de irregularidades no processo e um e-mail do gabinete do Presidente da Câmara, Carlos Moedas, a indicar também a persistência de “vicissitudes ou irregularidades”.
Em reacção, o Movimento Referendo Pela Habitação (MRH), o grupo de cidadãos proponente do referendo, referiu que “a população de Lisboa ficou assim sem a possibilidade de se pronunciar directamente sobre se as casas da cidade devem ser exploradas como alojamento local”. “A Assembleia Municipal de Lisboa impediu que a proposta daquele que seria o primeiro referendo por iniciativa popular da democracia portuguesa fosse sequer votada e eventualmente re-apreciada pelo Tribunal Constitucional”, considerou o MRH.
Bem, mas em que ponto estávamos?
No Verão passado, o Movimento Referendo Pela Habitação (MRH), um grupo de pessoas que se começou a juntar no final de 2022 e que se diz apartidário, tinha conseguido as assinaturas suficientes – o mínimo legal de cinco mil assinaturas – para avançar com o primeiro referendo local de génese popular em Lisboa. A recolha de assinaturas tinha começado em Novembro de 2023. Seguindo os trâmites legais, o grupo entregou um total de 6600 assinaturas de residentes no concelho de Lisboa na Assembleia Municipal de Lisboa (AML), permitindo que este organismo pudesse dar início ao processo administrativo. Na mesma altura, os proponentes também fizeram chegar à AML as duas questões que queriam referendar – duas perguntas que poderiam redefinir o Alojamento Local como o conhecemos na capital, levando à eliminação desta actividade económica de fogos destinados a habitação.
Depois da aprovação do referendo na Assembleia Municipal no início de Dezembro, só faltava um último passo: o OK do Tribunal Constitucional (TC). Mas o acórdão dos juízes chegou logo num dos primeiros dias de 2025 e foi negativo; foram apontados alguns “vícios”, isto é três falhas processuais – maioritariamente culpa da AML – e também ilegalidades nas perguntas a referendar. No entanto, o MRH teve oportunidade de melhorar as questões e de entregar na Assembleia uma versão melhorada. Segundo o grupo de cidadãos, as perguntas do proposto referendo foram ajustadas para responder às preocupações do TC, aumentando o prazo para o cancelamento dos AL de 180 dias para um ano e especificando que a medida se aplica apenas aos AL registados como apartamentos (e não às outras modalidades de AL), considerados pelo MRH os mais prejudiciais ao direito à habitação e à vida comunitária.
Antes | Depois |
1. “Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local no sentido de a Câmara Municipal de Lisboa, no prazo de 180 dias, ordenar o cancelamento dos alojamentos locais registados em imóveis destinados a habitação?” | 1. “Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local no sentido de a Câmara Municipal de Lisboa, em prazo não superior a um ano, determinar o cancelamento dos alojamentos locais registados na modalidade ‘apartamento’?” |
2. “Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para que deixem de ser permitidos alojamentos locais em imóveis destinados a habitação?” | 2. ”Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para que o uso habitacional deixe de ser adequado à exploração de novos alojamentos locais nas modalidades ‘apartamento’ e ‘moradia’?” |
Ao mesmo tempo, do lado da AML, ficou a tarefa de resolver as falhas processuais, nomeadamente a ausência de um parecer do Presidente da Câmara.
O parecer jurídico

Depois de o Movimento Referendo Pela Habitação ter entregue a proposta reformulada de referendo, com os ajustes às perguntas, a AML pediu ao Presidente da Câmara o parecer necessário e pediu um outro parecer ao Departamento Jurídico da Câmara de Lisboa; Rosário Farmhouse quis esclarecer junto dos juristas municipais duas coisas: se os vícios identificados no acórdão do Tribunal Constitucional se encontrariam sanados; se as perguntas a submeter a referendo na proposta reformulada seriam legais. Este parecer dos serviços jurídicos chegou à AML no dia 24 de Janeiro, uma sexta-feira; no documento, o Jurídico do Município apontava que não possuía competência para assegurar que a nova proposta cumpria todos os requisitos administrativos – até porque não tinha em posse nenhum parecer do edil – e alertava para o risco de que o TC, ao avaliar as novas perguntas, poderia chegar à mesma conclusão que anteriormente e voltar a declarar o referendo ilegal.
Apesar do parecer jurídico, Farmhouse planeava manter a votação da proposta de referendo na sessão plenária extraordinária marcada para segunda-feira, 27 de Janeiro. Nesse dia, os deputados municipais avaliariam a versão reformulada das perguntas e, caso o resultado fosse uma aprovação, esta seguiria novamente para o Tribunal Constitucional. Na conferência de representantes que habitualmente antecede os plenários, tudo indicava que a votação decorreria normalmente. No entanto, no início da sessão plenária, na grande sala do Fórum Lisboa, Rosário Farmhouse surpreendeu todos ao anunciar uma decisão da mesa da Assembleia de retirar da ordem de trabalhos o ponto 2, referente ao referendo.
“Gostaria de informar o plenário que, após reunião de conferência de representantes, e em face do parecer jurídico recebido (…) e da mensagem recebida hoje do chefe de gabinete do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, entende a mesa da Assembleia Municipal de Lisboa que ainda não estão sanados os vícios identificados pelo acórdão do TC pelo que retira o ponto 2 da ordem de trabalhos de hoje”, anunciou a Presidente da AML. Os deputados municipais foram surpreendidos com a decisão, principalmente por ter sido uma posição diferente da apresentada momentos antes na conferência de representantes, à porta fechada.
O e-mail que mandou tudo
Rosário Farmhouse justificou a decisão da Mesa da AML com o parecer dos serviços jurídicos da Câmara de Lisboa e com um e-mail do chefe de gabinete de Carlos Moedas. Esse e-mail, recebido às 15h02, ou seja, durante a conferência de representantes e horas antes do plenário, indicava que “a emissão do parecer solicitado [ao Presidente da Câmara de Lisboa] ficou prejudicada pela persistência de um conjunto de vicissitudes ou irregularidades no processo referendário, identificadas pelo Tribunal Constitucional (…) e que ainda não se encontram corrigidas”. “Para além disso, as perguntas referendárias ainda não refletem, de forma cabal, as preocupações evidenciadas pelo Tribunal quanto à legalidade e constitucionalidade das mesmas”, podia ler-se no e-mail assinado por António Valle.
Luís Newton, líder de bancada do PSD, foi dos primeiros a mostrar-se “estupefacto” com a decisão da Presidente da AML. “Passei uma hora e meia dentro de uma sala de conferência de representantes a dizer à Senhora Presidente que o parecer [dos serviços jurídicos] da Câmara era taxativo, e a Senhora Presidente esteve uma hora e meia a responder-me dizendo que não entendia e que pareceres havia muitos. Agora chega aqui e de repente mudou de opinião e retira a proposta”, disse. Por seu lado, a deputada Isabel Pires, do BE, também mostrou surpresa e reiterou a posição do partido: “que o ponto deve estar na ordem de trabalhos, os partidos posicionam-se e votam”. E lançou uma pergunta à Presidente da AML: “se está a haver uma cedência aos argumentos da direita”. Já para Miguel Graça, deputado pelos Cidadãos Por Lisboa, toda a situação representava “uma falta de respeito, até para os mandatários e para todas as pessoas que assinaram esta petição de referendo local”.
Perante as críticas das diferentes bancadas, a Presidente da AML começou por dizer que a mensagem do chefe de gabinete do Presidente da Câmara a fez “pensar melhor”, mas a oposição continuou as críticas, uma vez que esse e-mail já tinha sido divulgado na conferência de representantes. Em reação aos protestos, a Mesa da AML decidiu colocar a sua decisão a votação: apenas BE, Livre, PCP, PEV, Cidadãos Por Lisboa (CPL) e PAN votaram a favor da manutenção do ponto 2, tendo os restantes partidos votado favoravelmente à decisão, incluindo o PS e PSD. “Mantém-se a decisão da mesa”, congratulou-se Rosário Farmhouse. Por outras palavras, manteve-se a não votação da proposta reformulada de referendo.
Representantes do Movimento Referendo Pela Habitação (MRH), que assistiam à sessão, que mais tarde categorizaram de “caótica”, acabaram por ser forçados a sair da sala da AML depois de terem chamados os eleitos municipais de “cobardes” e de terem entoado uma cantiga em defesa da habitação, segundo relata o jornal Público – tal situação obrigou à interrupção da AML por alguns minutos e à intervenção da Polícia Municipal.
E agora?
Agora, nada. O referendo não avança.
Num comunicado, o MRH condenou aquilo a que chamou de “cobardia política”, não só da direita, que sempre mostrou alguma resistência quanto à realização deste referendo, mas também do PS, partido que preside à AML. “Ao impedir a população de decidir democraticamente o futuro das casas da cidade, a Assembleia Municipal de Lisboa colocou os interesses financeiros dos fundos de investimento, dos senhorios e da indústria turística acima dos interesses dos seus eleitores e munícipes”, entende o grupo de cidadãos na mesma nota. “A vontade dos cidadãos, princípio basilar da democracia, deveria estar acima de qualquer agenda partidária. Neste princípio, o MRH entende com alguma dificuldade a mudança do sentido de voto do PS, quando anteriormente o mesmo grupo de deputados votou favoravelmente, o que se traduziu no fim deste processo de referendo popular.”

O Movimento Referendo Pela Habitação diz ainda que “o mínimo que a AML poderia ter feito” era ter permitido o reenvio da proposta para uma nova avaliação do Tribunal Constitucional, mas, dado que não deverá haver interesse político em reagendar a votação – principalmente num ano eleitoral como este –, o grupo de cidadãos decidiu marcar uma assembleia aberta para o próximo sábado, dia 8 de Fevereiro, em hora e local ainda a designar.
“Estamos zangados porque estamos a perder o tecido social da nossa cidade. Estamos zangados porque não conseguimos viver em Lisboa. Mas, acima de tudo, estamos zangados por nos ter sido negada a possibilidade de decidirmos por nós próprios, em referendo. Foi tomada uma decisão por nós, mas sem nós”, concluiu o MRH.
Recorde-se que a primeira versão do referendo tinha sido aprovada em 3 de Dezembro, com o voto favorável do PS, BE, Livre, CPL, PAN e PEV. O PCP e o MPT optaram pela abstenção, enquanto PSD, CDS, IL, Chega, PPM, Aliança e a deputada Margarida Penedo (ex-CDS) votaram contra. No entanto, a oposição não teve votos suficientes para impedir o avanço do processo.
No dia seguinte, 4 de Dezembro, o Ministério da Administração Interna (MAI) veio a público identificar a existência de assinaturas inválidas, incluindo nomes repetidos, de falecidos e de não recenseados em Lisboa. Com essas irregularidades, o número de assinaturas válidas baixou para 4 863, abaixo do mínimo exigido de cinco mil. Para corrigir a situação, os responsáveis do MRH submeteram posteriormente mais 612 assinaturas. Este contratempo foi apenas o primeiro desafio legal enfrentado pelos proponentes do referendo. Como já referido, o processo viria ainda a esbarrar no acórdão do Tribunal Constitucional, que no início do ano chumbou a primeira versão das perguntas por razões processuais e legais. Agora, a não votação da proposta reformulada na AML, somada à não emissão do parecer necessário por parte do Presidente da Câmara, representou mais um contratempo, ditando o fim do percurso do referendo sem que a população lisboeta tivesse a oportunidade de se pronunciar sobre o Alojamento Local na cidade.