Os Comboios de Bicicletas voltaram à cidade. Acompanhámos os bastidores do programa municipal que procura estimular a autonomia das crianças na cidade e também tirar carros das estradas.

Interrompidos por questões burocráticas, que atrasaram o seu lançamento neste ano lectivo, os Comboios de Bicicletas regressam finalmente a Lisboa. Pelo menos uma vez por semana, crianças um pouco por toda a cidade voltam a poder começar o dia de forma diferente, a pedalar para a escola, acompanhadas por monitores experientes. Os Comboios de Bicicletas regressam agora com 10 linhas, mas até ao Verão deverão surgir pelo menos mais cinco.
A história dos comboios começou em 2015 quando um pai, João Bernardino, começou a levar o filho à escola de bicicleta e a convidar outros encarregados de educação a juntarem-se com os seus mais pequenos. Semanalmente – ou sempre que havia oportunidade –, o “CicloExpresso do Oriente” partia percorrendo as ruas e ciclovias do Parque das Nações, apanhando passageiros pelo caminho até à última paragem, a Escola Básica do Parque das Nações.
No ano lectivo 2019/20, a Câmara de Lisboa decidiu adoptar o “CicloExpresso” e relançá-lo como um programa municipal, com um novo nome e uma nova dinâmica operacional. “É um programa da Câmara, enquadrado nas medidas de promoção dos modos activos e no âmbito da mobilidade escolar”, explica Inês Henriques, chefe da divisão de estudos e planeamento da mobilidade da Câmara de Lisboa, ao Lisboa Para Pessoas. A Bicicultura, cooperativa focada na promoção da mobilidade em duas rodas e que João co-fundou, foi para a autarquia o parceiro evidente para o arranque do projecto. Os Comboios de Bicicletas nasceram (ou renasceram) com um piloto em duas escolas na mesma zona onde tudo começou, o Parque das Nações: a Escola Básica com o mesmo nome e o Colégio Pedro Arrupe. “Esse piloto no Parque das Nações pretendia ser um embrião para a criação formal do programa”, refere Inês. “Lançámos os comboios numa zona de conforto e depois decidimos sair da zona de conforto.” No final desse ano lectivo já se contavam comboios em cinco escolas.

Neste ano lectivo de 2021/22, os Comboios só estão a começar no final do 2º período escolar essencialmente devido a atrasos nos processos burocráticos. O financiamento do lado da Câmara para a Bicicultura voltar a operar os Comboios de Bicicletas não foi tratado a tempo pelo anterior executivo e ficou pendurado pela agenda eleitoral, que impõe limites à contratação pública na véspera das eleições. Foi preciso o novo executivo dar prioridade e continuidade ao programa, levando-o a reunião de Câmara para que, em Janeiro, o financiamento no valor de 55 mil euros pudesse ser aprovado.
Com a papelada tratada e as contas em dia, os esforços concentraram-se no relançamento dos Comboios o quanto antes. As inscrições foram abertas pela autarquia através do seu site nas escolas onde o programa municipal estava a funcionar no final do ano lectivo passado e em novas instituições de ensino que mostraram interesse. A saber: a EB 1 do Parque das Nações e o Colégio Pedro Arrupe, na freguesia do Parque das Nações, o Agrupamento de Escolas D. Filipa de Lencastre, no Areeiro, a EB 1 de Telheiras e a Escola Alemã, no bairro de Telheiras, a EB 1 Sarah Afonso, a EB 2/3 de Paulino Montez e o Jardim-Escola João de Deus, nos Olivais, e a EB 2/3 de Paula Vicente, em Belém.
Crescer com o mesmo orçamento
“Temos um orçamento que dá para um determinado número de comboios e o que temos vindo a conseguir é escalar o programa para mais escolas com o mesmo dinheiro porque vamos envolvendo parceiros, como Juntas de Freguesia”, aponta Inês. “Basta que uma Junta nos disponibilize uma ou duas pessoas, e já é um acréscimo enorme. Já podemos criar outro comboio nessa freguesia, alargar o comboio que já há para mais dias ou até mesmo criar comboios de ida e volta.” Neste momento, a grande maioria dos comboios é executada pela Bicicultura, que recebeu para este ano lectivo um financiamento de 55 mil euros da autarquia para contratar pessoas que possam acompanhar como monitores (ou maquinistas) os comboios, definir as linhas e fazer o acompanhamento das inscrições e dos participantes.
Quando uma Junta de Freguesia decide apoiar um ou mais comboios, disponibilizando os seus recursos humanos, significa que a Bicicultura pode “poupar” recursos financeiros seus e investi-los noutra linha, noutra freguesia. O mesmo acontece com pais que se voluntariam para acompanhar comboios ou até fazer toda a operação prática dos mesmos. Para circular, cada comboio tem de respeitar o rácio de um adulto por cada quatro crianças, pelo que um comboio de oito passageiros terá dois maquinistas, um principal e um auxiliar. À semelhança dos maquinistas recrutados pela Bicicultura, as pessoas de Juntas de Freguesia ou pais que desempenhem essa tarefa também recebem seguros de acidentes pessoais e responsabilidade civil, bem como formação específica. “Temos conseguido criar mais comboios com o mesmo [orçamento]. Para mim, esta é a magia dos Comboios”, aponta a responsável.

A Bicicultura esforça-se para que exista uma proximidade entre os maquinistas e os encarregados de educação, pelo que um contacto telefónico após a inscrição, em que são esclarecidas eventuais dúvidas sobre o programa, é um passo fundamental na preparação dos comboios. O comboio de cada escola é planeado consoante as inscrições e o trabalho começa a ser feito do zero. No caso de as inscrições do ano lectivo anterior se mantiverem para o novo ano, ou de fazer sentido, é mantido o percurso existente com poucas ou nenhuma alteração. Mas, noutros casos, há que começar de uma folha em branco, procurando um trajecto que acomode o maior número de crianças inscritas possível, tenha uma duração razoável para ser exequível e seja seguro.
O percurso não tem de passar por ciclovias, até porque há muitas zonas da cidade onde não existe essa infraestrutura, pretendendo-se mostrar que a utilização da bicicleta pode ser feita em ruas de bairro num modelo de coexistência, desde que as regras de um lado e do outro sejam cumpridas. “Percebemos que a infraestrutura ciclável é um ponto a favor, embora não seja determinante e não possa sê-lo, caso contrário não podia haver comboios em muitos sítios”, refere Inês. O recurso à Polícia Municipal para zonas mais agrestes, onde seja necessário “cortar alguns troços no momento de passagem do comboio” ou mesmo acompanhar os comboios, está pensada mas “ainda não foi preciso”. “Mas estamos sempre preparados.”
Linhas em função da procura
“O desenho da linha é feito em função da procura. Não oferecermos uma linha fechada”, afirma Inês. No arranque do programa municipal em cada ano lectivo, os pais e mães inscrevem-se indicando o código-postal da sua residência, mas quando a linha fica mais consistente já é divulgada como tal, e com as respectivas paragens, podendo os encarregados de educação fazer a inscrição na paragem pretendida ou indicar outro código-postal caso nenhuma lhe sirva. “Queremos que todos os miúdos que se inscrevem tenham uma resposta, que possam entrar no comboio.” Tenta-se que os percursos passem à porta de cada criança ou com pequenos desvios – a participação dos pais e mães neste processo é também uma constante. Não sendo algo estanque, as linhas dos comboios podem mudar com as novas inscrições – de repente, pode fazer sentido um desvio para apanhar uma nova criança e/ou fazer uma pequena alteração no percurso sem torná-lo mais demorado para que a experiência para esse novo inscrito seja mais agradável. Sim, as inscrições nunca fecham e ao longo do tempo é normal haver novos passageiros interessados no trajecto; a Câmara explica que, à medida que os comboios vão ganhando presença nas ruas, a procura aumenta – e também vão aparecendo outras escolas interessadas.
O trabalho de definição do percurso não é imediato pois implica conjugar inúmeras variáveis e a geometria urbana da cidade – atravessada em alguns bairros por viadutos – nem sempre facilita o desenho de linhas atractivas para os actuais e para futuros interessados. Esta tarefa cabe à Bicicultura, que, a partir das inscrições recebidas do lado da Câmara de Lisboa, está encarregue de toda a operação técnica e execução no terreno. “A coordenação geral do projecto compete à Câmara, a comunicação compete à Câmara. Ou seja, todas as questões transversais são asseguradas pela Câmara. Depois há um nível intermédio de coordenação que pressupõe um conhecimento técnico que nem todas as associações têm e que passa, por exemplo, pelo desenho da linha. E depois há um terceiro nível que é de execução pura e dura, que passa por ter monitores que executam aquela linha”, aponta Inês. “Ainda estamos a estudar como é que vamos organizar estes três níveis, sendo que neste momento os níveis de coordenação técnica e de operação estão com a Bicicultura.”

A Câmara de Lisboa admite que a operação dos Comboios de Bicicletas possa ser alargada a mais entidades locais. Afinal de contas, trata-se de um programa municipal e isso significa que, à medida que o projecto cresça na cidade com mais escolas, poderão ser feitas outras parcerias no âmbito do RAAML (Regulamento de Atribuição de Apoios pelo Município de Lisboa), que procura apoiar associações, cooperativas e outras entidades que contribuam para o desenvolvimento cultural, social, recreativo e desportivo da cidade e que sejam consideradas de interesse municipal. “A nossa ideia é escalar este programa” e pode fazer sentido “abrirmos uma call às associações que entendemos que reúnem as condições técnicas para operar o programa. As associações candidatam-se e podem ser apoiadas pela Câmara na medida da operação que realizarem. Isso está previsto. Não aconteceu neste ano lectivo mas, se houver condições, esperemos que no próximo já possa ser assim”. Por exemplo, uma entidade de Belém pode operacionalizar os comboios naquela freguesia, enquanto que outra em Marvila concretiza o programa naquela parte da cidade.
Os Comboios de Bicicletas são mais populares entre crianças do 1º Ciclo, mas costuma haver inscrições do 2º Ciclo também mas nem sempre é possível compatibilizar os dois níveis de ensino pela incompatibilidade horária: no 2º Ciclo existe um maior desfasamento de horários de entrada entre diferentes turmas, enquanto que no 1º Ciclo é comum os mais pequenos entrarem às oito. Por outro lado, as dinâmicas de comboios com alunos mais novos e mais velhos também pode ser difícil – pode acontecer que os alunos dos 2º Ciclo fiquem cansados com o ritmo mais lento dos do 2º Ciclo, mas também que “os mais velhos ajudem os mais novos”, como conta Sofia Knapič, também da Direcção Municipal de Mobilidade, a partir de uma experiência num comboio no ano lectivo passado no Agrupamento de Escolas D. Filipa de Lencastre que ela própria acompanha.
Existem e podem existir comboios organizados informalmente entre a comunidade. Mas ao virem para o programa municipal, as crianças recebem o seguro de acidentes pessoais e responsabilidade civil e toda a estrutura de comunicação e de operação da Câmara de Lisboa. Foi o que aconteceu com o comboio da Escola Alemã, que arrancou em Setembro por iniciativa da mãe Rita Ferreira e de outros encarregados de educação; com o regresso do programa municipal, a Escola Alemã juntou-se. O comboio da Escola Alemã foi, por outro lado, um dos que nunca parou mesmo com os Comboios de Bicicletas oficialmente suspensos. Também no Parque das Nações o pai Gonçalo Peres continuou a levar crianças para a EB do Parque das Nações à sexta-feira sempre que podia. “Todos os Comboios de Bicicletas [ao abrigo do programa municipal] têm de ter coordenação da Câmara. Não há comboios que não tenham o nosso acompanhamento, que não sejam comunicados por nós e que não tenham as nossas regras”, explica Inês Henriques, assegurando que a autarquia permite e respeita comboios que surjam e funcionem de forma autónoma na cidade. Para a responsável municipal, é evidente: a Câmara de Lisboa dá confiança. “Há muitos pais que não vão nos comboios. Entregam os miúdos e vão às suas vidas. Os miúdos vão sozinhos dentro do comboio.” E fazem isso “desde o primeiro dia”, acrescenta Sofia. “Isto revela que os pais têm confiança naquela estrutura. É diferente entregarem as crianças a um comboio que é operado por um conjunto de pais que conhecem bem. Quando se trata dos nossos filhos, temos mesmo de ter confiança. E eu acho que é essa a diferença”, acrescenta Inês.

Benfica e São Domingos também vão ter comboios
Em Abril, deverão arrancar comboios nas freguesias de Benfica e de São Domingos de Benfica, no âmbito de uma proposta vencedora do Orçamento Participativo (OP) de 2021. O projecto Escolas Com Pedalada pretende o lançamento de comboios na EB 2/3 Professor Delfim Santos, no Externato Fernão Mendes Pinto, na Cooperativa de Ensino de Benfica e na EB 1/2/3 Pedro de Santarém, e ainda aprendizagem do uso da bicicleta em contexto fechado e na cidade, acções de sensibilização da comunidade escolar para a adopção de comportamentos seguros no estacionamento automóvel e circulação na envolvente escolar, e bancos de bicicletas na escola para aulas de educação física e outras actividades escolares.
De acordo com a Câmara de Lisboa, os comboios de bicicletas nestes agrupamentos de ensino só não podem ser integrados no programa municipal, usando o mesmo nome e a mesma comunicação, porque as regras do OP não o permitem. Mas, na prática, as regras e o modo de operação dos comboios será o mesmo. “Vão seguir as regras do programa e vai chamar-se Escolas Com Pedalada, e vão ser num território que ainda não tínhamos testado”, aponta Sofia. Com 622 votos, o Escolas Com Pedalada foi um dos projectos vencedores do OP de 2021 e é o único já em execução desta edição.

Promover a autonomia das crianças na cidade e retirar carros das ruas, oferecendo aos mais pequenos pelo menos uma manhã diferente por semana, é um objectivo central do programa municipal de Comboios de Bicicletas. Um dia, este programa poderá ser algo estrutural no panorama da cidade, abrangendo todas as instituições de ensino e com uma dotação orçamental que permita esse objectivo. Os Comboios de Bicicletas têm, no entanto, vindo a crescer na cidade e a conquistar a sua posição dentro da Câmara de Lisboa – prova disso foi a continuidade do programa pela nova vereação de Mobilidade, enquanto que outras iniciativas como o apoio ao banco social de bicicletas Selim ou as verbas para o Programa de Apoio à Aquisição de Bicicletas (PAAB) ficaram suspensas. “No fundo, os Comboios de Bicicleta são uma óptima aula prática de circulação na cidade”, sintetiza Sofia Knapič. “Sei que é diferente circular em grupo do que circular sozinho, mas às tantas os miúdos vão juntando-se e começando a andar eles próprios sozinhos.” “O objectivo máximo é a autonomia das crianças… e mesmo dos pais”, acrescenta. “Temos vários pais que passaram a andar de bicicleta na cidade, depois de começarem a acompanhar os comboios. Começaram a fazer os regressos com os miúdos e depois a ir de bicicleta para o trabalho.”