O Movimento Referendo Pela Habitação conseguiu as assinaturas necessárias para promover um inédito referendo local em Lisboa. O grupo de cidadãos quer colocar a capital a responder a duas perguntas que podem redefinir o futuro do Alojamento Local (AL).
É em Alfama que os encontramos. Não só duas ou três mãos cheias de Alojamentos Locais, identificados à porta com a placinha com “AL” em letras azuis. Como também os autores do Référendum pour le mouvement du logement, um grupo de cidadãos que, nos últimos dois anos, se mobilizou para recolher mais de cinco mil assinaturas – as necessárias para promoverem um referendo em Lisboa que poderá definir o futuro da actividade de AL.
Hélio é um dos membros mais recentes deste movimento. Estudante de medicina, sente na pele o impacto que o AL está a ser na habitação de que ele necessita para continuar a estudar na capital: “Vou ter que sair da minha casa porque meu senhorio – ele não me disse isso mas tenho certeza – vai querer lá fazer alojamento local. O meu prédio todo está cheio de ALs. Ando à procura de outro quarto, sendo que os preços estão muito altos.”
O problema do Alojamento Local remonta a 2014, quando Portugal introduziu um sistema de registo simples: os candidatos preenchiam um formulário online e recebiam de imediato um número de registo de AL, permitindo colocar as suas casas no mercado de arrendamento de curta duração. A lei não especifica a duração desta licença, assumindo que a licença é válida indefinidamente.
Esta abordagem levou a que, em Lisboa, mais de 20 mil apartamentos fossem registados como Alojamento Local entre 2014 e 2020. O uso turístico das habitações atingiu níveis alarmantes; actualmente, em alguns bairros do centro histórico, 60 em cada 100 casas têm uma licença de AL — um número inexistente em qualquer outra cidade europeia. Como se não bastasse, Lisboa é ainda a cidade europeia onde o preço da habitação mais aumentou nos últimos anos e é também a cidade com a taxa de esforço – relação entre salários e preço da habitação – mais elevada da Europa.
Para além disso, ocupa a primeira posição noutro ranking: é a capital europeia com mais casas existentes por residente. Isto significa que não enfrentamos um problema de falta de casas, mas que enfrentamos um problema de uso indevido das habitações existentes para outros fins. Não precisamos de construir mais casas porque elas já existem. Precisamos de mudar o uso que elas têm.
É isso que o Movimento Referendo Pela Habitação (MRH) pretende fazer. “O Movimento Referendo pela Habitação surgiu há dois anos. É um grupo de cidadãos aqui de Lisboa que se reuniu para implementar em referendo local pelo direito à habitação. Somos pessoas de diversos perfis, de diversos backgrounds, que se quiseram unir e utilizar esta ferramenta da Democracia directa, que é o referendo local”, explica Hélio. “Este tipo de referendo já existiu em Berlim, na Alemanha, e nós inspiramos muito nele. Mesmo ao nível do design e das cores. Esse foi um referendo que, infelizmente, não conseguiu ir para frente, apesar de uma enorme adesão popular, como está a ter o nosso.”
Mais de 30 pessoas integram de forma inorgânica este movimento cívico, que, ao longo de dois anos, esteve a recolher as cinco mil assinaturas que são necessárias no mínimo para promover um referendo local em Lisboa. O colectivo tem duas perguntas para referendar:
Porquê estas questões? Em Abril de 2022, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que casas destinadas a habitação servem para as pessoas morarem e não para a exploração de AL. No entanto, o MRH diz que a Câmara de Lisboa tem ignorado esta decisão e continua a permitir que o Alojamento Local se faça em prédios de habitação. O Regulamento Municipal do Alojamento Local (RMAL) é o documento que regula o AL em Lisboa e o grupo quer mudar o RMAL para impedir que este tipo de alojamento turístico possa existir em prédios com uso habitacional.
“Essa decisão do Supremo Tribunal de Justiça diz muito claramente que a actividade de Alojamento Local não é compatível em prédios de habitação, onde deveriam morar pessoas. Atualmente, as regras vigentes em Lisboa, no regulamento municipal, dizem que só se podem abrir ALs exatamente em casas com licença habitacional, portanto, em total inconformidade com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça”, explica Diogo, outro dos membros do MRH. “O que nós queremos referendar é se as pessoas concordam que a Câmara de Lisboa cumpra a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, fazendo com que, e aí temos duas perguntas, por lado, cancele as licenças de AL que foram dadas até agora em casas destinadas à habitação. E, por outro, que no futuro não seja possível dar novas licenças nestas mesmas casas, com esse tipo de uso habitacional.”
Há duas formas de promover um referendo local num município ou freguesia: ou a Câmara Municipal/Junta de Freguesia decide promovê-lo (como foi feito em Benfica com a questão do estacionamento regulado), ou os cidadãos podem mobilizar-se e com pelo menos 5 mil assinaturas despoletar esse processo. O MRH já tem esse número mínimo de assinaturas e já poderia entregá-las na Assembleia Municipal de Lisboa para, através deste órgão, ser promovido o referendo local. Mas o grupo só vai fazê-lo em Setembro, depois das férias políticas, e até lá tem como objectivo atingir o patamar máximo das 7 500 assinaturas. “Já poderíamos apresentar as assinaturas, se quiséssemos, mas queremos para causar mais impacto, mostrar mesmo a força que esta proposta de referendo está a ter”, diz Hélio. “Toda a gente nota ou sente na pele este problema da habitação em Lisboa. Contactamos imensas pessoas que referem que foram expulsas do centro.”
Todas as assinaturas recolhidas tiveram de ser de pessoas que residem no concelho de Lisboa. “Muitas vezes encontramos pessoas que já não são habitantes do concelho, porque foram expulsas de Lisboa, e, por isso, não podem assinar.” Para essas pessoas, consideradas apoiantes, o MRH disponibilizou um formulário alternativo, de cor amarela: recolheram mais de 4 mil assinaturas ao todo. Com as 5 mil oficiais, a conta é fácil de fazer: 9 mil assinaturas no total. “Um dos grandes objectivos do Movimento, para além, obviamente, do referendo, é iniciar esta conversa sobre o AL e o impacto na habitação. É muito, muito importante que falemos do que é uma cidade, para que servem as casas…”, refere Diogo.
“Muitos argumentam que a casa é sua e que fazem o que querem. Mas esses argumentos caem por terra quando, para além do direito à propriedade não ser de todo tocado com a nossa proposta, o direito à propriedade em si também já tem as suas limitações. Não podemos fazer ruído a partir de uma determinada hora, há uma série de obras estruturais que carecem de autorização e, mais importante, não podemos abrir café na nossa casa porque é uma actividade comercial que não é compatível com a existência numa casa para habitar.” Tal como é uma actividade comercial o Alojamento Local, aponta o colectivo.
O MRH sabe que existem riscos associados ao fim das licenças, como o ressurgimento do mercado paralelo em maior força. “Isso é outro problema e que já existe hoje em dia com o Alojamento Local. A Câmara de Lisboa tem apenas três funcionários – foi dito por eles – para fiscalizar cerca de 20 mil casas de Alojamento Local. E nós sabemos, por histórias que nos chegam e também pelo contacto directo com as pessoas nas ruas, da quantidade de falcatruas que existe hoje em dia no mercado do AL”, esclarece Diogo. “Na própria Carta Municipal de Habitação dizem que há pelo menos o dobro de casas em Alojamento Local do que aquelas que estão registadas, porque há uma grande fatia de alas que é ilegal e que não é apanhada, porque lá está, há uma grande falta de fiscalização.”
Se o “sim” ganhar nas duas perguntas, a Câmara de Lisboa será obrigada a devolver as casas de Alojamento Local que estejam em fogos destinados a habitação a essa função, terminando as licenças, e não poderá voltar a permitir o registo de Alojamentos Locais em imóveis destinados a habitação. A combinação das duas perguntas serve para garantir que a habitação cumpre a sua função social, aponta o MRH. O colectivo acredita que a remoção dos milhares de alojamentos locais existentes significará uma redução dos preços da habitação em toda a capital, a desturistificação dos bairros e um novo começo para os habitantes de Lisboa. Poderá também significar o fim local de plataformas como a Airbnb e a Booking.com, que, dizem, não contribuem com impostos para a economia local, mas lucram com o património da cidade. No entanto, para o referendo local ser válido (vinculativo), a afluência às urnas não pode ficar abaixo dos 50%. Esse será outro desafio.
Até lá, ainda terá a Assembleia Municipal de Lisboa e o Tribunal Constitucional de validar as pelo menos 5 mil assinaturas. No pior dos cenários, o referendo poderá realizar-se em meados de 2025.