Vizinhos de Facebook: por dentro de uma nova forma de cidadania urbana

No Facebook, milhares de cidadãos mobilizam-se pela sua cidade. São grupos de vizinhos que procuram o melhor para o seu bairro ou freguesia, ainda que, por vezes, essa vontade choque com a ideia de um espaço público mais inclusivo.
Gonçalo Matos (fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas)

Gonçalo Matos, 24 anos, finalista de um mestrado em Engenharia Informática e de Computadores no Instituto Superior Técnico, é coordenador do núcleo Vizinhos de Belém. Dedica-lhe pelo menos uma hora por dia. “A hora está garantida mas às vezes é preciso mais.” Vive em Belém, freguesia lisboeta que dizia ser particularmente desinteressada da cidadania. “Não existia uma única associação de moradores aqui.” Gonçalo sempre se interessou pelo que acontecia à sua volta, procurando escrutinar os projectos para a cidade e colaborar com o poder local. Formar os Vizinhos de Belém em Setembro de 2019 surgiu naturalmente. “Só envolvendo as pessoas é que vamos construir a democracia e evitar que o pior lhe aconteça”, entende, defendendo um modelo de cidadania aberto, informado e assente numa intervenção construtiva e colaborativa dos cidadãos junto dos eleitos locais. “As pessoas não devem cair sempre na crítica fácil e alienar-se do que está a acontecer. Têm de sentir que formam uma equipa com quem as governa e só assim também podem andar, com a legitimidade suficiente, em cima de quem está em lugares de decisão.”

Os Vizinhos de Belém são um dos vários colectivos de moradores que têm vindo surgir pela cidade, espontaneamente, para tratar os problemas de cada freguesia, discutindo-os entre vizinhos e procurando, em conjunto, soluções com a Junta de Freguesia ou a Câmara Municipal. O ponto de encontro é no Facebook, um grupo onde convivem mais de 5200 membros – nem todos são da freguesia, claro. “Os movimentos de cidadania estão onde as pessoas estão. Usamos as redes sociais para agregar as pessoas de cada freguesia e permitir difundir as pessoas de forma fácil.” A mobilidade é tema recorrente, assim como projectos urbanísticos, a manutenção dos espaços verdes ou a limpeza das ruas. Há também publicações a pedir recomendações, pedidos de ajuda em relação a animais perdidos, a partilha de fotografias bonitas ou até elogios de vez em quando. O fluxo de novas partilhas é diário e constante.

Numa postura colaborativa, Gonçalo faz uma moderação dos conteúdos que qualquer membro pode partilhar no grupo de Facebook. Assegura que não há comentários de tom publicitários ou insultuosos, e estimula debates em torno de temas importantes, como a construção de uma nova ciclovia ou de um novo loteamento. Para tal, faz uma triagem da informação mais relevante, apresenta-a aos membros, avalia a opinião generalizada do grupo e pede opiniões a pessoas que, no núcleo, estão mais por dentro do tema discutido. Para Gonçalo, este é sobretudo um trabalho de “organizar a Democracia” e também de facilitar pontes de contacto com os políticos. “Não podemos meter numa reunião com um presidente ou um vereador 5200 pessoas, mas aquilo que podemos é levar as provas de que aquele assunto já foi debatido muitas vezes, de que temos a informação de que já foi registado mas não obteve uma resposta, etc. Poupamos as intervenções muitas vezes repetidas de cada um sobre o mesmo assunto e permite que todos os que defendem os mesmos interesses ajudem a fazer subir a prioridade desses problemas.”

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

Os Vizinhos de Belém têm um site que serve de extensão do grupo de Facebook e onde é possível consultar todo o tipo de documentação sobre a freguesia, num exercício de transparência que deveria estar entregue a qualquer Junta ou Câmara. Nesse endereço web, é possível consultar os projectos de mobilidade e urbanismo para a freguesia, seguir os pedidos de informação feitos pelo núcleo às entidades competentes (sobre uma alteração de estacionamentou ou um abate de uma árvore) ou saber as ideias sobre Belém que estão a votação no Orçamento Participativo. O trabalho que Gonçalo desenvolve com muita dedicação e de modo voluntário nos Vizinhos de Belém já foi elogiado por vozes do PS mas também do PSD em momentos públicos. “Falamos com todos os partidos”, diz, garantindo que não existem ambições políticas suas ou do grupo – apenas a vontade de contribuir para o bem da freguesia e da cidade. E Gonçalo fala mesmo com todos – um WhatsApp aqui para o vereador, uma chamada ali com um Presidente de Junta, uma reunião acolá com um candidato autárquico. A paixão pela cidadania é o que o move.

“Falamos com todos os partidos.”

Além dos Vizinhos de Belém, mais sete núcleos compõem a associação Vizinhos Em Lisboa, constituída formalmente em 2018 mas com vida informal alguns anos antes. Existem colectivos de Vizinhos nas freguesias de Areeiro (foi o primeiro a surgir), Penha de França, Avenidas Novas, Alvalade, Alcântara, Estrela e Misericórdia. Nem todos trabalham exactamente da mesma forma, mas existe uma partilha dos mesmos valores de cidadania. A ideia é simples: cada freguesia pode ter o seu movimento de cidadania local e, se os seus valores e modelo de actividade se condadolarem com os da associação, podem integrá-la, poupando nos problemas burocráticos de constituir associação e beneficiando ao mesmo tempo de uma conversa em rede. “Quando temos freguesias contíguas, conseguimos organizarmo-nos muito melhor uns com os outros, quer do ponto de vista formal de trabalho, quer do ponto de vista informal”, aponta Gonçalo.

Estes grupos de Vizinhos são relativamente novos de Lisboa. Apesar de existirem e de continuarem a existir associações de moradores há décadas, há agora uma espécie de actualização desse conceito, uma adaptação aos tempos modernos. Gonçalo prefere referir-se aos colectivos de Vizinhos como “movimentos de cidadania”, até porque não existe a formalidade que uma associação costuma ter, com eleições para cargos de direcção e assembleias entre os sócios. Isso tem vantagens, como a inexistência de um vínculo ao grupo – diariamente os grupos de Vizinhos estão a receber novas pessoas e os membros têm essa liberdade para estar mais ou menos presente em cada momento. “As pessoas vão-se associando consoante a causa e o que está em discussão”; por isso, os grupos não “não são uma coisa estanque” mas algo “em constante desenvolvimento”.

Mas também tem desvantagens. Se o colectivo que Gonçalo Matos ajuda a gerir no Facebook segue princípios de tolerância e liberdade, saudáveis numa democracia que se quer participada por todas as pessoas, outros nem tanto – o ambiente entre membros e moderadores propicia a solidificação de ideias fechadas em bolhas digitais. Estas dão aos utilizadores a ilusão de que estão certos, de que uma maioria concorda consigo ou de que a informação com a qual contactam representa a realidade. Num cenário mais extremo, os indivíduos podem começar a ouvir-se apenas a si mesmos, a dar um valor inquestionável às fontes dominantes e a censurar ou desautorizar opiniões diferentes – formam-se, deste modo, câmaras de eco, onde as vozes integrantes reverberam num invólucro oco. Grupos de Facebook são particularmente propícios a estas bolhas e câmaras de eco, terreno fértil para a proliferação de filosofias populistas – depende das mãos que os alimentam.

A culpa não será exclusivamente humana, pois as interfaces estão desenhadas e algoritmos são pensados para estimular a velocidade em detrimento da profundidade, para levar ao scrolling, ao comentário, ao gosto e à ira. As discussões que se queriam livres e construtivas acabam por dar lugar a confrontos polarizados e divisórios: a colocar ciclistas contra automobilistas, promovendo discursos assentes no ódio e na polarização. Na mesma rede social onde os Vizinhos de Belém, do Areeiro ou das Avenidas Novas procuram construir uma cidadania aberta e informada, há grupos como o Mobilidade com Liberdade (380 membros), o Lisboa Circo Municipal (1,4 mil membros) ou do Movimento Contra as Alterações de Trânsito (6,8 mil membros) a poluir de certa forma o espaço público, digital, onde a cidadania tenta florescer. Nestas comunidades facebookianas, a mobilidade é tema quente e as ciclovias o bode expiratório para criticar o actual executivo camarário liderado por Fernando Medina (PS) e as Juntas de Freguesia (maioritariamente PS). Palavras de ordem como “Merdina Rua” ou “Ele Não” vão correndo pelas caixas de comentário, onde os sujeitos parecem mais empenhados em fazer valer os seus pontos de vista do que em aprender algo novo, em contestar as suas próprias visões e em adoptar uma postura construtiva que os faça evoluir enquanto seres humanos e cidadãos. Há uma agenda clara.

“Os vizinhos são poucos e vamos buscar temas que são transversais à freguesia”

Para Luís Castro, 55 anos, o Facebook é “apenas um instrumento de comunicação, não é o local de discussão”. Luís começou o núcleo Vizinhos de Arroios em meados de 2016, desafiado por Rui Martins que na altura começava, na freguesia ao lado, Areeiro, também um grupo de vizinhos – depois de uma tentativa falhada de fundar a Associação de Moradores do Areeiro (AMA). “Eu aceitei e disse logo que não brinco em serviço. Quando me envolvo, envolvo-me a sério. É o meu tempo.” Os Vizinhos de Arroios já foram um núcleo da associação Vizinhos Em Lisboa, mas, por divergências com a sua forma de fazer cidadania, decidiram no ano passado formar a sua própria associação. Numa freguesia com uma população de cerca de 30 mil pessoas, sendo uma das maiores da cidade, e com uma diversidade cultural riquíssima, é também uma freguesia com inúmeros problemas. “Os vizinhos são poucos e vamos buscar temas que são transversais à freguesia.” 

Luís Castro (fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas)

Luís parece conhecer bem as ruas e os cantos de Arroios, as suas fragilidades e as suas virtudes. Sempre viveu por lá. No seu telemóvel, WhatsApp e e-mail, vai recebendo denúncias de moradores, que reencaminha para a Junta de Freguesia, directamente para a Presidente, com quem diz ter uma boa relação. No próprio dia ou em pouco tempo, recebe indicação de que está resolvido – muitas vezes, por via de uma troca de fotografias por WhatsApp. “Para mim o meu maior gozo é este”, realça, acrescentando que dá o seu tempo à freguesia pelo bem colectivo, não para satisfazer algum interesse próprio. “A cidadania tem é de reclamar. Porque fazer o trabalho bem feito é obrigação de quem lá está. Não temos de andar a dar palmadinhas nas costas”, entende. “O reconhecimento maior é no dia das eleições. Até lá temos de ter uma postura muito crítica e exigente. Prometeu fazer isto e não fez, porquê? Fala-se em mobilidade, porque é que os passeios estão esburacados?”

Foi uma ciclovia, no entanto, que empurrou os Vizinhos de Arroios para a ribalta. A visibilidade da bicicleta na agenda política e de mobilidade da cidade tem agitado as redes sociais, debates na Assembleia Municipal e em reuniões públicas da Câmara, e provocado uma intensa polarização entre ciclistas, que reclamam o seu direito ao espaço público, e automobilistas, que procuram salvaguardar os direitos morais adquiridos ao longo das últimas décadas. Grupos como o Mobilidade Com Liberdade ou o Movimento Contra As Alterações de Trânsito têm contribuído para esta polarização, ódio e desinformação. Em 2020, Lisboa viu o seu número de ciclovias crescer significativamente – foram adicionados mais de 20 km cicláveis à rede que tem agora 125,8 km; foi o maior crescimento anual desde as últimas autárquicas em 2017. Em cima da mesa continua uma aparente estratégia de uma cidade mais inclusiva e a promessa de 200 km até ao final deste ano. Lisboa para lá caminha com cerca de 150 km construídos ou em obra neste momento. 

A ciclovia da Almirante Reis foi uma das novas construídas no ano passado. Foi feita com tinta e pilaretes em poucos dias, às custas de uma via de trânsito no sentido ascendente, numa altura em que Lisboa, como outras cidades mundiais, aproveitaram o contexto pandémico para repensar o espaço público com soluções tácticas e de rápida aplicação de forma a alargar o espaço pedonal e ciclável. Ciclistas agradeceram a ciclovia, pois passaram a contar com um corredor segregado numa avenida que já utilizavam e que melhor liga a baixa ao centro da cidade. Houve corações vermelhos desenhados no pavimento e uma mobilização colectiva para, em massa crítica, percorrer a infraestrutura de uma ponta à outra. Contagens manuais realizadas por investigadores do Instituto Superior Técnico revelaram um crescimento de 140% na utilização da bicicleta naquela avenida, acompanhando um aumento de 25% na globalidade da cidade.

Luís Castro também tem feito as suas contagens na Almirante Reis, levando consigo num caderninho onde vai apontando as pessoas que passam de bicicletas, se são do sexo masculino ou feminino, se são estafetas ou não, se circulavam a alta velocidade ou no passeio. A Almirante Reis foi para os Vizinhos de Arroios um daqueles temas transversais. Começaram por, logo nos primeiros dias da ciclovia, partilhar vídeos e fotografias no seu grupo e página de Facebook, denunciando aquilo que diziam ser um caos no trânsito (e, de facto, às horas de ponta, como ilustravam as imagens, filas de carro prolongavam-se ao longo de uma ciclovia aparentemente vazia). Esses conteúdos que depressa começaram a correr as redes sociais: dos grupos ‘pró-automóvel’ como o Mobilidade Com Liberdade ou o Movimento Contra As Alterações de Trânsito, aos grupos ‘pró-bicicleta’, como A bicicleta como meio de transporte (10,3 mil membros), Massa Crítica Lisboa (9,5 mil membros) e Ciclismo Urbano em Portugal (9 mil membros) – as conversas polarizam-se e parece não haver espaço para meios termos.

Os Vizinhos colocaram uma petição a circular, a qual obteve 1148 assinaturas e acabou discutida na Assembleia Municipal numa sessão online, em Janeiro de 2021, juntamente com duas outras petições mais gerais sobre a política ciclável autarquia: uma pela “suspensão imediata da ciclovização desenfreada” e outra a “apoiar o aumento do espaço pedonal e da rede ciclável”. Mas a petição dos Vizinhos de Arroios pedia apenas “uma melhor ciclovia” para a Almirante Reis, argumentando que a configuração escolhida pela autarquia prejudicava o trânsito e agravava a poluição, não beneficiava o comércio local, nem a qualidade de vida dos residentes e não era segura para os próprios ciclistas. Luís Castro e os restantes Vizinhos não só queriam uma ciclovia diferente, que salvaguardasse “os interesses da população residente e não residente em termos de mobilidade, qualidade de vida e acesso ao trabalho ou actividade comercial”, como reivindicavam que “qualquer alteração ou limitação de acessos à rede rodoviária” fosse o “produto de um amplo consenso e de participação cidadã”, segundo o texto da petição. 

Antes do abaixo-assinado, os Vizinhos tinham promovido um inquérito na freguesia. O processo será comum sempre que querem avaliar a opinião maioritária das pessoas de Arroios, como explica Luís: “Dos 223 arruamentos que existem na freguesia – 261 se contarmos com os becos e vilas operárias –, tiramos 80% em sorteio e fazemos um itinerário por essas ruas. Tentamos recolher 400 assinaturas ou respostas”, dependendo do que está em causa: uma petição, uma sondagem, um inquérito ou uma simples pergunta, como foi com o caso da ciclovia. “Antes de fazer a petição, quisemos saber o que as pessoas pensavam da ciclovia e 95% disse que não concordava. Quando tens cerca de 400 pessoas a responder isto, tens noção do que é a vontade da freguesia.” Luís faz tudo em papel porque acredita ser mais fiável que a via online, onde há mais probabilidade de haver respostas adulteradas e petições com mais que uma assinatura da mesma pessoa. Neste momento, estão a preparar uma sondagem para averiguar as intenções de voto nas próximas eleições. Luís está preocupado com a ascensão do Chega nas próximas autárquicas. “Numa freguesia como Arroios, três eleitos do Chega para a Assembleia de freguesia significaria que não estás a ouvir a população, e isso é dramático”, refere Luís Castro, apreensivo. 

A ciclovia da Almirante Reis (fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas)

Para muitos, e em particular para quem usa a bicicleta como meio de transporte na cidade, a polémica dos Vizinhos de Arroios com a ciclovia foi o primeiro contacto com o colectivo. Muitos lamentam, nas redes sociais, estarem bloqueados no grupo, não podendo interagir com as denúncias e dar a sua opinião. Luís e o núcleo, no geral, são ao mesmo tempo troçados como o “maluquinho de Arroios”, descredibilizando o trabalho que o núcleo tem vindo a desenvolver ao longo de vários anos. Além dos inquéritos e sondagens em papel, promovem reuniões de vizinhos semanal ou quinzenalmente – na pior das hipóteses, mensalmente. Chegaram inclusive a ir à Assembleia da República. “Nunca foram um grupo apático”, defende Gonçalo Matos. Existem diferenças entre o modelo de cidadania aplicado pelos Vizinhos de Belém e restantes grupos associados à Vizinhos Em Lisboa, e o promovido por Luís, assente na tomada de posições em relação a determinados temas da freguesia com base na auscultação, já referida, que fazem das pessoas – é mais fechado, procura menos o consenso ou, pelo menos, procura consensos de outra forma. Apesar das diferenças, Gonçalo e Luís conversam regularmente, sentam-se na mesma mesa de café e Gonçalo até já chegou a acompanhar Luís nas contagens de bicicletas na Almirante Reis – combinaram e chegou de bicicleta. Há um respeito mútuo e soltam-se piadas em jeito de provocação amigável ao outro.

“As redes sociais servem apenas para comunicarmos a nossa mensagem. Somos pragmáticos.”

 

O acesso ao grupo dos Vizinhos de Arroios é restrito a quem mora ou trabalhe na freguesia, e a quem se identifique com as posições tomadas pelo colectivo. Luís diz que os Vizinhos de Arroios não ambicionam representar todas as pessoas e que outros moradores podem começar outros grupos, defendendo outras causas ou posições contrárias sobre os mesmos assuntos. O processo de registo começa com um preenchimento de um formulário e o fornecimento de alguns dados, incluindo sobre a habitação (porque é um tema importante para o núcleo, que integra o MEL – Movimento Morar Em Lisboa). Existe uma validação do registo, a atribuição de um código para aceder ao grupo de Facebook e ainda a integração num dos 12 grupos de trabalho, cada um correspondente a uma causa, por exemplo, mobilidade, higiene urbana ou mobilidade. Os grupos têm o seu canal no WhatsApp e usam o Jitsi (um “Zoom de código aberto”) para fazer reuniões. “Estes núcleos fazem propostas e depois cabe-me a mim enquanto coordenador ir buscar aliados e meter as coisas a funcionar.” Luís conta com algumas pessoas que, na sua área de especialidade, o ajudam aqui e ali através de uma breve chamada ou uma pequena reunião. O maior trabalho dos Vizinhos de Arroios será nos bastidores, entre whatsapps, e-mails, reuniões e chamadas. “As redes sociais servem apenas para comunicarmos a nossa mensagem. Somos pragmáticos.”

Mudar uma cidade: compromissos e diálogos

Mudar uma cidade é um trabalho de equilíbrio. E por causa desse equilíbrio, para não fazer mossa na opinião pública e garantir novos mandatos, há projectos que vão ficando para trás – é o caso da  reconversão da 2ª Circular numa alameda mais verde e integrada na cidade, que teria um corredor central arborizado, passeios em alguns pontos e corredores BUS; ou da ZER ABC, o ambicioso projecto para restringir substancialmente o trânsito na zona da baixa, com efeitos na Almirante Reis e Avenida da Liberdade, acabou suspenso com a pandemia como desculpa. Também o projecto da Avenida da República seguiu com alterações, por forte pressão dos moderadores, preocupados com o que seria uma grande redução da oferta de estacionamento na ordem dos 300 lugares. Acabou por ser criada uma ciclovia bidireccional apenas num dos lados da avenida, em vez das duas unidireccionais, uma em cada lado; no final de contas, acabaram por ser perdidos apenas 60 lugares na praça do Saldanha e na restante avenida até terá havido um ganho de sete lugares, com a opção por estacionamento longitudinal no lado sem ciclovia.

A oposição à reconversão do espaço público, em geral, dá-se sempre que se mexe com a área do automóvel. É assim por Lisboa, é assim por outras cidades. Em Madrid, o projecto de restrição do trânsito na zona central da cidade – Madrid Central –, que o executivo de coligação de esquerda liderado por Manuela Carmen colocou em prática em 2018, acabou cancelado pelo Partido Popular, que chegou este ano à Câmara Municipal. Também em Madrid, o actual Presidente, Martínez de Almeida, já prometeu anular e devolver todas as multas impostas pelo plano, no valor de mais de 36 milhões de euros. Mais: vai anular todas as licenças de ocupação de estacionamento automóvel por esplanadas, os chamados parklets.

Projecto da ZER ABC (imagem cortesia de CML)

Mudar uma cidade é um trabalho de equilíbrio. É preciso vontade política, mas também que a população esteja para aí virada. É preciso tempo. O mais importante é existir uma visão. “Lisboa é capaz de ser a única capital europeia que não tem um plano de mobilidade”, atira Mário Alves, engenheiro civil, especialista na área dos transportes e mobilidade, activista pela mobilidade pedonal, membro da MUBi – Associação Pela Mobilidade Urbana Em Bicicleta. Mário trabalha com várias realidades europeias e conhece bem o terreno no que ao andar a pé ou de bicicleta diz respeito. Um plano de mobilidade descreveria uma visão em que se imagina “com as pessoas o futuro, como gostaríamos que fosse a nossa cidade”. Essa visão, “que até pode ser utópica e optimista”, permite traçar um caminho político e definir medidas para lá chegarmos, como se estivéssemos a caminhar rumo a um horizonte sem fim. “Depois também acontece que a visão vai mudando, daqui a 10-15 anos podemos estar a aproximarmo-nos da visão que se tinha e tornamo-nos ainda mais ambiciosos.” A visão, segundo entende Mário, poderia ser concretizada num pacto ou plano de mobilidade, que poderia ser criado, “demorando um ano e tal”, com o envolvimento de todos – da autarquia aos grupos de ciclistas (como a MUBi), passando por juntas de freguesia, associações ligadas ao automóvel (como o ACP) e núcleos de Vizinhos, por exemplo.

“Isto podia ser simbólico mas se assinarmos todos o documento a dizer que queremos zero poluição ou quase nenhuma poluição na cidade, ao aumentar o número de estacionamento ou a alargar uma avenida, estar-se-ia a contradizer um documento assinado”, diz Mário. “A visão é fácil. Tanto a MUBi como o ACP, por exemplo, poderão concordar na visão, mas nas medidas para lá chegar é que podem não concordar. Mas não se poderia andar para trás. Poderia adiar-se medidas – por não haver um horizonte temporal. Mas pelo menos não se poderia andar para trás. Não se iria poder colocar agora mais uma via porque isso contradiz claramente o documento que assinaste.” “Com este modelo de visão” – contrário à ideia de ‘prever e prover’ em que com cálculos e modelos matemáticos se previa aumentos de procura para um dado horizonte temporal (de cinco anos, por exemplo) e se prometiam novas variantes ou viadutos –, “controlas o futuro baseado numa visão utópica, optimista, não projectas o futuro com base na experiência passada, não estás estás sempre escravo do passado”.

“No século XXI, vai haver mudanças radicais e muito difíceis, que vão mexer muito com a vida das pessoas. Tem de haver muito mais visão partilhada, muito mais participação, co-criação, com as pessoas.”

Mudar uma cidade é um trabalho de equilíbrio. Mas, se as mudanças forem trabalhadas com quem vive, trabalha ou, por outro motivo qualquer, passa tempo na cidade, o processo pode acabar por ser mais acelerado e consensual. Os diversos movimentos de Vizinhos nas redes sociais mostram que há muitas pessoas que, mais que serem chamadas de quatro em quatro anos para escolherem uma proposta política, genérica e talvez superficial para a cidade, querem fazer parte da construção desse espaço urbano, projecto a projecto. Não é que não quisessem antes, mas a internet permitiu novos espaços de encontro e de discussão, e espaços mais alargados. E não é que apenas as ciclovias mereçam discussão, e um novo parque de estacionamento ou via de acesso automóvel, por seu lado, não – as pessoas parecem querer compreender que decisões são tomadas para a sua rua, bairro, freguesia, cidade; querem saber o como, o porquê, o quando; querem ter algo a dizer. E isso é importantíssimo. “No século XXI, vai haver mudanças radicais e muito difíceis, que vão mexer muito com a vida das pessoas. Tem de haver muito mais visão partilhada, muito mais participação, co-criação, com as pessoas”, garante Mário Alves, deixando um exemplo prático: colocar os activistas, utilizadores e técnicos da Câmara em redor de mapas a desenhar a rede ciclável. Este trabalho de participação pública leva tempo, pode demorar um ano, dois anos.

Um dos principais argumentos dos Vizinhos de Arroios em relação à ciclovia da Almirante Reis foi não terem sido auscultados em relação à mesma – nem eles, nem os moradores e comerciantes da zona. De noite para o dia, começaram a ver as marcações e movimentações na avenida e, em pouco tempo, surgiu uma ciclovia. O coordenador dos Vizinhos de Arroios lamenta não ter havido debate. “Os debates fazem-se à priori. Nós fomos confrontados com uma ciclovia, ponto final. Foi-nos apresentada como facto consumado.” E esclarece a sua posição: “Uma coisa é ser contra a ciclovia da Almirante Reis, outra é ser contra todas as ciclovias, as bicicletas ou os ciclistas. Isso é uma ideia completamente errada. Em Arroios, temos já não sei quantos quilómetros de ciclovias, desde as partilhadas às não partilhadas, e nós questionamos uma ciclovia.”

“Uma coisa é ser contra a ciclovia da Almirante Reis, outra é ser contra todas as ciclovias, as bicicletas ou os ciclistas.”

Para que a democracia funcione e para que os cidadãos possam debater, é essencial que os projectos para aquela praça ou rua, seja uma nova ciclovia ou um novo jardim, sejam públicos. Só pressionada pela oposição é que o município passou a disponibilizar os projectos da rede ciclável e, mesmo assim, há muita informação sobre a cidade que continua por publicar ou que está perdida algures entre os meandros dos sites da Câmara, da EMEL, da Assembleia Municipal…, pelos perfis de redes sociais do Presidente ou de vereadores, ou ainda por plataformas de contratação pública como o Base.gov. No entanto, muita documentação fica por publicar, como é o caso dos relatórios anuais do Instituto Superior Técnico sobre a utilização de bicicleta na cidade que referimos anteriormente. Este tipo de informação, transparente e acessível, é essencial numa democracia que se quer saudável, sem movimentos populistas e com participação cidadã. É importante também para que jornalistas possam tratar e esmiuçar a cidade e para as associações com o seu papel activista. “Eu acho que os políticos também se sentem confortáveis com esta falta de documentos, porque se houvesse um documento, um plano de mobilidade, que dissesse que a ciclovia da Almirante Reis vai ser feita até 2022, então a MUBI, a restante sociedade civil e a oposição poderia monitorizar e exigir o cumprimento do plano”, aponta Mário Alves.

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

A ciclovia da Almirante Reis passou a ter “costas largas” para todas as críticas à estratégia de mobilidade da autarquia. O assunto das ciclovias terá levado os organismos políticos a rever as suas estratégias de comunicação. A Câmara de Lisboa, agora, fala de bicicletas sobretudo no Twitter, onde o conteúdo costuma ser mais positivamente recebido, principalmente pela partilha da parte dos chamados cicloactivistas. Simultaneamente, em alguns materiais, o chapéu “Lisboa Ciclável” muitas vezes utilizado para divulgar empreitadas ligadas à bicicleta começou a ser trocado pela chancela “Viver Melhor Lisboa”. Começaram a ser usados chavões como ‘requalificação do espaço público’ ou ‘melhoria da segurança rodoviária’ para, só no meio da descrição das intervenções, se referir a construção de uma ciclovia. Quase sempre, aliás, a criação de uma determinada infraestrutura ciclável surge aliada com a criação de novos lugares de estacionamento automóvel. Juntas de Freguesia começaram ainda a apresentar os projectos detalhadamente à população; a do Lumiar, por exemplo, promoveu uma sessão online para apresentar e esclarecer a ciclovia da Alameda das Linhas de Torres com a presença do vereador e do arquitecto responsável, e intervenções dos fregueses. Os projectos são, no entanto, apresentados como consumados, “o que pode acabar por desmotivar as pessoas”, aponta Mário. A Câmara nem sempre avança com as ciclovias definidas nos planos que anuncia, porque sabe que são precisos compromissos e está atenta à sensibilidade do tema. Na Avenida da Índia, por exemplo, a ciclovia prevista não terá avançado porque não se arriscou mexer com o automóvel; o mesmo estará a empatar a ciclovia prometida na Avenida de Roma, uma artéria com duas a três vias de trânsito (depende do troço) em cada sentido mas muito habitada e sensível do ponto de vista eleitoral.

“Houve bastante cuidado em incluir no grupo de coordenação do pessoas com várias sensibilidades políticas, nunca escondendo as mesmas.”

Mudar uma cidade é um trabalho de equilíbrio. As pessoas parecem dispostas a participar e os políticos a ouvir. Rui Martins regista uma “maior disponibilidade” por parte da autarquia a escutar as propostas organizadas pelos Vizinhos, “mas ainda não aos níveis ideais”; do lado das Juntas de Freguesia, ainda não sente tanta abertura. O grupo que coordena, o dos Vizinhos do Areeiro, é o mais antigo… e o original, por assim dizer. No Facebook, são uma comunidade de 8,8 mil membros. Rui é dos mais participativos e está constantemente na rua, partilhando desde fotografias de pormenores da freguesia a denúncias de problemas a resolver. Os Vizinhos do Areeiro começaram por ser “apenas um grupo de Facebook que estava muito focado em acções de cidadania hiperlocal”. Sobreviveu, logo quando surgiu no início de 2016, às primeiras acusações de se tratar de um “veículo para um movimento autárquico independente”, – um apontar de dedo infundado, porque, diz Rui, “houve bastante cuidado em incluir no grupo de coordenação do pessoas com várias sensibilidades políticas, nunca escondendo as mesmas, assumindo-as com transparência, mas nunca fazendo campanha nem pró nem contra nenhum partido político”. Rui Martins foi, em 2017, número três pelo PS na lista de suplentes da candidatura liderada pelos socialistas com o Livre e o Cidadãos Por Lisboa; e Jorge Oliveira, também um dos elementos centrais dos Vizinhos do Areeiro, esteve na lista do CDS-PP (Coligação Nossa Lisboa). Noutros núcleos de Vizinhos também é possível encontrar várias ligações partidárias entre os coordenadores. No núcleo das Avenidas Novas, Rui Barbosa já foi candidato pelo PSD. No da Misericórdia, Nuno Vasconcellos é primeiro da lista da coligação de Carlos Moedas (Novos Tempos); lista onde também está, no número dois e pelo PSD, Sandra Campos, coordenadora do grupo de Santa Maria Maior. Madalena Natividade é agora candidata pela coligação Novos Tempos na freguesia de Arroios; em Alvalade encontra-se Gustavo Ambrósio Formiga ligado ao PS, na Estrela Paulo de Deus, também PS. Só os Vizinhos de Belém, Arroios e Beato têm pessoas sem filiação política, seja militantes ou listas.

“Os partidos políticos a partir do momento em que começam a ver que há grupos começam a tentar capturar a participação”, diz Luís Castro. “O da Penha de França foi um dos primeiros a ser capturado” por partidos, refere. “Diria que 90% das pessoas que estão nestes grupos estão por interesse” mas garante que o seu interesse é puramente a freguesia – até porque, entende, a cidadania deve ser independente e autónoma, e não é compatível com a política. “Só falta o Bloco de Esquerda convidar-me [para uma lista na freguesia de Arroios]. De resto convidaram-me todos, desde o Chega ao PCP. A mim não me interessa.” Luís apenas quer dividir o seu tempo pela cidadania, entre os Vizinhos de Arroios e outras associações que integra, como é o caso da Transparência e Integridade ou da Frente Cívica.

“Este tipo de grupos são muito apetecíveis para campanhas políticas, especialmente por parte de extremistas e radicais”, aponta Rui Martins. Para o coordenador dos Vizinhos do Areeiro, foi importante estabelecer regras restritas para o que se pode publicar e comentar, e fazer uma moderação activa; só assim os Vizinhos do Areeiro conseguiram manter ao longo deste cinco anos um “nível de urbanidade e utilidade dentro de níveis invulgarmente elevados para este tipo de grupos de Facebook”. Do Facebook, os Vizinhos do Areeiro deram cedo o salto para fora do mundo virtual, marcando presença nas reuniões públicas da Câmara, nas Assembleias Municipais e nas Assembleias da freguesia, promovendo petições online e através do comércio local – “um método que a própria Junta de Freguesia do Areeiro viria a imitar em 2020” –, e pedindo reuniões privadas com os serviços camarários, com vereadores e com deputados municipais. “Os núcleos nunca agiram numa lógica de anti-partidos ou anti-partido no poder: por isso ao longo dos anos procurámos equilibrar a crítica com o elogio, a reclamação com a proposta, o bom com o mau”, entende Rui Martins. O ‘mod operandis’ dos Vizinhos do Areeiro não é muito diferente dos de Belém porque a filosofia é a mesma: juntar cidadãos preocupados, tornar a informação acessível, estimular o debate e promover um diálogo com o poder local.

Logótipo da Vizinhos Em Lisboa

Mesmo sem a chancela da associação Vizinhos Em Lisboa – ou branding ‘Vizinhos de’ –, há quem goste de estar atento ao que se passa à sua volta e que o faça com gosto. É o caso do Olhar Por Telheiras, uma página no Facebook com cerca de 700 seguidores e que se propõe a “olhar” pelo bairro dividido entre duas freguesias, Lumiar e Carnide. “Não só queremos mostrar como é o nosso bairro, como queremos cuidar dele.” Da página cuidam duas Marias, duas arquitectas de 60 anos e picos, moradoras do bairro “desde quase o seu início”, com uma habitante mais jovem. “Como arquitectas, gostamos de mostrar às pessoas como se pode projectar um bairro onde os moradores gostam de viver. Tentamos mostrar os aspectos positivos, a vida de bairro, com jardins, hortas, escolas, comércio, esplanadas e casas”, mas a motivação para a criação da página, em Setembro de 2019, foi outra. “A página surgiu porque o bairro de Telheiras começou a estar cada vez mais sujo e ‘abandonado’ pela Junta de Freguesia [do Lumiar]. Comecei a perceber que, se publicasse fotos na minha página pessoal, poucos dias depois o problema ficaria resolvido, para além de ser contactada pelo Presidente”, conta uma das Marias. “A certa altura, no meu perfil pessoal, eram só fotos de lixo e os meus amigos começaram a protestar.” O papel cívico do Olhar Por Telheiras esgota-se, no entanto, no mostrar. “Não pretendemos ser porta-voz desses problemas junto das entidades competentes, deixando esse papel à ART [Associação dos Residentes de Telheiras], com a qual vão colaborando. “Gostaria que houvesse mais colaboração por parte dos moradores que seguem a página, enviando fotos e partilhando experiências, mas, até agora, isso tem sido praticamente nulo. Acredito que, se os moradores se mobilizassem, sobretudo os mais jovens, o bairro teria outra dinâmica e as entidades sentir-se-iam mais pressionadas.”

O Fórum Cidadania Lx é uma das comunidades cívicas mais antigas da cidade – um movimento “que se destina a aplaudir, apupar, acusar, propor e dissertar sobre tudo quanto se passe de bom e de mau na nossa capital, tendo como única preocupação uma Lisboa pelos lisboetas e para os lisboetas”, conforme a sua própria descrição. Além de um blogue com arquivo a começar em 2004, onde ainda hoje são publicados problemas da cidade enviados por cidadãos, há um grupo de Facebook que torna esse processo mais fácil e imediato. Os Vizinhos de Arroios também a tentar puxar pelas freguesias onde a associação Vizinhos Em Lisboa não tem presente, tendo tido a iniciativa de criar grupos e páginas no Facebook para cada uma delas. A ideia foi pré-reservar os espaços de discussão e começar a reunir um público. Ainda assim, a expressividade destes grupos em número de membros; as publicações são em volumes igualmente reduzidos, algumas repetidas entre os diferentes grupos e estão muitas vezes descontextualizadas da freguesia (por exemplo, com uma ciclovia nas Avenidas Novas a ser discutida no Lumiar ou no Beato).

Participar na cidade

Os grupos de Facebook permitem, em teoria, uma cidadania mais participativa, a discussão dos problemas da freguesia e a mobilização de grupos de pessoas com vista à resolução dessas situações. Estas comunidades podem também ter um papel educativo: as pessoas “não conhecem as competências de cada uma das instituições, nem sabem identificar a autoridade de cada uma”, como que poderes tem a Assembleia Municipal sobre a Câmara ou esta sobre uma qualquer Junta de Freguesia, ressalva o coordenador dos Vizinhos de Belém. “São poucos os cidadãos que conhecem os instrumentos de participação que têm à sua disposição, e menos ainda são os que compreendem a diferença entre uma intervenção numa reunião pública de Câmara ou num plenário da Assembleia Municipal, por exemplo.” Rui Martins concorda: “A confusa repartição de competências entre Juntas e Câmara sempre foi uma das nossas teclas favoritas.”

As sessões da Assembleia Municipal de Lisboa, todas as terças-feiras, são abertas ao público e com transmissão online em directo, mediante inscrição prévia. Este órgão é composto por deputados municipais, eleitos nas autárquicas pelos cidadãos, e responsável pela fiscalização do trabalho executivo da Câmara Municipal, que os cidadãos também elegem. Geralmente o partido maioritário na Assembleia é o partido que governa a autarquia, mas não tem de ser assim. A Câmara de Lisboa realiza reuniões públicas uma vez por mês (também transmitidas em directo), às quais a população também tem acesso. Depois há as Assembleias de Freguesia e a composição de cada Junta de Freguesia, o modelo é semelhante ao municipal, quer do ponto de vista de eleição, quer do de participação pública – excepção para as reuniões públicas, que são uma iniciativa da autarquia, não prevista na legislação do poder local.

Apesar destes instrumentos, Carlos Moedas, candidato pelo PSD e CDS a Lisboa e principal figura adversária a Medina nas próximas eleições, tem uma proposta de Assembleia de Cidadãos. Numa entrevista, Moedas aponta que a corrupção se combate “com mais transparência e com a participação das pessoas” e avança a ideia de criar uma assembleia de cidadãos permanente, porque, defende, “no futuro da democracia vamos ter de deixar de ter os políticos apenas como intermediários, mas também como co-criadores das políticas com as pessoas”. “A maior crítica que ouço em Lisboa é que as pessoas não participam. Temos de ter a participação das pessoas e temos de ter a transparência, e essa transparência é importantíssima para qualquer processo. Quando as pessoas não se sentem incluídas, isso é terrível para a própria gestão da câmara.”

O que Moedas defende não é novo. As assembleias de cidadãos foram inventadas na Grécia, chamavam-se Eclésias – assembleias populares, abertas a todos os cidadãos do sexo masculino, com com mais de vinte e um anos que tivessem prestado pelo menos dois anos de serviço militar e que fossem filhos de pai e mãe natural da pólis (cidade). França tem recuperado esta ideia, como conta o jornal The Guardian. Emmanuel Macron, o Presidente francês realizou uma assembleia de cidadãos a nível nacional, seleccionando aleatoriamente 150 pessoas comuns com mais de 16 anos e de diferentes contextos para discutir o clima. O encontro terminou com Macron a comprometer-se com 15 mil milhões de euros adicionais para a crise climática e a aceitar 146 das 149 recomendações deixadas pelo grupo, colocando-as a referendo este ano. Esta experiência de âmbito nacional pode ser vista em parte como uma resposta à crise populista dos coletes amarelos e alinha-se com outras realizadas regionalmente, por exemplo, na região de Occitane, que abrange cidades como Toulouse, Montpellier e Carcassonne. “Foi o mais próximo que estive em minha vida do poder político. De certa forma, isso me deu esperança na dinâmica da democracia”, comentou Clarisse Pintat, uma chef franco-brasileira de 31 anos de Toulouse.

Em Lisboa existe uma assembleia não de cidadãos, mas de cidadãos-ciclistas. À porta fechada, realiza-se uma vez por mês, sem data fixa, agora por videoconferência dadas as circunstâncias pandémicas actuais. Só em Abril do ano passado é que passaram a ser regulares. “Antes disso, já tinha havido uma ou duas de forma presencial, mas sem serem regulares. A primeira foi em Abril de 2019”, conta-nos Rosa Félix, que participa regularmente nestes encontros. Rosa é investigadora do Instituto Superior Técnico, uma das autoras do trabalho anual sobre a utilização da bicicleta em Lisboa, encomendado pela autarquia, e também activista pela mobilidade ciclável pela associação Cicloda. “As reuniões são um momento para ouvir as associações e grupos informais de ciclistas, as suas preocupações e dar a conhecer as respostas que estão preparadas para a cidade em primeira mão.” 

“Estamos convidados para as reuniões, mas com a condição de silêncio.”

Os participantes são seleccionados pela autarquia, e são geralmente os mesmos de sessão para sessão; entre eles, contam-se alguns dos ciclistas mais conhecidos entre a comunidade e membros de associações. “A meu ver, é importante que aconteçam estes fóruns para ambas as partes. Para a Câmara de Lisboa porque cria logo apoiantes das medidas, dando tempo para as associações (ou pessoas mais activas nas redes) terem uma posição imediata sobre as coisas que vão acontecer – e normalmente apoiar ou conhecer com detalhe o porquê de algumas opções, ajudando na discussão pública. Para as associações e grupos, porque desde há anos que se queixam que as decisões são tomadas sem discussões – e assim criam este espaço em que realmente podem haver essas discussões e sugestões de alteração ainda longe dos olhares formais do público.”

Mário Alves tem um entendimento diferente. Critica o facto de os activistas que participam nas reuniões “escolhidos sem qualquer tipo de critério e transparência”, por exemplo, e diz que “a MUBi já andava a pedir uma comissão de acompanhamento” para as questões da mobilidade activa, entendendo que essa comissão “deve alargada, com um pequeno protocolo a dizer quem são as pessoas que participam” e que a participação deveria ser muito mais aberta e para além dos activistas da bicicleta. “Deve ter por exemplo representantes dos peões, jornalistas, representantes das juntas de freguesia…” O activismo pedonal é menor em relação à bicicleta porque os ciclistas “têm uma identidade política, porque são poucos. Em quase todas as cidades europeias representam menos de 10%. Nas cidades portuguesas são 0,5%, 1%, 2%. A bicicleta também é uma ferramenta carismática. Dá-te asas, quase. É um sistema mecânico altamente poderoso e quem anda naquilo fica apaixonado, não quer outra coisa. E os ciclistas também trazem essa paixão para o activismo”, acrescenta Mário Alves. “O andar a pé diz respeito a 100% das pessoas. Isso é positivo em termos eleitorais, mas é negativo em termos de activismo. Os peões não têm identidade política, nem sabem que são peões.”

A informalidade destas reuniões permite que não existam actas escritas, “uma coisa terrível” porque o que foi dito pode ser contradito passado uns meses; e o que é discutido também não pode sair cá para fora. “A MUBI tem associados e os associados deviam saber o que se passa nas reuniões, que vai acontecer isto e aquilo na cidade, que concordamos com isto mas não com aquilo. Estamos convidados para as reuniões, mas com a condição de silêncio”, aponta Mário Alves. Nos encontros, marca presença o vereador da mobilidade, Miguel Gaspar, mas Fernando Medina já participou por duas vezes, “o que é um sinal de enorme disponibilidade de tempo e recursos para que estas auscultações aconteçam”, assinala Rosa Félix “Às vezes há pontos para apresentação de uma nova ciclovia, por exemplo, e aí ouvem-se as opiniões dos vários intervenientes e a Câmara adapta ou não os seus planos. A maior parte das vezes é isso: a Câmara quer ouvir as nossas opiniões antes de avançar para algo”, conta. “Outras vezes não há nenhum tópico em cima da mesa e aproveita-se para ouvir os intervenientes sobre algum caso específico, por exemplo, o porquê de não haver estacionamentos para bicicletas numa certa freguesia, o fechar uma rua ao trânsito, o ângulo recto de dada ciclovia, o semáforo que não está bem programado ou a árvore que dificulta a visão num certo ângulo.”

Em Portland, nos Estados Unidos da América, existe uma iniciativa semelhante, mas com uma abertura diferente. Chama-se Bicycle Advisory Committee (BAC) e realiza-se mensalmente – na segunda terça-feira de cada mês –, servindo o encontro para discutir projectos do interesse dos ciclistas e os problemas destes, possibilitando um diálogo próximo com a Câmara de Portland. Ao contrário das sessões em Lisboa, o ‘comité da bicicleta’ de Portland é aberto a qualquer cidadão, que pode inscrever-se através de um site caso deseje participar. O Lisboa Para Pessoas contactou a Câmara Municipal de Lisboa, que não respondeu à data de publicação desta reportagem

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

A internet pode revolucionar a cidadania, mas para aumentar a participação pública é também fundamental simplificar os processos para que as pessoas não se sintam desmotivadas pelo que têm de preencher ou enviar. “As associações de moradores como as conhecemos deixaram de conseguir responder à velocidade com que as ideias e os problemas surgem no dia-a-dia. Por isso, de certa forma, deixaram de ser motores de cidadania eficazes”, diz Gonçalo. “Os Vizinhos existem para estimular, questionar e auxiliar as autarquias locais. Somos os primeiros a defender que as autarquias se têm de adaptar a uma nova realidade e a um novo ritmo. O mundo de hoje em dia funciona em tempo real e, muitas vezes, as autarquias estão formatadas para um ‘tempo lento’.”

O CONSUL é uma ferramenta digital, aberta e gratuita, cujo código qualquer pessoa ou entidade pode descarregar para criar a sua própria plataforma de participação pública. É usado em várias cidades mundiais, incluindo várias espanholas, como é o caso da capital, cujo município lançou o Decide Madrid com este software. Nesta plataforma, os madrilenos podem lançar propostas para a sua cidade e debatê-las com os seus vizinhos, numa espécie de fórum. Há votações promovidas pela autarquia e é também aqui que se realiza o orçamento participativo. Uma alternativa ao CONSUL, também aberta e gratuita, é o Decidim, que foi criado em Barcelona e é usado pela autarquia local numa estratégia semelhante à de Madrid.

Lisboa tem dado passos positivos. Foi o primeiro município do país a criar um Orçamento Participativo, reservando uma verba e colocando a população a participar através da apresentação directa de ideias para a cidade e/ou da votação nessas mesmas ideias. Na edição de 2021, estiveram em concurso vários projectos sobre mobilidade ciclável e novos usos do espaço público. Apesar das válidas críticas em relação à demora na execução de vários dos projectos vencedores, não deixa de ser assinalável a adesão das pessoas a este instrumento: este ano foram recebidas 251 propostas, ainda assim quase metade das candidaturas do ano anterior (539). Nesta edição do Orçamento Participativo, a autarquia tem uma verba global de 2,5 milhões de euros para financiar os projectos vencedores, aqueles que após o processo interno de selecção foram validados.

Ao alcance dos cidadãos está ainda a aplicação Na Minha Rua, que permite reportar através do telemóvel, de fotografias e descrições situações que precisem de ser rectificadas na cidade. Os relatórios são processados por um sistema informático centralizado pela Câmara e Juntas de Freguesia, em que tudo é categorizado para ser resolvido. “Uma pavimentação total pode demorar séculos porque é preciso empreitada. Se for uma lâmpada, vão juntando diligências para optimizar os recursos”, refere Gonçalo, que se diz um utilizador da aplicação. A Minha Rua estará a ser redesenhada do backend como frontend para dar resposta às muitas dificuldades que a aplicação tem actualmente, esperando-se que os problemas possam ser resolvidos de modo mais cérebre. “Esta decisão de investimento só acontece porque se prova que aquela aplicação faz todo o sentido na cidade e o seu funcionamento é indispensável. Este trabalho cívico também vale, este trabalho de insistir para que as ferramentas funcionem é uma coisa boa.”

“Processos de discussão pública como o do Martim Moniz, Tapada das Necessidades e loteamentos do Alto do Restelo são bons exemplos de como a Câmara esteve à altura dos desafios que processos participativos abrangentes como esses projectos acarretam.”

No site da autarquia também é possível participar no processo de decisão do futuro da Praça do Martim Moniz. Depois de um primeiro processo pouco participado e que culminou no cancelamento dos projectos de renovação da praça por pressão forte da população, a Câmara Municipal procura agora um maior e melhor entendimento com a comunidade através de um processo aberto de auscultação de ideias e de recepção de desenhos. É possível participar nesta discussão através do site de cidadania da autarquia, onde vão sendo publicados outros projectos para a cidade. Um deles, também polémico, é o da Tapada das Necessidades. Uma petição dos Amigos deste espaço verde, que no final de Março juntava oito mil assinaturas, reúne agora quase 12 mil, obrigando a autarquia a esclarecer o projecto previsto para ali (e que não era público) e preparar um “Plano de Salvaguarda da Tapada das Necessidades”, colocando-o à discussão de todos antes de se avançar com qualquer obra. “Processos de discussão pública como o do Martim Moniz, Tapada das Necessidades e loteamentos do Alto do Restelo são bons exemplos de como a Câmara esteve à altura dos desafios que processos participativos abrangentes como esses projectos acarretam. No entanto, nenhum desses processos partiu da Câmara inicialmente. Só foram possíveis por exigência da cidadania mobilizada”, conclui Gonçalo Matos.

Os loteamentos do Alto do Restelo foram uma das polémicas mais recentes na freguesia de Belém e o trabalho de cidadania dos Vizinhos de Belém, juntamente com o processo de participação pública promovida pela autarquia, terá sido importante para um novo consenso: os novos edifícios previstos, vulgarizados como “torres do Restelo”, vão ter menos altura, resolvendo-se uma das primeiras críticas, mas há também um reforço de equipamentos de utilidade pública e social na freguesia. Mas Gonçalo e os Vizinhos ainda não estão descansados e prometem continuar a exercer a sua pressão construtiva para a melhoria deste projecto urbanístico.

Artigo actualizado a 27/07/2021 com algumas correcções.

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