Voltámos a encontrar a activista Mariana Carneiro na Igreja dos Anjos, desta vez para falar sobre a resposta dada, ainda que tardiamente, aos imigrantes que durante meses foram deixados a viver na rua. Que avanços foram alcançados? Que problemas ainda persistem? E que lições podem ser tiradas deste caso?

Voltamos a encontrar Mariana Carneiro na Igreja dos Anjos. A situação hoje é muito diferente daquela que guiou a nossa conversa em Maio. Com a crise resolvida, ainda que com críticas, este espaço deixou de ser um símbolo de abandono do Estado para com os muitos imigrantes que foram chegando ao nosso país, chamados pela nossa economia e à procura de melhores condições de vida.
Mas a Igreja dos Anjos tornou-se um ponto de reflexão sobre políticas públicas e a luta pelos direitos humanos. Nesta segunda parte da entrevista feita em Maio, Mariana Carneiro fala-nos sobre os avanços alcançados, as falhas que persistem e as lições a retirar deste caso.
Podes ler a primeira parte da entrevista aqui.
Lê também a nossa grande reportagem sobre este tema aqui.
Mariana, pedia-te um ponto de situação. Desde a última vez que nos encontrámos, o que aconteceu? As pessoas que estavam aqui nos Anjos foram colocadas em hostels, estão bem?
Quando nós falamos, já tínhamos aquelas promessas da Vereadora dos Direitos Sociais, Sofia Athayde, de que as pessoas que estavam a dormir aqui na Igreja dos Anjos iriam ser todas colocadas em respostas sociais, com equipas multidisciplinares a fazer o acompanhamento. Eram promessas que vinham de Abril, quando foi instalada aqui aquela task-force com a Câmara Municipal, a Santa Casa, a AIMA e também o Serviço Nacional de Saúde.
Mas as promessas prolongaram-se e a concretização só foi feita no dia 4 de Outubro, como sabes. Portanto, foram longos meses sem qualquer tipo de resposta. Solicitámos várias vezes apoio, nomeadamente alimentar, mas tivemos esses imensos meses sem qualquer tipo de resposta por parte da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Sempre achámos que era inconcebível ter aqui uma cantina do outro lado da rua e estas pessoas não poderem aceder-lhe…
O que a Santa Casa diz é que dão apoio mas é preciso haver uma sinalização, ou seja, as pessoas estarem sinalizadas e integradas nas respostas deles.
O problema é que tens a Santa Casa de Misericórdia a estabelecer critérios de elegibilidade, nomeadamente terem autorização de residência como morada em Lisboa. É algo que não se adequa à realidade. Quando tens uma uma realidade crescente de sem-abrigos que são imigrantes estrangeiros, e quando tens também serviços com que não têm capacidade de actualizar a morada nos documentos, é completamente inconcebível que continuemos a excluir dos apoios, nomeadamente alimentares, que são o básico básico de sobrevivência, tantas pessoas e que as fragilizemos, face a todo o tipo de necessidades que elas têm.
Durante estes meses a fio, continuámos a fazer pressão às autoridades, nomeadamente aqui ao Executivo da Junta de Freguesia, para termos as casas de banho aqui da Igreja com horário alargado durante a semana e que abrissem ao fim-de-semana. A abertura do ponto de água potável não foi possível durante todos estes meses. Não conseguimos nada, esses pequenos passos para ter mais dignidade.
Continuámos a ter uma postura de intransigência e de culpabilização dos imigrantes, quando estes, durante todos esses meses, foram exemplo de resiliência e de esforço de integração. Durante todo esse tempo, esses imigrantes continuaram a cozinhar para toda a gente. Asseguraram diariamente alimentação, primeiro para cerca de 120 pessoas e depois, à medida que foi diminuindo, já perto de seis dezenas no final. Continuaram a fazer desporto, a participar em actividades culturais, a ir a manifestações – contra a extrema direita ali no Largo do Intendente, pelo direito à habitação, à marcha pelo Amílcar Cabral… Portanto, foram variadíssimos os momentos de participação de cidadania activa por parte destas pessoas, que contrastam depois com a ineficácia e incompetência, diria, das autoridades…
E depois veio cinco de Outubro…
Antes disso, em Junho, tiveste o anúncio pomposo, com ponto de circunstância do pavilhão na Ajuda que iria receber duzentos imigrantes em situação de emergência. Tu tiveste anunciado o protocolo entre o Ministério da Defesa e a Câmara Municipal. Tanto o Presidente da Câmara como o Governo falaram sobre esse alojamento, mas, mais uma vez, ficámos pendurados nas promessas das autoridades competentes. Era suposto abrir no Verão e não abriu.
Entretanto, e durante estes meses também, continuamos o processo de regularização dos imigrantes, com a obtenção de todos os documentos que eles ainda não tinham na sua mão, no acompanhamento deles nas entrevistas na AIMA, na recolha de dados biométricos… Continuámos também a tentar ativamente procurar emprego com direitos para todas estas pessoas. Todo este processo continuou até ao 4 de Outubro. O que é que se passou mesmo antes do 4 de Outubro?
Houve contactos, não por parte da Câmara diretamente, não por parte do Executivo da Junta, mas por parte da Polícia Municipal. Contactos comigo directamente, inclusive aqui pessoalmente na Igreja, no sentido de que estas pessoas deveriam ser transferidas num curto espaço de tempo para hostels. Eu devo dizer que foi uma sensação agridoce. Primeiro, uma alegria grande, porque eu sabia que se aproximava o Inverno e estas pessoas estavam completamente desgastadas, com a saúde física e mental fragilizada. Sair da rua era imperativo. Não se podia adiar.

Por outro lado, achava – e acho – que um hostel não é minimamente um local adequado para alojar pessoas com estas características. Não permite o tal acompanhamento multidisciplinar que foi tão prometido desde Abril e que nunca foi cumprido. Hostels são espaços comerciais, onde estão outros clientes; portanto, eles não os têm só para e há casos em que não têm sequer espaço de convívio comum além da cozinha. Não têm nenhuma sala de estar, nenhuma sala de refeições. O que impede que haja esse trabalho multidisciplinar de acompanhamento.
E, acima de tudo, lamento tudo isto porque percebemos que, de facto, era possível de um momento para o outro transferir as pessoas todas uma resposta de alojamento. Ou seja, percebemos que isso não foi feito nos dez meses anteriores por falta de vontade política. Não houve essa vontade. E todas as outras respostas que talvez permitissem melhor acompanhamento social, em termos de saúde, de empregabilidade, etc, caíram. E nunca nos explicasse o porquê de terem sido abandonadas essas respostas. Também me faz questionar o porquê de ter sido feito na véspera do 5 de Outubro e com essa urgência.
Eu disponibilizei-me junto da Polícia Municipal e devo dizer que os profissionais da Polícia Municipal que fizeram esse trabalho em conjunto comigo tiveram uma postura muito correcta, de salvaguarda da dignidade dos direitos dos imigrantes. Isso acontecer, para mim, era fundamental porque senão eu também não teria acedido a participar, intermediando essa mudança. O meu papel foi de escoltar as pessoas que estavam na Igreja tendo em conta que tinha estado aqui há largos meses e que já as conhecia, cada uma delas, individualmente. Conheço toda a sua realidade pessoal e documental. Falei com todas as pessoas que aqui estavam no sentido de saber se estavam disponíveis ou não em aceitar a única solução que estava em cima da mesa, que era essa transferência para hostels.
E como é que foi esse ambiente? Aceitaram?
Foi aceite, no geral. Houve sete pessoas que me disseram que não; dessas sete, três arrependeram-se depois e quiseram ir para os hostels e foram. Houve pessoas que aceitaram mas que, depois, à última da hora, acabaram por não entrar, ficaram à porta – são pessoas, dois nacionais, que têm largos anos de rua, que nunca tiveram o melhor dos acompanhamentos. O que é certo é que essas pessoas acabaram por não aceitar essa resposta e permanecem em em situação de sem abrigo.
O Paulo Santos, da Câmara de Lisboa, disse-me que ninguém é retirado à força da rua. Nos últimos dias, tivemos aqui algumas “limpezas” à volta da Almirante Reis. Na perspectiva da Mariana, é mesmo assim? Partilha dessa visão?
Antes do 4 de Outubro, da retirada daqui dos imigrantes do da Igreja dos Anjos, tive várias situações de imigrantes que, por me conhecerem e me verem aqui, a acompanhar estas pessoas, vieram ter comigo em desespero porque lhes tinham sido retiradas tendas e todos os seus haveres, sem qualquer tipo de pré-aviso. Foram cinco situações distintas. Não é uma, não são duas, não são três… Esses relatos tornaram-se recorrentes, nomeadamente ali à frente do Ginásio Clube, no Regueirão dos Anjos, onde estavam várias tendas, nomeadamente de nacionais, argelinos e marroquinos; e essas tendas foram retiradas às oito da manhã, previamente aqui ao ao processo da Igreja dos Anjos. Foi lá a Higiene Urbana e a Polícia e dois deles ficaram sem os seus haver, sem nada, não tiveram qualquer pré-aviso. Um deles veio ter comigo lavado em lágrimas, absolutamente, explicando o que tinha acontecido e pedindo ajuda para tentar reaver os seus pertences. Ele correu às esquadras, tentou a vários serviços, mas disseram-lhe para esquecer que não iria conseguir recuperar absolutamente nada. É que, a partir do momento em que a Higiene Urbana recolhe, com certeza que não iria ficar com as coisas armazenadas a canto para a pessoa poder recolher. Depois houve outro marroquino ali com uma tenda perto do Almirante Reis a quem aconteceu exatamente o mesmo. Houve outro caso na zona da Alameda, perto da Igreja. Ou seja, são vários relatos de várias pessoas diferentes, em momentos diferentes, a quem foram retirados os pertences e com quem não foi discutida qualquer alternativa. Já após a retirada das tendas da igreja, exatamente a mesma coisa com pessoas a dizerem-me que ficaram sem nada.

É óbvio que vás lá um ou dois dias antes de uma “limpeza”, se não conheceres as pessoas, se não souberes o seu nome, a sua história, onde é que estão localizadas… não é nesse um ou dois dias que vais conseguir preparar uma retirada, porque basta que essa pessoa esteja a trabalhar ou que não a encontres no dia anterior… Não é de um dia para o outro que consegues preparar uma saída. Não sei se tentaram fazer esses contactos ou não nestes casos. Não me admira nada que haja pouco recursos, poucas condições ou um pré-aviso muito curto no sentido de dar orientações às equipas de ruas que tenham que fazer essa abordagem. O que eu sei e o que eu possa atestar é que, de facto, tive contatos de pessoas que conheço, das quais sei o nome e onde e onde se encontram, e que, sem qualquer abordagem antecipada, foram despojadas de todos os seus pertences. Ficaram numa situação ainda mais indigna, ainda mais dramática do que aquilo em que se encontrava. Os argelinos e marroquinos são, talvez, as nacionalidades que foram mais fustigadas por este tipo de acções.
Estas acções de “limpeza” terão uma preocupação de base de evitar novas grandes concentrações de tendas, não te parece?
Infelizmente, temos todo este discurso da extrema-direita de invasão nas ruas, de estas pessoas vêm sujar a nossa cidade, de que vêm invadir a nossa cidade, etc. E infelizmente há muita ignorância, há muito desconhecimento sobre quem são estas pessoas e porque razão é que elas estão no espaço público, não é? Elas estão, ou estiveram, no espaço público porque não houve resposta por parte das autoridades no sentido de assegurarem o seu processo de regularização, os direitos mínimos, os serviços mínimos, uma vida de mínima dignidade, uma sobrevivência digna. Infelizmente, há todo um discurso que vai acabando por colar e que muitas vezes faz com que as pessoas até aceitem de alguma forma este estes exercícios de “limpeza” – vamos pôr entre aspas, mas é disso que se tratam mesmo, é de varrer muitas vezes para debaixo do tapete.
O que é que nós estamos aqui a ver? É pegar naquilo que é visível e não tratar as causas, não é? Estás a fazer uma limpeza, como se de repente deixasses de ter sem-abrigo. Mas os sem-abrigo continuam, não é? Não resolves as coisas metendo as pessoas em hostels onde elas não vão ter uma resposta à altura. Aliás, eu não faço ideia durante quanto tempo é que as pessoas vão permanecer nesses hostels. Não há nenhum plano. Durante muito tempo, essas pessoas tiveram sem qualquer tipo de apoio, inclusive alimentar. Agora num dos hostels estão a chegar donativos de associações, mas são donativos ainda em pequena escala.
Preferias uma resposta através de um centro de emergência, como o que esteve previsto na Ajuda?
Eu sou totalmente contra aqueles centros de emergência temporária que se tornam em centros permanentes. Esse é o problema, é quando crias um centro grande dimensões e metes lá 100, 120, 200 pessoas. Esses centros são úteis, sim, mas para uma triagem, ou seja, para que as pessoas chegam e possam receber logo todos os cuidados de saúde necessários, para que possam efectivamente ser acompanhados por equipas multidisciplinares, para que se possa perceber quem são essas pessoas, quais são as suas características, as suas qualificações profissionais, os seus sonhos, os seus anseios… e para que essas pessoas possam ser encaminhadas para a resposta mais correcta – seja o housing first, seja outro tipo de resposta, seja o encaminhamento para outras zonas do país. Por exemplo, tivemos aqui nos Anjos pessoas que eram da área da pesca, com uma experiência de décadas; e temos zonas no país que estão com uma carência de pescadores imensa – temos visto isso em reportagens de jornais, que contam que são os indonésios e senegaleses que estão a segurar a nossa pesca e que, se não fossem eles, a pesca estava completamente falida. Portanto, podemos encaminhar as pessoas para onde há necessidade do mercado laboral, dar-lhes formação… – a questão da língua é fundamental e não está a ser assegurada, porque os cursos de português estão sobrelotados. A língua portuguesa é fundamental, a formação profissional é fundamental; e, portanto, esses centros com equipas multidisciplinares poderiam fazer uma triagem e encaminhar as pessoas para as respostas mais adequadas. Isso seria fundamental.
O que eu dissesse sobre a barreira linguística é muito importante. É efectivamente uma das barreiras que os imigrantes dizem ter para encontrar trabalho.
Estas pessoas não querem de forma alguma ficar dependentes do Estado, de subsídios ou do teu dinheiro. As pessoas querem trabalhar. Precisam de enviar dinheiro para a família. Isso é uma prova aprovada. Quando vais ver os relatórios, as estatísticas, vês que estas pessoas têm uma contributo para a Segurança Social que é fundamental, que são fundamentais para os nossos cofres públicos. Não há reformas amanhã, não há sustentabilidade da Segurança Social sem as contribuições destas pessoas, destes migrantes, Eles são também, em termos percentuais, aqueles que menos prestações recebem. São também os que recebem os piores salários, os mais precários. Portanto, têm piores condições laborais e são quem mais está a contribuir para o desenvolvimento económico deste país. Já para não falar da riqueza cultural e social que estas pessoas representam e que é fundamental. Qual substituição, qual quê. Que substituição ou invasão é esta de que fala a extrema-direita? É de uma ignorância absoluta do que é o passado de Portugal, do contributo dos mouros neste país, dos árabes neste país. É inacreditável. A riqueza cultural e social que estas pessoas de fora nos trazem é fundamental para o nosso país e para o seu desenvolvimento também. O seu conhecimento, a sua experiência… é uma mais valia de que nós não podemos abdicar.
Como é que podemos valorizar tudo isso?
A solução não é fechar os olhos. O 3 de Junho foi um dia fatídico para quem trabalha com imigrantes. A partir do momento em que acabas como a Manifestação de Interesse – que era os artigos nº 88 e 89 da Lei de Imigração, um mecanismo que permitia aos imigrantes pedirem a sua regularização, com critérios específicos e exigentes –, estás a criar exército gigantesco de pessoas irregulares e clandestinas, que não vão estar a contribuir para a riqueza deste país. Vão estar somente a contribuir para a riqueza de grandes interesses económicos, que não têm qualquer pudor em utilizar mão de obra escrava, ou então de de pessoas de máfias que estão aqui para se aproveitar delas até ao tutano.

Desde que estou aqui, nestes longos meses que eu estive na Igreja dos Anjos, tive pessoas, depois do 3 de Junho, que vieram ter comigo, que vieram também cair na situação de sem-abrigo neste espaço, que já estavam a trabalhar mas que não tinha tido tempo de pedir a sua Manifestação de Interesse. Tive outras pessoas que tinham acabado de chegar a Portugal e que, de repente, foram confrontadas com uma mudança de lei que não teve qualquer tipo prévio e que, por isso, não tem qualquer tipo de forma de se regularizarem. Digo-te: essas pessoas que chegam a Portugal, esses imigrantes, são chamadas pela economia do país, pelas necessidades do patronato. Olha, vão trabalhar, por exemplo, na apanha de azeitona – estamos no período da apanha de azeitona. Mas chegam cá e são confrontados com uma alteração legislativa não anunciada e, por isso, com a impossibilidade de estarem regulares, o que significa a impossibilidade de terem direitos laborais e também obrigações, nomeadamente de pagarem os seus impostos e de contribuírem, assim, para o erário público.
Tive outras situações de pessoas que pediram protecção internacional, ou seja, asilo no nosso país, mas a quem essa protecção internacional foi negada posteriormente ao 3 de Junho; por isso, quando recebem essa decisão da AIMA ficam sem qualquer via de regularização. Independentemente de terem quem os queira contratar não conseguem regularizar-se. Paralelamente a esta alteração legal, houve alterações de procedimentos que têm sido bloqueios absolutos para vida dos imigrantes. É o caso, por exemplo, da Segurança Social, que está com atrasos inconcebíveis neste momento; um imigrante tem agora de preencher um formulário online para pedir o seu número de Segurança Social, já não pode fazê-lo pessoalmente, o que impede, por exemplo, de de contestar quando esse número é recusado, mesmo que os argumentos dessa decisão não sejam minimamente aceitáveis, mesmo que seja por erro da própria Segurança Social. Mesmo pedindo a Segurança Social online, as pessoas ficam às vezes um mês, dois meses à espera. Além disso, neste momento, é exigido não só a prova de pedido de autorização de residência e o comprovativo de como estás com o processo em curso na AIMA, como é solicitado o contrato de trabalho. Isso é surreal porque é uma pescadinha de rabo na boca: tens vários patrões que não aceitam fazer de forma alguma um contrato sem número de Segurança Social – até porque eles conhecem os atrasos na atribuição do número e não querem correr riscos – e portanto, tens imigrantes que poderiam estar a trabalhar, podiam ser contratados e não podem porque não conseguem aceder à nossa Segurança Social.
Isso abre espaço ao trabalho ilegal…
Estás a incentivar à clandestinidade. Irregularidade e máfias, é o que tu estás a fazer. Também os bancos apertaram as suas regras e tens neste momento os bancos a impedir os imigrantes de abrir conta sem uma autorização de residência. Salvo uma excepção, um banco que, mesmo assim, exige Manifestação de Interesse e que tem outros critérios muito fechados. Ora, um imigrante que tenha Manifestação de Interesse ou autorização para trabalhar em Portugal, mas ainda não tem autorização de residência porque aguarda pelo atraso dos serviços, pode trabalhar e receber o seu salário, mas depois não pode abrir uma conta para que esse salário seja transferido. Os constrangimentos, os bloqueios que se criam diariamente à vida destas pessoas é inacreditável. São inúmeras alterações legais e alterações procedimentais por parte dos serviços públicos que condicionam a tua vida diariamente. Deveríamos resolver estas questões, que são tão fundamentais e que deveriam ser à partida consideradas como as grandes prioridades das políticas de acolhimento e integração, pois tens outros variadíssimos outros problemas que te surgem a partir daí.
No fundo, a situação que ocorreu aqui na Igreja dos Anjos de uma variabilidade mediática para um problema maior e que continua, mesmo sem as pessoas aqui a viver na rua.
As pessoas saíram, estão menos visíveis, mas os problemas mantêm-se. E, mesmo assim, os imigrantes daqui da Igreja dos Anjos ganharam uma visibilidade porque tiveram conjunto de activistas e colectivos que decidiram travar uma tentativa de expulsão daqui do local destas pessoas. Tiveste a comunicação social aqui e tiveste também os activistas que decidiram manter a sua permanência durante estes longos meses, acompanhando o esforço inglório destes migrantes; e isso fez com que este caso tivesse maior mediatismo e fosse conhecido até a nível nacional, mas não é único nem exclusivo. Repete-se por vários pontos deste país e que são situações inaceitáveis.
Os imigrantes da Igreja dos Anjos conseguiram ter processos de regularização mais céleres, mas ainda não temos uma resposta e – convém sublinhá-lo bem – essa resposta depende também do Governo. E quero deixar aqui um alerta muito grande porque temos processos a decorrer, mas nenhum destes migrantes que apresentaram o pedido de atribuição de residência com caráter excecional por razões humanitárias, nenhum deles obteve qualquer resposta até à data; ainda aguardamos a resposta. Estas pessoas viveram dez meses na rua e agora continuam em hostels sem ter o apoio multidisciplinar que tantas vezes foi permitido; e, além disso,continuam também sem resposta aos seus processos de regularização, que são fundamental para acederem a qualquer tipo de outro apoio, como a integração no mercado de trabalho ou o acesso a qualquer tipo de resposta da Santa Casa da Misericórdia.
Ainda há tanto por fazer quanto ao futuro aos imigrantes que transitaram aqui na Igreja dos Anjos, mas também a todos os outros que circulam na nossa freguesia, na nossa cidade e no nosso país.
E os que vão continuar a chegar…
Sim, e volto a dizer: não há invasão nenhuma de imigrantes e a verdade é que há necessidade destes imigrantes. O mercado de trabalho precisa destes imigrantes. No caso dos Anjos, tinhas aqui largas dezenas, chegaste a ter cerca de 120 pessoas aqui acumuladas. Mas quando eu fiz contactos pelo país inteiro, perguntando a entidades patronais, associações cooperativas, etc, se havia a possibilidade de os integrar no mercado de trabalho como direitos, tive essencialmente da região norte inúmeras mensagens a dizer que havia esse interesse, mas que o problema é que não tinham alojamento. E depois precisam deles só durante um tempo curto, por exemplo, dois meses, para fazer as vindimas ou para trabalhar na apanha de frutos. Os imigrantes são necessários nomeadamente na área da agricultura, da pesca, da construção civil, etc, mas não existe nenhuma autoridade, nenhuma entidade que possa coordenar essas necessidades e assegurar que as pessoas possam trabalhar dois meses num sítio na apanha da maçã, depois passarem para as vindimas, depois para a apanha da azeitona, e terem habitação em cada um desses locais. Não há esse levantamento das necessidades.
Voltando aqui ao contexto da Almirante Reis. Foi recentemente anunciado um grande projecto de requalificação deste eixo. Sabemos que qualquer projecto de requalificação urbana tem sempre um lado de gentrificação – um impacto ao nível do comércio, da habitação e do edificado, em geral. Isso tem implicações no tecido social. Este projecto preocupa-te?
Bem, não conheço o projecto de requalificação da Almirante Reis em pormenor. Mas, do que conheço, posso dizer que sou totalmente contra o fechamento do jardim da Igreja dos Anjos. Sou contra grades para impedir que as pessoas possam fruir dos espaços comuns nomeadamente no período da noite e tentar afastar, dessa forma, os sem-abrigo. Isso é uma arquitectura hostil, que já vimos, aliás, com a colocação de pilaretes, de floreiras, com o fechar espaços que são espaços públicos… Isso é manter as pessoas fora da vista e, para os políticos, fora da mente do público gera. Parece-me que é tapar o sol com a peneira e que não se resolve a causa. Isso preocupa-me. Estas acções prévias a esse plano requalificação porque essas ações prévias não têm estado a traduzir-se nessa preocupação social porque têm sido feitas, como já falamos no início desta conversa, de numa forma que não asseguram os direitos destas pessoas, nacionais e não nacionais, e que não as encaminham para qualquer resposta – ou, quando as encaminham, são para respostas que não são satisfatórias porque não asseguram acompanhamento de saúde, social, psicológico… e o acompanhamento psicológico aqui é fundamental (só de imaginar que estas pessoas atravessaram o Atlântico, viram outros a morrer à sua volta, os episódios traumáticos por que devem ter passado…, saber que estas pessoas nunca tiveram qualquer tipo de acompanhamento psicológico até à data, é assustador).

Sim, preocupa-me que esta cidade seja sempre cartão de visita para o turista, cartão de visita para quem aqui passeia e que seja cada vez mais uma cidade de especulação imobiliária e de exclusão, seja para quem aqui viva e quer viver, seja para pessoas estrangeiras chegaram ao nosso país para o enriquecer a nível económico, cultural, social, etc. Isso é extremamente preocupante, não é exclusivo de Lisboa, mas Lisboa é ilustrativo dessa tendência de tornar as cidades em ‘disneylândias’.
Mariana, pedia-te umas notas finais.
Primeiro, é essencial refletir sobre a falência da actuação dos poderes públicos e políticos. Segundo, temos de olhar para algo que é menos falado mas que acho que é muito importante: as possibilidades de auto-organização destas pessoas, para o seu exemplo de resiliência e de integração. E para os activistas que, quando as autoridades não fazem nada, conseguem fazer, ajudar, criar, encaminhar… Não estão aqui a fazer negócios com imigrantes, como foram acusados de fazer, nem são heróis sem capa; mas estiveram cá. As autoridades têm muito espaço de manobra para fazer muita coisa, mas, quando não querem, não fazem. É somente isto. Estas pessoas auto-organizarem-se para fazerem limpezas aqui ao espaço da Igreja, recolha de lixo, limpeza de canteiros. Participaram em torneios de futebol com equipas da cidade. Fizeram refeições para todos com um euro por dia. Foram fazer aulas de boxe, a eventos culturais, participarem nas manifestações, tiveram uma cidadania participativa… Participaram nas reuniões com a AIMA, com o NPISA e com outras entidades oficiais. Discutiram semanalmente como é que geriam a sua cozinha comunitária, o seu dinheiro, os donativos… Isto é inacreditável.
Não me venham dizer que estas pessoas não têm capacidade de integração, que não têm capacidade de auto-organização, não são uma mais valia para este país, ou que não havia nada a fazer. Havia muito a fazer. Foi feito muito pelos migrantes e pelas pessoas que os acompanharam, que depois recebem a animosidade e perseguição, e acusações totalmente infundadas, que são nada mais nada menos do que uma tentativa de silenciamento. Não nos vão silenciar. Continuamos a trabalhar, não aqui no espaço da Igreja, mas continuamos a trabalhar com este migrante nos hostels, e a denunciar aquilo que se passa nesta cidade e neste país, porque é preciso continuar a falar sobre isto.