Jan Kamensky, o “jardineiro digital” que veio a Lisboa mostrar cidades possíveis

O designer gráfico alemão Jan Kamensky começou durante a pandemia a imaginar cidades sem carros, com mais pessoas e verde nas ruas. Não quer ser realista, quer pôr-nos a imaginar ruas e praças diferentes, e veio a Lisboa para criar uma “utopia visual”.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Jan Kamensky não é arquitecto, nem urbanista, nem algo do género. Apresenta-se como um “jardineiro digital” e começou no início da pandemia a reimaginar o espaço urbano, a partir da sua cidade-natal, Hamburgo. “O projecto começou como uma experiência no início da pandemia. As ruas ficaram vazias e para mim isso foi uma inspiração.” Pegando em fotografias e vídeos, e fazendo uso dos seus conhecimentos de design gráfico, Jan tem vindo a animar praças e ruas de diferentes cidades, trocando os carros por pessoas, eléctricos, bicicletas, árvores… Veio a Lisboa neste fim-de-semana para produzir na capital portuguesa uma das suas “utopias visuais”.

“Temos de ser educados. Convencer o outro é muito mais difícil quando se é emocional”

O convite para Jan vir a Lisboa surgiu da parte do colectivo activista Lisboa Possível, ao qual a associação ambientalista ZERO se juntou. Entre si, dividiram os custos, incluindo a renumeração do trabalho que o jardinheiro alemão vai produzir em Lisboa e que deverá ser publicado até ao final do ano. Neste domingo ao final do dia, o Lisboa Possível e a ZERO promoveram um encontro com Jan e a comunidade na Biblioteca Municipal dos Coruchéus, em Alvalade – apareceram cerca de duas dezenas de pessoas, interessadas em ouvir Jan, conhecer o seu trabalho e conviver, com cervejas e um bolo com forma de ciclovia.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

A conversa na Biblioteca dos Coruchéus, moderada por Ksenia Ashrafullina, um dos rostos do Lisboa Possível, durou mais de uma hora e teve transmissão no YouTube, onde ainda pode ser vista. Logo no início da sessão, a audiência foi desafiada a fechar os olhos, a imaginar uma rua de Lisboa e a descrevê-la numa palavra: ouviu-se “ansiedade”, “verde”, “quente”, “injustiça”, “confusão” ou “poluída”, por exemplo. Pouco depois, o exercício repetiu-se recuando 100 anos na imaginação, e “Natureza” ou “pessoas” foram algumas das palavras que surgiram.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Para Jan Kamensky, é difícil imaginarmos as cidades de outra forma, a transformação do espaço urbano e dos sistemas de transporte para prioritizar o automóvel é “relativamente nova”, começou nos anos 1920. É por isso que no seu trabalho procura mostrar como as cidades poderiam ser. “Eu sei que exagero algumas vezes”, confessa, dizendo de seguida que o seu papel não é ser realista – isso é a tarefa dos engenheiros. “Quero que o meu trabalho chegue também aos condutores de carros, quero que vejam [as animações], que sorriam e que, se calhar, passem a ver [a cidade] de outra forma.” – prossegue.

Para si, são fundamentais relações calmas e de empatia nas cidades, e formas positivas de espalhar a mensagem e incentivar à imaginação. “Temos de focar em estar calmos e pensar em soluções. Quando se é agressivo não se pensa em soluções. Temos de ser educados. Convencer o outro é muito mais difícil quando se é emocional.” Dando o seu exemplo de um conflito recente com um automobilista, enquanto circulava de bicicleta, o alemão partilhou o seu modo de interação. “Mantive-me calmo e tentei explicar-lhe” porque agiu mal, “e acho que ele percebeu”. Jan acredita que, não mantendo uma postura serena, esse automobilista poderia no dia seguinte descarregar a sua frustração conduzindo de forma ainda mais agressiva. “Treino-me a mim mesmo para controlar a raiva”, desabafou. “Não conseguimos combater a raiva [do outro] com raiva nossa. Temos de ser educados com a pessoa mesmo que não tenha razão.”

Jan defende que para pensar em soluções apelativas para todos não podemos continuar a separarmo-nos entre condutores, ciclistas, peões, e temos de pensar para além dessas categorias, de uma forma interseccional. “Não faz sentido essa separação. Dessa forma, não conseguimos encontrar empatia. Nem todos os condutores querem andar de carros. Têm de. Às vezes tem a ver com sentirem-se mais seguros. E não falo só de mulheres, mas também de pessoas LGBTQI+.”

“A mobilidade é a grande prioridade [nas ruas das cidades], mas porquê?”

Porque algumas pessoas têm mesmo de usar o carro, o jardineiro digital alemão optou por não colocar pessoas dentro dos veículos – reforçando que a ideia não é culpabilizar os condutores. “Não mostro pessoas nos carros. O carro é o objecto.” Em quase todas as suas animações, os veículos ruidosos e poluentes aparecem a evaporar das praças e ruas para, em seu lugar, nascerem árvores, espaços verdes e flores.

As pessoas aparecem então, juntamente com objectos de mobilidade que se enquadrem na visão de cidade de Jan, como a bicicleta ou o eléctrico. O ruído dos automóveis é trocado pelo barulho de pássaros e de conversas; o fumo dos escapes desaparece, e as cores tornam-se mais vivas; nascem árvores e arbustos, aparecem zonas relvadas, apontamentos de água e flores. A diversidade também é uma das preocupações de Jan, que, sabendo que “é difícil representar toda a sociedade”, procura espelhar essa heterogeneidade ao nível de género e etnia, não esquecendo também pessoas com mobilidade reduzida.

Actualmente, as ruas tornaram-se espaços focados na mobilidade, enquadra Jan; são pensadas para o trânsito mas “podem ser uma sala extra” das nossas casas, onde podemos interagir com os vizinhos, fortalecer sentimentos de comunidade ou usufruir de um espaço diferente dos que temos ao dispôr. “A mobilidade é a grande prioridade, mas porquê?”, interrogou retoricamente a audiência. Partilhando o seu caso pessoal, Jan tornou a sua questão mais concreta: vive em Hamburgo num bairro “não muito longe do rio” e consegue “pegar na mala e um livro” e encontrar esse espaço silêncio. “Se não temos uma varanda ou um quintal, é importante termos um parque que possamos usar e que não seja muito longe.” As ruas e praças urbanas podem também ser esses refúgios de harmonia em plena cidade.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Sobre as reações aos seus vídeos, Jan contou que recebeu uma vez um comentário num vídeo de Berlim de uma pessoa que ele queria transformar a cidade no campo. Mas “porque é que vida é estar sentado num carro e porque é que flores, verde e água é ser campo?”. Transformar as cidades deve, na sua perspectiva, começar nas pessoas e na mudança da mentalidade individual. “A mudança começa no estado de espírito”, diz. Ao longo da sessão na Biblioteca dos Coruchéus, o orador insistiu muito na ideia de que se queremos mudar a cidade temos de começar pela forma como cada um de nós pensa.

O activismo começa quando pensamos nas coisas de diferentes maneiras. Aí tornamo-nos activistas. Começa na mente.” Para si, todos podemos ser activistas sem nos afirmarmos como tal, participando simplesmente nesse mindset. “Temos de começar individualmente e pode ser que inspiremos os outros e a sociedade.” O ciclo de transformação inicia-se nas pessoas, “de baixo, na mentalidade”, mais do que nos políticos que nos representam actualmente. “Se a mentalidade mudar, as pessoas vão mudar também o sítio onde colocam o seu voto.”

Uma Lisboa colorida e poluída

Das poucas horas que tinha ainda estado em Lisboa (chegara no sábado à tarde), Jan Kamensky disse que encontrou uma cidade com “cores” e “cheiro” a poluição. Mas há mais parecenças com outras cidades do que diferenças, aponta. Não precisou de muito tempo para concluir que“Existe uma baixa prioridade para peões e mobilidade reduzida”, e, em jeito de brincadeira, foi peremptório ao afirmar que “há muito trabalho para fazer” e que isso também significa que há muito para ele fazer, mesmo que o seu seja só ao nível digital. Na sessão na Biblioteca, mostrou vários trabalhos que tinha feito, incluindo uma distopia – “é a única distopia que fiz” — feita para um evento de automóveis norte-americano (podes vê-la em baixo) – e uma timelipse (que podes ver em cima).

O site de Jan (captura de ecrã por Lisboa Para Pessoas)

Jan começou no início da pandemia de Covid-19 em Março de 2020 e, desde então, o seu trabalho foi passando fronteiras através do Twitter. A situação de emergência pública confrontou-nos com cidades vazias, e lançou a discussão sobre a distribuição modal nas cidades e os usos dados até então ao espaço público. Em vários cantos do globo, desenharam-se planos de “resgate” desse espaço ao automóvel, com a pedonalização de ruas, a criação de novas praças e a construção de ciclovias pop-up. Algumas cidades desistiram ou abrandaram esses planos pouco depois, e com os desconfinamentos e retomas económicas o paradigma centrado no carro foi regressando aos poucos e poucos.

No domingo durante o dia, Ksenia acompanhou Jan num passeio por Lisboa e, nesta segunda-feira, continuaram a percorrer as ruas e praças da cidade em busca do local ideal para uma “utopia visual”. O resultado será depois publicado no canal de Vimeo e site de Jan, onde é possível ver as restantes animações, e também nos canais do Lisboa Possível e ZERO.

O artista e activista alemão desabafou que chegar a Lisboa não foi fácil, pois deixou de viajar de avião por razões ambientais. Prefere o comboio e, da Alemanha para Lisboa, precisou de passar pela precária ligação ferroviária entre Espanha e Portugal que obriga a três ou quatro transbordos e que demora 11 horas. “Não é muito confortável [vir de comboio desde a Alemanha] mas vale a pena”, contou, desafiando a audiência a reservar tempo para a viagem e a divertir-se com ela caso queiram replicar a experiência. “Façam pequenas etapas. É muito importante que gostem da viagem.”

Fotografia de Lisboa Para Pessoas
O bolo do convívio (fotografia de Lisboa Para Pessoas)
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