É um problema que ninguém parece querer resolver porque todos beneficiam dele, e que se torna mais evidente sempre que há eleições. Falamos dos cartazes de propaganda política de grande dimensão, que invadem o espaço público de Lisboa e de outras cidades portuguesas, perfurando pavimentos e espaços verdes, e tirando a beleza a praças e…

É um problema que ninguém parece querer resolver porque todos beneficiam dele, e que se torna mais evidente sempre que há eleições. Falamos dos cartazes de propaganda política de grande dimensão, que invadem o espaço público de Lisboa (e de outras cidades portuguesas), perfurando pavimentos e espaços verdes, e tirando a beleza a praças e avenidas das zonas mais nobres. Na capital, há sempre outdoors deste género no Marquês de Pombal, na rotunda do Saldanha e ao longo da Avenida da República ou na Alameda Dom Afonso Henriques – haja ou não uma ida às urnas para breve, mas intensificam-se em altura de campanha eleitoral.

Em 2019, o El País escrevia sobre estas “muralhas propagandistas políticas” de Lisboa e sobre como “em nome da revolução” se estragam as “praças mais bonitas” da cidade, como o Marquês ou a Praça de Espanha. Num artigo assinado por Javier Martín Del Barrio, então correspondente do jornal espanhol na capital portuguesa, lê-se que “a primeira impressão do turista em Lisboa será que a cidade está em campanha eleitoral” porque há sempre cartazes, “um partido após o outro, com as suas mensagens sugestivas da pessoa mais certa”.
Ano após ano, eleição após eleição, os outdoors gigantes de propaganda política vão regressando silenciosamente aos mesmos sítios onde já estiveram outros, esburacando novamente passeios, danificando de novo jardins e voltando a “estragar” a vista. Noutros pontos da cidade, as mensagens vão-se renovando em painéis que parecem ser fixos e que nunca saem dos locais onde há anos foram instalados. Os cartazes de grande dimensão estão normalizados na paisagem urbana de Lisboa, num cenário invulgar ao nível europeu, e não desaparecem nem com as sucessivas renovações do espaço público que têm vindo a dar à cidade um aspecto mais cosmopolita. A normalização é tal que já ninguém questiona – ou não quer questionar –, e o silêncio da comunicação social em relação a este tema é uma constante. Excepção feita para o antigo jornal O Corvo, que desenvolveu um artigo em 2013 e outro em 2019 – trabalhos que presentemente recuperamos.
O que diz a legislação?
A lei de 1988 que regula a “afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda” refere que compete às câmaras municipais disponibilizar “espaços e lugares públicos” para a fixação de propaganda em cada município. No caso de propaganda em contexto de campanha eleitoral, “as câmaras municipais devem colocar à disposição das forças concorrentes espaços especialmente destinados à afixação da sua propaganda” e “devem proceder a uma distribuição equitativa dos espaços por todo o seu território de forma a que, em cada local destinado à afixação de propaganda política, cada partido ou força concorrente disponha de uma área disponível não inferior a 2 metros quadrados”. Lê-se ainda o seguinte: “Até 30 dias antes do início de cada campanha eleitoral, as câmaras municipais devem publicar editais onde constem os locais onde pode ser afixada propaganda política, os quais não podem ser inferiores a um local por 5000 eleitores ou por freguesia.”

A lei estabelece também que as mensagens de propaganda afixadas não podem “provocar obstrução de perspectivas panorâmicas ou afectar a estética ou o ambiente dos lugares ou da paisagem”, nem “prejudicar a beleza ou o enquadramento de monumentos nacionais, de edifícios de interesse público ou outros susceptíveis de ser classificados pelas entidades públicas”. A mesma legislação tem um ponto específico sobre a propaganda amovível, que refere que “compete às câmaras municipais, ouvidos os interessados, definir os prazos e condições de remoção dos meios de propaganda utilizados”.
A lei datada de 1988 não foi actualizada desde então. Por sua vez, o Manual de Espaço Público da cidade de Lisboa, um documento de carácter consultivo, lançado em 2018, é omisso em relação à comunicação de teor político, mas na página 39 referente a painéis publicitários estabelece que “a instalação de qualquer tipo de suporte para publicidade no espaço público deverá garantir de forma rigorosa a salvaguarda dos valores arquitectónicos e urbanísticos do local, preservando a visibilidade de fachadas, bem como a funcionalidade dos espaços afetados, assim como a sua adequada integração urbanística e arquitectónica”. Noutra página do mesmo manual, relativa à circulação viária, pode ler-se que os painéis publicitários devem ser evitados “nas zonas de cruzamento”, como o Marquês de Pombal, porque são “elementos urbanos” que não são “necessários à regulação e gestão do tráfego”.

Tanto a legislação nacional como o regulamento da cidade aparentam clareza em relação aos locais onde se pode e não se pode fazer propaganda política. Caberia à autarquia criar esses espaços e definir as suas regras. No entanto, um parecer emitido em Dezembro de 2016 pela Comissão Nacional de Eleições (CNE), citado pel’O Corvo, contém uma interpretação diferente. A CNE entendeu, nesse ano, que “os espaços de propaganda que as câmaras municipais devem colocar à disposição das forças concorrentes são meios adicionais, não impedindo a utilização de outras formas e espaços que as forças políticas entendam“ e que “a actividade de propaganda é livre, pode ser desenvolvida a todo o tempo, não carecendo de comunicação, autorização ou licença prévia por parte das autoridades administrativas”. Ou seja, a CNE fez uma leitura da legislação que reforça a liberdade de expressão dos partidos.
Por seu lado, a Câmara de Lisboa diz não ter qualquer forma de controlar a colocação de propaganda política em espaço público, porque, como fonte da autarquia explicou ao jornal O Corvo em 2019, “de acordo com a legislação em vigor, a colocação de outdoors com mensagens de propaganda no espaço público está isenta de licenciamento municipal”, pelo que “as autarquias estão impossibilitadas de terem uma palavra a dizer sobre o enquadramento paisagístico dos suportes de propaganda ou sobre a sua dimensão”. A excepção a que a Câmara de Lisboa se refere na resposta a’O Corvo é a que está descrita no Regulamento municipal de Publicidade, publicado em 1992 e com alterações três anos depois; no artigo 2, lê-se: “Está excluída do âmbito de aplicação deste Regulamento a afixação ou inscrição de mensagens de propaganda, nomeadamente as de natureza política.” O município não saberá, por isso, quantos painéis de propaganda existem na cidade, a sua distribuição numérica por força política e as principais zonas de concentração.
A Câmara de Lisboa referiu ainda a’O Corvo, na mesma altura, que “é indiscutível que a implantação de tais estruturas de grande dimensão nesses locais provoca impactes negativos sobretudo ao nível do enquadramento paisagístico, além de danos nos pavimentos da cidade. Esta situação só pode mudar se a lei mudar e isso só pode acontecer por via parlamentar”. Contudo, apesar de a autarquia não tem propaganda afixada em zonas nobres, os partidos que integram o actual executivo camarário têm. Na Alameda, por exemplo, um grande cartaz da coligação Mais Lisboa, que junta o PS, o Livre e as associações cívicas Cidadãos Por Lisboa e Lisboa É Muita Gente, está ao lado de outros dois, de igual formato, do PSD e da Iniciativa Liberal, como o Lisboa Para Pessoas tive oportunidade de verificar em meados do mês de Julho. Já na rotunda do Marquês de Pombal, conseguimos identificar pelo menos 10 outdoors, incluindo da candidatura Novos Tempos de Carlos Moedas, do PCP, do Bloco de Esquerda, do Chega e do Sindicato Nacional da Polícia – a coligação de Medina não aparecia aqui. Na Avenida da República, o rosto de Medina volta a aparecer próximo do de Moedas na zona do Campo Pequeno, um dos locais sempre mais procurados.

A pandemia dos cartazes
Em síntese, a propaganda política em espaço público é regulada em Portugal, mas não parece existir vontade de cumprir essas directrizes nem de as interpretar de modo consensual. Assim, com excepção da proximidade de património classificado, os partidos têm caminho aberto para colocarem propaganda onde bem entenderem e sem terem de prestar contas à autarquia, à Comissão Nacional de Eleições ou a qualquer outra entidade. No artigo publicado em 2019, O Corvo escutou a posição de Margarida Cancela d’Abreu, arquitecta paisagista, na altura em representação da Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas (APAP); e de José Manuel Parreirinho, o então presidente da Ordem dos Arquitectos.
Margarida Cancela d’Abreu referiu que este fenómeno dos grandes outdoors de propaganda é preocupante pela sua dimensão, e pela dimensão e densidade dos próprios painéis. “Aquilo a que assistimos nas cidades portuguesas, e em Lisboa em particular, é uma obstrução das vistas e uma óbvia poluição visual. Estes painéis interferem com a fruição da cidade, constituem uma concorrência às panorâmicas existentes”, criticou, mencionando que“lá fora, no resto da Europa, este fenómeno não se verifica, não existem painéis nas cidades com esta dimensão e densidade“. “Há locais da cidade onde eles não deviam estar”, considerou, defendendo a realização de “estudos de conjunto, identificando sítios específicos, de forma a enquadrar isto em locais próprios”.
A arquitecta paisagista apontou o dedo à autarquia, entendendo estar “a aplicar mal a delegação de competências nesta área”, tendo em conta o que observava nas ruas. Um entendimento semelhante teve José Manuel Parreirinho. O então presidente da Ordem dos Arquitectos disse que não devemos olhar para esta realidade com resignação porque “há outras formas de fazer isto, sem ser agressivo” – basta que haja vontade das autarquias e se faça uso de algumas das mais elementares ferramentas do planeamento urbano. “Houve uma época, nos primeiros anos da democracia portuguesa, em que os cartazes nas paredes eram um problema. Mas, felizmente, deixaram de o ser, os partidos deixaram de o fazer. Agora, esta questão dos outdoors prevalece. É um bocado selvática a forma como são colocados”, criticou, lamentando a maneira como isso interfere com a leitura do espaço público e do edificado, e salientando também o facto de Portugal destoar em relação à realidade europeia neste aspecto, por no país prevalecer o entendimento que o direito constitucional à livre expressão se sobrepõe ao ordenamento do espaço público.
A pandemia dos cartazes de propaganda política de grande dimensão terá começado em 2001, quando Pedro Santana Lopes, pelo PSD, os trouxe para dentro da cidade que o elegeu como Presidente da Câmara. Até então, este tipo de painéis eram “vistos como uma coisa de periferia, para colocar em terrenos baldios”, como é contado pel’O Corvo num outro artigo de 2013; e as campanhas políticas na cidade eram feitas com cartazes de pequena dimensão, autocolantes e bandeiras. Santana colocou os grandes outdoors “em locais emblemáticos da capital e onde, até então, ninguém ousara”, como relata O Corvo: Marquês do Pombal, Terreiro do Paço, Largo Camões e Rossio. Hoje em dia, destes locais só na rotunda do Marquês ainda se colocam este tipo de painéis e ser-nos-á impossível imaginá-los em plena Praça do Comércio ou no coração da cidade.

Santana foi muito criticado em 2001 e Carmona Rodrigues, que o substituiu durante os seis meses em 2004 em que Santana foi para o Governo, prometeu “limpar a cara à cidade” e reduzir o uso de cartazes de grande dimensão à comunicação de grandes eventos como as Festas da Cidade. Santana, quando regressou à Câmara da capital, prometeu continuar a promessa de Carmona. Mas nós já sabemos para onde a história nos levou. Anos mais tarde, em 2007, José Sá Fernandes concorria pelo Bloco de Esquerda (BE) à Câmara de Lisboa; ficou com o pelouro dos Espaços Verdes, pasta que tem assumido, ao longo de diferentes mandatos, até aos dias de hoje. Colocou no Marquês de Pombal um outdoor onde se podia ler, bem grande, “O Zé faz falta”. Aos olhos do Sá Fernandes de Abril de 2009, esse cartaz foi um erro e, nesse mês, tentou sem sucesso que quatro partidos – PSD, PCP, BE e Movimento Esperança Portugal (MEP) – não enchessem aquela zona da cidade de outdoors.
Invocando a preservação estética do lugar, o vereador notificou as forças políticas para removerem os painéis, mas estas recusaram-se a fazê-lo. Sá Fernandes tentou ainda obter um parecer junto do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (IGESPAR), alertando para a “envolvência patrimonial” do Marquês e de outras zonas. O PSD chegou a apresentar queixa à Comissão Nacional de Eleições (CNE). O braço de ferro não deu em nada, como, aliás, hoje podemos comprovar em Lisboa. A’O Corvo, em 2013, Sá Fernandes dizia que tinham de “haver novas regras, obviamente, pois existem muitas situações em que a propaganda estraga a vista, sendo colocada em áreas que toda a gente considera bonitas”, e que esperava que se mantivesse “o consenso para não se colocarem painéis no Marquês de Pombal”. Sabemos que não se manteve. Em 2019, na mesma resposta supra referida da Câmara de Lisboa ao pedido de esclarecimento da parte d’O Corvo, a autarquia lamentava que os cartazes de grande dimensão tivessem voltado a surgir “depois de, há uns anos, se ter conseguido um acordo de princípio entre várias forças políticas para que não se colocassem outdoors em espaços e vias de grande capacidade, e onde o impacto visual fosse grande”.
Mas a autarquia lisboeta também não terá muita vontade de mudar o paradigma actual e os partidos que a sustentam alinham na mesma estratégia de comunicação que os seus vizinhos da oposição. Na verdade, poderia ser complicado não o fazerem, pois poderiam correr o risco de ter menos visibilidade junto do público, o que não seria desejável num combate eleitoral. Vive-se, assim, numa situação desagradável para a cidade, que será reconhecida por muitos mas ninguém parece querer dar um passo corajoso para resolver. A solução para esta pandemia terá de ser consertada. Mas será que os partidos – a nível autárquico ou na Assembleia da República – irão, em algum momento, entender-se para concertar este problema e abraçar outras alternativas para a propaganda política na rua?