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O Nuno criou um jardim na freguesia de Alvalade. E agora todos podem fazer o mesmo

Porque é que um cidadão não pode criar um jardim na sua rua e cuidar dele? Se viveres, trabalhares ou estudares na freguesia de Alvalade, em Lisboa, já podes. A Junta de Freguesia lançou um regulamento que é inédito no país e que permite que qualquer pessoa se possa candidatar para tratar de um espaço…

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

Porque é que um cidadão não pode criar um jardim na sua rua e cuidar dele? Se viveres, trabalhares ou estudares na freguesia de Alvalade, em Lisboa, já podes. A Junta de Freguesia lançou um regulamento que é inédito no país e que permite que qualquer pessoa se possa candidatar para tratar de um espaço verde à sua porta. O regulamento estabelece algumas regras, como as espécies que não podem ser plantadas, a proibição de utilização de herbicidas e pesticidas químicos ou a interdição à instalação de vedações.

Para poderes criar e cuidar de um jardim em Alvalade, precisas de submeter uma candidatura à Junta de Freguesia, indicando num pequeno formulário onde gostarias de ter esse jardim e como o pretendes desenvolver, e depois enviar esse documento para a caixa de e-mail [email protected]. Podes juntar elementos adicionais à proposta como fotografias ou desenhos. A Junta irá analisar as candidaturas e autorizar ou não a criação dos jardins urbanos a cada cidadão, que terá, como referido, de viver, trabalhar ou estudar na freguesia.

A Junta de Freguesia de Alvalade pretende, desta forma, criar uma rede de pequenos jardins urbanos, que poderá ser, eventualmente, se existir vontade da autarquia, alargada às outras freguesias da cidade. A Junta diz ainda que em casos especiais poderá atribuir directamente jardins urbanos que comprovadamente já ocupavam o espaço com actividade de jardinagem, ou ainda autorizar para utilização, a título precário, de pequenos espaços ou até de vasos, fora da rede de pequenos jardins de Alvalade, mediante proposta do interessado.

O jardim de Nuno que a Junta destruiu

O regulamento criado pela Junta de Freguesia de Alvalade é único na cidade de Lisboa e provavelmente será inédito a nível nacional. Na verdade, existe em Portugal pouca cultura de cuidar do espaço público porque “as pessoas só vêem a cidade da porta de casa para dentro e ficam à espera que alguém trate do que está para fora”, desabafa Nuno Prates, 54 anos, jardineiro, restaurador de móveis e proprietário de negócios de alojamento local. “Já paguei multas por… plantar.” Nuno vive em Arroios desde sempre e trabalha há cerca de três anos na freguesia de Alvalade. O confinamento levou-o a criar um pequeno jardim à porta do seu atelier, localizado numa antiga garagem no rés-do-chão do número 20 da Rua General Pimenta de Castro. Esta é agora também a morada do Jardim das Plantas Doadas.

Fomos ao encontro de Nuno numa manhã de sol – quando a luz será mais homogénea e melhor para as fotografias. O atelier encontrava-se escondido atrás de um muro verde – uma barreira fresca para dotar o espaço de maior privacidade e que permite que Nuno, quando olha para o exterior, veja plantas em vez de carros parados. Um gradeamento forte, daquele das lojas, impede-nos de entrar. Batemos no vidro porque não há campainha. De dentro vem uma música suave do Spotify (há um computador em cima da mesa como que indicando que algo ficou interrompido ou que o dia de trabalho vai começar). O ambiente é escuro e dá para ver pouco, mas conseguimos identificar vários móveis e peças antigas que parecem não ter a ver umas com as outras mas fazem sentido em conjunto. “Queres um café ou uma água?”, pergunta Nuno quando nos vê à porta (não nos terá ouvido bater, deveria estar ocupado com alguma coisa). “Não, obrigado. Estou bem. Podemos ir lá para fora?”

O Jardim das Plantas Doadas começa à porta do atelier de Nuno e estende-se por todo o corredor verde em frente ao prédio. Quando Nuno começou a plantar em Setembro de 2020, o seu jardim ainda não tinha nome, nem havia intenção de lhe dar um. Nuno apenas queria cuidar do espaço verde em frente ao prédio que a Junta de Freguesia parecia menosprezar e ao qual mais ninguém tinha decidido deitar a mão. Conta que o relvado estava seco porque o aspersor de água não estava a funcionar, e que tentou avisar a Junta mas sem sucesso. Foi então que decidiu contribuir. O Jardim das Plantas Doadas nasceu com sobras dos jardins que a profissão o levava a fazer e, entretanto, também de plantas que vizinhos e outras pessoas começaram a deixar-lhe à porta. Nuno olha para o jardim como uma espécie de galeria de arte, uma peça de autor, um jardim com curadoria. “É a minha colecção” e uma coleção que tem todo o gosto em partilhar com a comunidade.

Nuno orgulha-se de ter ali plantas que não são comuns em espaços públicos “porque costumam ser roubadas”. Diz que gosta dessa diversidade e do registo mais tropical que está a dar ao jardim, e lamenta que as áreas verdes da cidade tenham sempre as mesmas espécies. “Vê-se claramente que é plantada por alguém e não por uma Junta ou Câmara.” Nuno diz que nunca lhe levaram uma planta – parece existir uma empatia. Tem ali ananáses, bananeiras, mangas, papaias e fisálias, entre outras espécies; Nuno explica-nos que o crescimento das espécies pode ser controlado para que ganhem o porte que o seu tratador quer. António, um sem-abrigo que vive ao lado do prédio, é uma espécie de “guardião do espaço”. Sabe sempre o que se passa com o jardim e reconhece as diferentes espécies; mal viu a fisália, “disse logo que o primeiro fruto era para ele”, conta-nos Nuno, que conversa com ele regulamente – diz que ele terá estudos superiores, só que o álcool tê-lhe-á trocado as voltas.

O Jardim das Plantas Doadas, que foi “fruto do confinamento” de Nuno no Outono do ano passado, chegou a Janeiro de 2021 com um percalço. Uma denúncia de um vizinho, preocupado com algumas espécies que Nuno estaria a plantar, levou a que a Junta de Freguesia de Alvalade, de um dia para outro, destruísse uma parte do jardim. Só não limparam todo o terreno porque uma onda de contestação popular, no local e nas redes sociais, se levantou. “Notificavam, perguntavam, mostravam interesse”, esta deveria ter sido a atitude da Junta de Freguesia segundo Nuno, e não a remoção do seu trabalho de um momento para o outro. Pelo menos deixaram as plantas arrancadas à entrada do atelier, refere. A mobilização popular que impediu que a Junta prosseguisse com a destruição do jardim levou também a que um responsável do executivo da freguesia tenha ido ao encontro de Nuno pedir desculpa pela decisão tomada e inclusive oferecer um outro canteiro para tratar. Mas Nuno queria aquele, à sua porta, que tinha começado a tratar porque estava descuidado.

Um erro com final feliz

O erro reconhecido pela Junta de Freguesia interna e externamente levou ao regulamento agora criado e publicado em Diário da República, no passado mês de Maio. O regulamento foi redigido pela Junta com a ajuda de Nuno e de Leonardo Rodrigues, 26 anos – um trabalho a meias e que conjugou a vontade popular com o conhecimento técnico e jurídico de um organismo autárquico. Leonardo é um jovem apaixonado por jardins – gosta de escrever sobre eles, de os fotografar, de cuidar deles –, e agora encabeça uma lista autárquica à freguesia de Alvalade. Mas quando conheceu Nuno, era apenas um cidadão como os outros, preocupado com a cidade e com o seu bairro. Foi Leonardo que deu o nome de “Jardim das Plantas Doadas” ao espaço e que criou uma entrada no Google Maps. Quando soube da sua destruição pela Junta, deu através das redes sociais eco ao caso e terá ajudado na mobilização popular.

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

Nuno olha para Leonardo como uma geração diferente da dele, com conhecimentos de comunicação e de activismo que Nuno diz não ter. “Eu apenas planto.” Nuno já tinha tentado plantar em Arroios, flores à volta dos canteiros das árvores, mas arrancaram-lhe tudo. Mas continuou, mesmo depois de ter sido multado. É que a sua generosidade, a vontade de cuidar do que é de todos e disponibilizar a sua energia e tempo para deixar a rua mais bonita, fala mais alto. Para este jardineiro, profissional e amador, a cidade também é sua da porta para fora e gosta de cuidar dela mesmo que os vizinhos o gozem. E já gozaram. Agora já o respeitam, talvez porque leram ou viram a sua história na comunicação social. “Um vizinho viu-me a apanhar lixo da rua [porque os senhores que recolhem o lixo à noite deixam rastos de sujidade atrás para os varredores apanharem depois, só que ali na zona do atelier não passam os varredores] e perguntou-me se não podia lavar-lhe o carro também.” E Nuno lavou mesmo, mesmo sabendo que estariam a fazer pouco dele. Dias depois, o mesmo vizinho terá passado por ele meio encavacado, conta. “Talvez tenha lido a história aqui do jardim.”

A estranheza de ver alguém a cuidar da sua rua, da rua onde reside, onde trabalha, onde passa, será algo estranho culturalmente em Portugal. Nuno detalha que eram os estrangeiros que mais vinham falar com ele enquanto cultivava o jardim, e que notava que alguns vizinhos até queriam meter conversa mas ficavam só a olhar, afastados timidamente. Em Paris, a autarquia local tem desde 2002 um programa de jardins comunitários, permitindo às pessoas que vivem a cidade cultivar flores e plantas, e cuidar delas seguindo um regulamento. Mas Paris não é caso único neste tipo de programa e regulamentos.

O regulamento da Junta de Freguesia de Alvalade é o culminar de uma história com final feliz: é a história de um cidadão que decidiu cuidar de um jardim abandonado da freguesia e que viu, por momentos, a Junta destruir o seu trabalho, mas, logo a seguir, a admitir o erro, criando, com esse cidadão uma solução benéfica para ambas as partes e, principalmente, para a comunidade. Agora, Nuno pode continuar a plantar, mas agora fá-lo dentro de um enquadramento legal que o protege e o apoia; e, como Nuno, outros cidadãos podem também plantar. Caso tenhas alguma relação com Alvalade e queiras ter o teu jardim na freguesia, podes ler aqui o regulamento e tratar da tua candidatura através deste formulário.

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