Com financiamento garantido, a cooperativa de estafetas vai finalmente avançar em Lisboa

A Coobi venceu o programa governamental Bairros Saudáveis e já tem uma bicicleta de carga comprada, e outra a caminho. Quer começar a fazer entregas em Janeiro. Ideia surgiu durante a pandemia, que evidenciou a precariedade laboral dos estafetas ao serviço das plataformas tecnológicas.

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

A pandemia de Covid-19 fez a procura pelo take-away e em particular pelas entregas de comida ao domicílio aumentarem substancialmente. Plataformas tecnológicas como a Uber Eats, a Glovo e a Bolt Food que já existiam no mercado beneficiaram deste boom e relançaram, sem quererem, o debate sobre a precariedade dos estafetas – as pessoas que trabalham para essas aplicações sem qualquer tipo de vínculo laboral e, por isso, sem também qualquer tipo de segurança social. Paralelamente, estas plataformas também geraram celeuma por aplicarem taxas elevadas aos restaurantes e outros negócios locais, numa altura em que estas dispunham de alternativas limitadas para darem continuidade à sua actividade.

Em Julho de 2020, um grupo de pessoas reuniu-se num jardim perto da Cicloficina dos Anjos para falar sobre criar uma cooperativa de estafetas em Lisboa, em resposta à precariedade laboral associada às plataformas existentes. A conversa passou depois para um fórum online, onde se chegou a um nome e a um logótipo. Depois foi feito um contacto com a CoopCyle, uma federação internacional de cooperativas de estafetas, para usufruto da sua plataforma tecnológica e também uma conversa com a Câmara de Lisboa. Mas a Coobi acabou por não avançar de imediato e a ideia foi ficando suspensa.

Entretanto, mais de um ano e meio depois da primeira reunião, tudo mudou. Uma candidatura ao programa Bairros Saudáveis – iniciativa do Governo que procura financiar projectos que melhorem a saúde, bem estar e qualidade de vida dos bairros – garantiu à Coobi 38,6 mil euros. Hugo Charbonnier e Fernando Santos, duas das pessoas que se conheceram no fórum online onde começou a ser trabalhada a ideia da cooperativa, são quem estão agora a conduzir o projecto, em colaboração com a associação Cicloda e a cooperativa Rizoma.

O logótipo criado para a Coobi

Hugo, francês a residir em Lisboa, é licenciado em sociologia e acumula esses conhecimentos com um mestrado em desenvolvimento territorial, meio ambiente e gestão de projecto. Já Fernando vem do Brasil; licenciado em gestão, está agora num mestrado em política social na temática do cooperativismo, das plataformas digitais e do trabalho. Hugo nunca trabalhou como estafeta numa plataforma de entregas como a Uber Eats, ao contrário de Fernando. Na Austrália, onde residiu, foi um dos membros pioneiros do DRA (Drivers Rides Alliance), um sindicato que procura reivindicar direitos sociais básicos para os estafetas ao serviço de plataformas tecnológicas. Diz que traz à Coobi um olhar “muito sobre a questão do trabalho decente, pois a minha experiência profissional com o sindicato e o mestrado vai muito ao encontro disso”. Hugo, por seu lado, tem na questão da bicicleta de carga e da “eficiência da ciclo-logística” e essencialmente no potencial de “poder mudar” uma cidade que “tem muita pouca ciclo-logística” a sua maior motivação. “Tenho uma amiga que está a trabalhar numa cooperativa de ciclo-logística em Paris. Isso foi inspirador para mim.”

Coobi quer arrancar em Janeiro

Já têm uma bicicleta de carga pronta para iniciar as entregas em Janeiro de 2022 e outra comprada que, devido à escassez de peças resultado da pandemia, só deverá chegar mais tarde. A Coobi procura agora os primeiros clientes, sendo que estará focada em parcerias entre negócios e não em entregas ao consumidor final. Ou seja, para já não haverá uma aplicação da Coobi para descarregar e pedir um hambúrguer. “Não estamos a ir pelo mesmo modelo on-demand, em que a pessoa entra no telefone, pede uma entrega e em 15-20 minutos tem-na em sua casa, até porque com a nossa bicicleta de carga queremos trabalhar com encomendas maiores”, esclarece Fernando. De uma só vez e numa só bicicleta, a Coobi conseguirá transportar cerca de 180 kg de carga (incluindo o ciclista), e por isso querem trabalhar com agendamentos prévios e entregas organizadas, em que seja possível, por exemplo, organizar um mesmo trajecto que permita fazer mais que uma entrega. De qualquer modo, a Coobi não descarta por completo entregas ao consumidor final, desde que sejam rotineiras e previsíveis. Já para entregar refeições quentes, seria “preciso ter um investimento brutal de muitos trabalhadores disponíveis e flexíveis”, explica-nos Hugo.

Fazer ou não entregas de refeições foi, desde logo, um dos pontos que esteve em discussão na primeira reunião de Julho de 2020 e em outras conversas que se seguiram no grupo online. Poderia ter sido um caminho a seguir caso, por exemplo, a Coobi acabasse por ser o que a Câmara de Lisboa terá equacionado: uma entidade apoiada pelo município capaz de assegurar entregas a restaurantes aplicando-lhes taxas mais baixas, regulando dessa forma o mercado. Em Novembro quando o então Presidente Fernando Medina afirmava à Rádio Observador: “Temos empresas privadas que estão a aproveitar a pandemia para entrar num mercado que não tinham e cobrar taxas absolutamente inadmissíveis aos restaurantes que não têm outra via que não vender aos serviços de takeaway que estão instalados. É revoltante e indigno. (…) É possível desenvolver uma plataforma que não tenha encargos adicionais para os restaurantes e cremos que é da maior importância que isso seja feito rápido.” O projecto nunca chegou a ser concretizado, mas na mesma altura desenrolavam-se conversas nos bastidores, envolvendo elementos da Coobi e uma start-up brasileira de entregas que se distancia dos seus concorrentes com uma maior atenção aos estafetas. A ideia seria basicamente trazer essa empresa para Lisboa, fornecendo a Coobi estafetas mas acabou por não singrar.

Nem Hugo, nem Fernando acharam boa ideia, mas contam que na altura isto “criou uma divisão no grupo, entre os que eram a favor e os que não apoiavam a ideia”. Entretanto, a oportunidade de financiamento surgiu, a candidatura foi feita e a Coobi acabou seleccionada entre um total de 246 projectos de várias partes do país.

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

Todos são estafetas, gestores e donos

Os 38,6 mil euros cobrem, para já, o custo das duas bicicletas de carga adquiridas e dos salários de Hugo e de Fernando. Num espírito de cooperativa, os dois tanto farão a gestão do projecto, a angariação de clientes e a gestão das encomendas, como as próprias entregas. Este espírito cooperativista será extensível às restantes pessoas que vierem a juntar-se à Coobi: vão beneficiar de condições de trabalho justas como estafetas, sendo também proprietários e co-gerentes da cooperativa para a qual trabalham. “Não pretendemos uma divisão entre as entregas e o trabalho de escritório. Nós somos tanto estafetas como gestores de entregas. O objectivo é dividirmos o nosso tempo entre os dois e incluir pessoas que tenham as duas competências”, explica Hugo. “Procuraremos pessoas com várias competências, versáteis, e completamente alinhadas com a estrutura cooperativista.”

Por agora, a Coobi não será formalmente uma cooperativa, pois estará integrada numa já existente, a Rizoma. Esta cooperativa multisectorial – e que se materializa actualmente sobretudo com uma mercearia – terá a sua secção de Serviços inaugurada com a Coobi. “No início, quando ganhámos o financiamento, estávamos mais numa de ter independência e de criar a nossa própria cooperativa, mas com o tempo e com a ligação que temos com a Rizoma, percebemos que afinal fazia mais sentido poupar todo o trabalho burocrático e mutualizar custos, integrando a Rizoma.” Da Rizoma, Hugo e Fernando contam receber apoio em questões legais e financeiras e, por isso, uma pequena percentagem da facturação reverterá para a cooperativa mãe – inicialmente será de 8%, mas este valor vai ser ajustado ao volume de facturação.

Já 2% será para a CoopCycle, federação internacional que integra mais de quatro dezenas de cooperativas em seis países europeus e no Canadá e da qual a Coobi também fará parte. A integração da Coobi nesta federação possibilita o acesso a uma rede de solidariedade internacional entre cooperativas, a redução de custos graças à mutualização dos serviços e a partilha de uma posição colectiva de negociação na defesa dos direitos dos estafetas. A Coobi conta fazer receitas através da aplicação de taxas de serviços que considera mais justas para o comércio local, assim como da cotização dos seus membros através da Rizoma (quem se quiser juntar à Coobi, tem de se juntar à secção de Serviços da Rizoma com a aquisição de três títulos de capital social de 5 euros cada da cooperativa). Também vai ser possível fazer doações à Coobi através da Rizoma, indicando pelo e-mail [email protected] a avisar que aquela doação foi feita para a Coobi especificamente.

A candidatura da Coobi aos Bairros Saudáveis junta, além da Rizoma e da Cicloda, mais quatro associações: a Lifeshaker, a Partícula Sustentável, a Renovar a Mouraria e a MUBi. Com todas estas há ideias a desenvolver – como eventos que tragam a comunidade em redor do tema da mobilidade ciclável e, em particular, da ciclologística –, mas uma das que se destaca é a Lifeshaker, que trabalha com jovens em situação de exclusão social e com a qual a Coobi quer desenvolver uma rede solidária através da mobilização de estafetas para a resolução de necessidades imediatas da população local mais vulnerável. Mas estes serão projectos para o futuro. Por agora, a Coobi terá em breve no ar o seu website, que neste momento está em desenvolvimento, e que ficará em coobi.pt. Interessados em saber mais sobre o projecto, poderão entrar pelo [email protected]. “Em Janeiro é conseguir os primeiros clientes e começar a fazer entregas“, rematam, revelando já terem “vários clientes em vista”.

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