
Os média, em particular os órgãos de comunicação social, têm um papel directo e poderoso na construção geral do mundo. Como escreve a cientista política Flávia Biroli, “a relação com o mundo é mediada por imagens produzidas e difundidas em escala industrial, fazendo com que nossas referências sejam uma fusão entre o mundo com o qual temos contato diretamente e o mundo que conhecemos pelos ecrãs de TV, pela internet e pelas páginas de revistas e jornais”; e, muitas vezes, “orientamo-nos por um conjunto de informações cuja relevância e pertinência não podemos, na maior parte das vezes, medir sem recorrer aos próprios média”. Os média podem contribuir para a reprodução de estereótipos, para a sua reorganização ou para a construção de novos estereótipos. “Os estereótipos colaboram (…) para que o noticiário atravesse a complexidade dos processos de formação das identidades sem problematizá-los, ao dispor essas identidades como dados objetivos, a partir de valores morais naturalizados.”
Em 2019, morreram 26 utilizadores de bicicleta, registaram-se 106 feridos graves e 2104 feridos ligeiros. Nesse mesmo ano, 134 peões perderam a vida nas estradas portuguesas, a maioria dos quais por atropelamento; 409 ficaram gravemente feridos e contabilizaram-se 5180 feridos ligeiros. Os dados são da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), que registou no ano de 2019 (pré-pandemia) um total de 35 704 sinistros – 78% destes ocorreu dentro das localidades e 75% envolveu veículos ligeiros. Ao todo, 626 pessoas perderam a vida naquele ano em Portugal devido à sinistralidade rodoviária. “São 3 aviões A320 a caírem por ano no nosso país sem qualquer sobrevivente. São pais, mães, filhos, avós, netos, amigos, colegas que partiram cedo demais e deixam de estar entre nós. São mais de mil famílias que ficam destroçadas, são milhares de pessoas afectadas, e é um custo económico e social anual para a sociedade superior a 2 mil milhões de euros”, como coloca a ANSR.
Peões e ciclistas são os utilizadores mais vulneráveis da via pública. Desprotegidos por um desenho urbano que centraliza o automóvel, são muitas vezes vítimas das velocidades excessivas e de uma infraestrutura que não os protege. É por isto que se fala, cada vez mais, em reduzir a velocidade urbana de 50 para 30 km/h e em redesenhar bairros, ruas e avenidas com medidas de acalmia como a redução da largura da via, a elevação de passadeiras ou a criação de espaços de coexistência. Ainda assim, se, apesar de todo esse esforço de ajustar o espaço urbano para proteger os mais vulneráveis, acontecer a colisão de um veículo com um peão, a probabilidade de este sobreviver é muito mais elevada a 30 km/h do que a 50, a visibilidade do condutor é maior, assim como o seu tempo de reacção.
A forma como esta questão da velocidade é representada na comunicação social é da máxima importância para que as cidades possam ser sítios mais calmos e seguros. Também o modo como o problema dos sinistros rodoviários é tratado vai ser essencial para mudar a percepção da sociedade e existir alguma mudança. O jornalista britânico Peter Flax redigiu algumas recomendações, destacando-se uma: evitar a palavra “acidente”, pois esta pode sugerir uma desresponsabilização perante o sucedido, que o incidente ocorreu inesperadamente e sem uma causa deliberada. Muitos incidentes são causados por desatenção, condução imprudente ou mau desenho da estrada, podendo ser, por isso, prevenidos. No momento em que uma destas situações está a ser reportada na comunicação social ou pelas autoridades, não se tem ainda muitos dados para se poder determinar se se tratou de uma situação inocente ou negligente. Por isso, são preferíveis termos neutros como “sinistro” ou “colisão”.
Outro ponto importante passa por reconhecer o factor humano nos sinistros. Não é um carro que atropela fatalmente um peão, mas sim um condutor que, inocente ou negligentemente, mata outra pessoa. Não se vêem notícias de pessoas mortas por facas ou balas, mas antes por um indivíduo armado. Notícias com títulos como “Carro de ministro Eduardo Cabrita atropela mortalmente uma pessoa na A6” desvalorizam a existência de um condutor humano e colocam o foco num objecto inanimado. No relato de sinistros rodoviários é importante ter em atenção que a informação disponível é, geralmente, incompleta, baseada num relatório preliminar da polícia, sem ter em conta todas as testemunhas ou escutando apenas uma fonte – por exemplo, o lado do condutor. Por isso, é importante evitar afirmações especulativas e dúbias sobre o que poderá ter acontecido, evitar culpar a vítima, contextualizar o sinistro no estado da arte da segurança rodoviária ou procurar especialistas que dêem um contexto científico ao sinistro.
“Ao cobrir um suposto caso de agressão sexual, um jornalista competente nunca incluiria uma passagem sobre o que a vítima estava vestindo. Da mesma forma, histórias sobre peões e ciclistas não devem contar se estavam a usar roupas escuras – foram mortos porque alguém a conduzir um objecto de várias toneladas os atingiu. Na mesma linha, as histórias devem evitar mencionar se a vítima estava ou não a usar capacete; a implicação óbvia é que talvez um passageiro atropelado por um autocarro municipal pudesse ter evitado a sua própria morte.”
– Peter Flax
O artigo de Peter Flax é especialmente interessante – inclusive para não-jornalistas – e podes lê-lo na íntegra aqui, na plataforma Medium. Outro recurso interessante é o da Active Travel Academy da Universidade de Westminster, no Reino Unido, que desenvolveu um guia para ajudar jornalistas no tratamento dos sinistros rodoviários. Chama-se Road Collision Reporting Guidelines e foi produzido em colaboração com profissionais dos média, jurídico, policiamento rodoviário, académicos e profissionais de segurança no trânsito, o conselho de ética do Sindicato Nacional de Jornalistas e assessorados pela IMPRESS. Muitas mais organizações e indivíduos estiveram envolvidos desde o início do esboço das diretrizes.

Podes descarregar este Road Collision Reporting Guidelines nesta página, onde podes encontrar recursos que lhe serviram de base. Partilhamos os documentos também neste artigo.
Aquilo que os média dizem e a forma como dizem – isto é, o modo como representam a realidade – influencia a percepção que nós enquanto sociedade temos do que nos rodeia. O que pode parecer um trabalho simples de linguagem, um pormenor ou uma “picuinhice”, é, na verdade, um trabalho da maior importância e que muitas vezes parece ser desvalorizado. Como já se referiu, a comunicação social tem um impacto na forma como os indivíduos vêem o mundo. Muitas vezes, os média são a única forma de contacto que temos com a realidade, porque esta nos é distante. Os média representam o mundo real, descrevendo-o, retratando-o, simbolizando-o – representam pessoas, lugares, objectos, eventos, identidades, conceitos; não o fazem de forma neutra, porque o trabalho jornalístico parte do olhar de um jornalista, que tem os seus conjuntos particulares de ideias, valores, atitudes e identidades, assumidos e normalizados. Também não existem representações “boas” ou “más” no sentido de serem “certas” ou “erradas”, “morais” ou “imorais”; mas devem ser autênticas e justas. Representar é uma questão de poder e, por isso, um acto político.