Despejar “sem dó nem piedade” quem faça distúrbios? A polémica de Loures explicada

O Presidente da Câmara de Loures defendeu o despejo “sem dó nem piedade” de inquilinos municipais envolvidos em distúrbios no espaço público Ricardo Leão sublinhou depois que esses despejos só ocorreriam em casos resolvidos judicialmente, mas as declarações iniciais do autarca socialista geraram controvérsia – dentro e fora do PS. Explicamos-te este caso.

Carros incendiados na Cidade Nova, em Outubro (fotografia LPP)

Não é comum uma reunião camarária atrair tanta atenção mediática, mas foi o que aconteceu com a reunião da Câmara de Loures na semana passada. A polémica surgiu na quarta-feira, dia 30 de Outubro, quando o Presidente da autarquia, Ricardo Leão (PS), aprovou, ao lado do Chega, uma recomendação deste partido para alterar o Regulamento Municipal de Habitação, de forma a permitir o despejo de inquilinos de casas municipais que cometam crimes, como incendiar carros.

Leão comentou, durante a referida reunião, que concordava com o teor da recomendação, referindo, a propósito dos desacatos que se seguiram à morte de Odair Moniz pela polícia, que “é para despejar, ponto final, parágrafo” as pessoas que forem “maiores de idade, titulares de um arrendamento de uma habitação municipal em Loures, e ficar comprovado em tribunal que participaram nestes actos”. “É para tirar a casa, ponto, final paragrafo, sem dó nem piedade”, reforçou, salientando que “obviamente que, se o titular for um menor de idade, a lei tem um tratamento diferente”.

Ricardo Leão, Presidente da Câmara de Loures, na reunião de Câmara (captura de ecrã por LPP)

O que se discutiu na reunião?

A discussão deste tema ocupou ainda alguns minutos na referida reunião, onde se sentam quatro membros do PS, partido que governa a Câmara de Loures com dois vereadores do PSP, para ter maioria; na oposição, isto é, sem pelouro, contam-se quatro vereadores da CDU e um do Chega, Bruno Nunes, autor da recomendação em causa.

Bruno Nunes, vereador do Chega (captura de ecrã do por LPP)

Apresentando o documento, Bruno Nunes esclareceu que “não queremos condenar ninguém, até porque não somos um órgão judicial”, mas, perante uma condenação judicial em que fiquem comprovadas “estas ilegalidades e deturpação da vida em sociedade”, a pessoa seja “penalizado com o retirar da habitação”. O eleito do Chega vê a medida como “dissuasora, para que quem comete estes ilícitos entenda que pode pôr em risco a habitação da própria família se continuar a praticar estes crimes”. “Nem toda a gente que esta nos bairros é má, mas também nem toda a gente é boa; e não é so nos bairros de habitação municipal”, esclareceu Bruno Nunes, referindo que “quem vive neste registo de ataque claro à sociedade, que acha que é um revoltado e que a sociedade esta contra ele”, não pode continuar a “viver à nossa conta, em casas que são do erário público”.

Note-se que a proposta apresentada pelo Chega é apenas uma recomendação para que o Regulamento Municipal de Habitação do Município de Loures seja revisto e integre estas questões – “aquilo que tamos a pedir é que seja aberto o diálogo e seja, de novo, colocado o Regulamento em cima da mesa”. Na perspectiva de Sónia Lopes (PS), Vice-Presidente da Câmara de Loures, o que o vereador do Chega está a recomendar é algo que já está integrado no referido documento, que estipula os direitos e deveres dos arrendatários de habitação municipal nos bairros do concelho.

Sónia Lopes, Vice-Presidente da Câmara de Loures (captura de ecrã por LPP)

“A sua recomendação está espalhada no Regulamento que nós tivemos oportunidade de aprovar”, referiu Sónia Lopes, acrescentando que, “por isso, não temos qualquer questão em votar favoravelmente a sua recomendação”, pedindo, como também fez o Presidente da Câmara, que sejam retiradas do texto as referências a bairros específicos, de modo a torná-lo mais genérico.

O que diz o regulamento actual?

Sónia apontou aos artigos 53º e 54º do Regulamento Municipal de Habitação de Loures, publicado em Diário de República. No artigo 53º, por exemplo, pode ler-se que “os arrendatários ficam obrigados a (…) utilizar a habitação arrendada, as áreas comuns e todas as demais estruturas e equipamentos públicos com prudência, zelando pela sua limpeza e conservação”.

Já o artigo 54º vai mais longe e refere que “constituem, em especial, obrigações dos arrendatários e moradores dos fogos arrendados (…) pautar a sua conduta pelos princípios do respeito e da urbanidade, mantendo uma convivência cordial e harmoniosa com a vizinhança e demais pessoas com quem se possam vir a relacionar no âmbito da sua utilização da habitação”, bem como “não realizar ou participar em atos que perturbem a ordem pública ou lesem os direitos e interesses legítimos da vizinhança”, ou ainda “não provocar, participar ou intervir em desacatos e conflitos que interfiram com a paz e serenidade da vida quotidiana ou comprometam as boas relações de vizinhança”.

De acordo com o mesmo artigo do Regulamento, “são deveres dos arrendatários e respetivos agregados, relativamente às partes comuns dos edifícios (…) não adotar outros comportamentos que interfiram com a tranquilidade e bem-estar dos restantes moradores”.

Para Bruno Nunes, no entanto, o Regulamento não é claro como deveria ser em relação à prática de crimes e deveria especificar não só a natureza dos crimes que teriam como penalização a perda da casa municipal, como também deveria especificar regras para cada caso, de modo a preservar, por exemplo, os menores. Nélson Baptista, vereador do PSD, responsável pela área do ambiente e da economia, concordou com a recomendação e indicou que, “como disse [o vereador do Chega], há muita gente boa mas também há muita gente má” nos bairros, explicando que a entrega de habitação municipal “não pode ser feita de qualquer forma” e que as situações criminais “devem ser salvaguardas”.

Por seu lado, Fernanda Santos, vereadora sem pelouro da CDU, indicou, durante a reunião, que a recomendação do Chega representa “uma dupla plenalização”, explicando que “alguém que comete um ilícito e é condenado judicialmente cumpre a pena que os tribunais determinaram e a seguir é discriminado porque fica sem a casa”. Ou seja, “já foi punida judicialmente e depois vai ser punida no direito à habitação”. Indo mais longe, Fernanda Santos indicou que podemos estar “a condenar famílias inteiras por um ilícito que um elemento do agregado, maior ou menor de idade, cometeu. Então, alguém do agregado familiar comete um ilícito, é preso e toda a familia deixa de ter direito à habitação?”, interroga-se, referindo que no Regulamento já estão previstas sanções para uma série de situações e lembrando que “as pessoas que comentem ilícitos, sejam quais forem, têm direito a ter algum acompanhamento para que possam rectificar os actos que cometeram e não os voltem a cometer”.

A CDU foi a única força política com assento na Câmara de Loures a votar contra o texto do Chega, que passou com os votos a favor do Chega, claro, e também do PS e PSD.

Mau estar no PS e a resposta de Leão

O voto a favor de Ricardo Leão e, em particular, as suas declarações públicas causaram algum mau estar dentro do PS, com dirigentes socialistas a dizerem que o autarca de Loures deixou de ter condições para liderar a Federação da Área Urbana de Lisboa e para se recandidatar nas autárquicas do próximo ano. Alexandra Leitão, a líder parlamentar do PS e um dos nomes que está a ser, aliás, apontado à Câmara de Lisboa, criticou as palavras de Leão e aproximação ao Chega. Também as Mulheres Socialistas, que representam a ala feminina do PS, reprimiram a posição do Presidente da Câmara de Loures. Por seu lado, Pedro Nuno Santos, actual Secretário-Geral do partido, disse ter sido um “mau momento”.

Em resposta a toda a polémica, que se levantou nos dias seguintes à reunião de Câmara, Ricardo Leão emitiu a tempo e horas um comunicado a esclarecer a situação. Fê-lo logo no dia seguinte, quinta-feira, 31 de Outubro. Procurando “esclarecer” a sua posição sobre a “penalização de criminosos no acesso à Habitação Municipal”, referiu, numa curta nota, que sempre se pautou “por uma política de justiça, rigor e transparência na gestão da habitação municipal, fazendo com que, por um lado, se exija o cumprimento dos deveres e direitos de ambas as partes”. Segundo Leão, “é disso exemplo o aumento significativo do cumprimento mensal do pagamento das rendas e as obras de requalificação que estão a ser realizadas nas habitações daqueles que estiverem em situação de cumprimento, dando a dignidade que merecem”, apontou o autarca socialista.

Sobre esse tema, importa uma nota: dados facultados por Ricardo Leão, numa entrevista recente, indicam que, desde meados do ano passado, o plano de regularização de rendas em atraso nos bairros municipais de Loures, como os Terraços da Ponte e a Quinta da Fonte, resultaram numa diminuição significativa do número de famílias em incumprimento, que passou de 55% para 22%. “Esses 22% não responderam a todas as diligências da Câmara, quer presenciais, quer por carta. Temos que entrar com os processos judiciais de despejo, é óbvio”, referiu o Presidente da Câmara de Loures em Março, citado pela Lusa. “É que nem sequer responderam às cartas”, salientou, referindo-se aos 22% que continuam sem regularizar as rendas em dívida, admitindo que “não querem responder” por estar em causa, por exemplo, “a ocupação de casas”, indicou na altura.

Carros incendiados na Cidade Nova, em Outubro (fotografia LPP)

Voltando ao comunicado e à situação presente, Ricardo Leão acrescentou que “a Câmara Municipal de Loures tudo fará para cumprir o Regulamento de Habitação do Município de Loures, no que concerne aos deveres de conduta dos inquilinos, sem nunca tomar medidas que violem as leis da República ou a Constituição da República Portuguesa”, e que as declarações na reunião camarária “eram referentes, única e exclusivamente, a casos transitados em julgado [ou seja, quando a decisão judicial é definitiva, não podendo mais ser objecto de recurso]. Nunca o Município se deve sobrepor ou substituir ao poder judicial. Nem nunca o fará”, assinalando, contudo, que é importante “penalizar a conduta criminosa de quem colocou em causa a segurança de pessoas e bens” durante a semana de tumultos na área metropolitana de Lisboa.

O comunicado do autarca procurou apaziguar a controvérsia gerada pelas suas declarações, mas Ricardo Leão acabou por se demitir mesmo, dias depois, da Federação da Área Urbana de Lisboa.

Vários distúrbios na área metropolitana de Lisboa tiveram início após a morte de Odair Moniz, cidadão cabo-verdiano de 43 anos, baleado pela PSP na madrugada de 21 de Outubro, no bairro da Cova da Moura. O incidente gerou uma onda de protestos em bairros por quase toda a região, com autocarros, automóveis e caixotes do lixo incendiados. Em Loures, estas situações de violência decorreram maioritariamente na Cidade Nova, onde um motorista da Carris Metropolitana ficou gravemente ferido com queimaduras graves. Ricardo Leão classificou a situação de uma “tentativa de homicídio”.

Sem paralelo na área metropolitana de Lisboa

De qualquer modo, independentemente da aprovação, com votos do PS e PSD, da recomendação do Chega, o actual Regulamento Municipal de Habitação de Loures não parece ter paralelo na área metropolitana de Lisboa. O LPP consultou outros regulamentos municipais de habitação de outros concelhos mas não encontrou nenhum parecido com o de Loures em relação a um “bom comportamento” dos inquilinos. O de Sintra só estipula o bom uso dos espaços comuns das habitações, tendo apenas uma linha sobre “observar as regras de sossego e de boa vizinhança, tratando os vizinhos com respeito e urbanidade”. O mesmo faz Oeiras, por exemplo.

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