Um dia a pedalar, porque não?

Opinião.

Se, por um lado, a iniciativa “Um Dia a Pedalar, Porque Não?” foi um êxito por mobilizar 66 empresas que se organizaram, envolveram e mobilizaram as suas equipas de trabalho, com 277 pessoas a experimentar usar a bicicleta para o trabalho, por outro, a participação nas edições entre 2013 e pelo menos 2015 parece ter…

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Em 2011, a iniciativa “De Bicicleta para o Trabalho” foi lançada de forma experimental, pela Lisboa E-Nova – Agência de Energia e Ambiente de Lisboa, com o objetivo de sensibilizar os funcionários da Câmara Municipal de Lisboa para a necessidade de reduzir os impactos ambientais da mobilidade centrada no automóvel e para promover a bicicleta como uma alternativa mais saudável e com menos impactos negativos no ambiente. O desafio procurava aliciar os funcionários da Câmara da capital a experimentarem, por um dia, a deslocar-se de bicicleta para o trabalho, sendo esse dia o Dia Europeu Sem Carros, que está integrado na Semana Europeia da Mobilidade (SEM). Para incentivar mais participação associou-se um passatempo com oferta de brindes e um prémio para participantes. A iniciativa “De Bicicleta para o Trabalho” foi uma ação de sensibilização inédita em Portugal até essa data, o que despertou o interesse da imprensa e de várias empresas e instituições, e marcou mais um pequeno passo para legitimar a bicicleta como modo de mobilidade viável.

No ano seguinte, a iniciativa foi reformulada para incluir uma participação mais alargada, aberta a empresas, instituições e estabelecimentos de ensino sediados no concelho de Lisboa. Devido ao crescente interesse, nos anos seguintes a iniciativa passou a ser aberta à participação de entidades sediadas fora do concelho de Lisboa, no entanto, sem poder participar no passatempo. O interesse foi tal que, logo em 2012, participaram 48 entidades, crescendo para 88 em 2013, estabilizando com 84 em 2014, 90 em 2015, e 68 entidades em 2016, a última edição até à retoma este ano.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Com um novo nome, “Um Dia a Pedalar, Porque Não?”, a iniciativa foi retomada e alargada em 2022, passando incluir no passatempo entidades sediadas no concelho da Amadora, por este município ser também um dos associados da Lisboa E-Nova. Nesta edição, participaram 66 entidades, cinco das quais da Amadora. Um inquérito de seguimento será enviado a todos os participantes após a entrega dos prémios, que decorrerá esta sexta-feira, dia 30 de Setembro, para tentar promover acções de utilização mais frequente da bicicleta para o trabalho e para a escola, a serem desenvolvidas no âmbito da dinâmica da empresa, estabelecimento de ensino ou organismo que participou.

Apesar do dia “De Bicicleta para o Trabalho” ter sofrido um interregno entre 2016 e 2022, em 2017 a Área Metropolitana de Lisboa (AML) ainda participou na iniciativa European Cycling Challenge (ECC2017), onde várias cidades europeias competiam para realizar mais quilómetros percorridos de bicicleta durante o mês de Maio desse ano. Cada cidade correspondia a uma equipa, que por sua vez era composta de subequipas, que no caso da AML correspondiam aos 18 municípios. No concelho de Lisboa foram a Câmara Municipal e a Lisboa E-Nova que promoveram esta iniciativa, inclusive com elementos da Lisboa E-Nova a participar e divulgar folhetos do ECC2017 a participantes de uma “Mega-Massa Crítica Lisboa/Oeiras”, que teve lugar durante esse mesmo mês de Maio de 2017. Lisboa foi a subequipa com mais quilómetros percorridos na equipa da AML, e a AML ficou em primeiro lugar entre os três participantes portugueses e em 28º lugar num total de 52 cidades participantes.

Após este intervalo de cinco anos, em 2022 a Lisboa E-Nova decidiu retomar a iniciativa “Um Dia a Pedalar, Porque Não?” e ainda associar a utilização de bicicleta aos objetivos de sustentabilidade e descarbonização da cidade, nomeadamente ao Pacto de Mobilidade Empresarial, subscrito por 122 entidades, e ao Compromisso Verde, subscrito por 260 organizações de Lisboa. Apesar desta iniciativa ter tido uma boa participação em 2022, verifica-se que o número de participantes este ano foi inferior à maioria das anteriores edições, bem como ao número de subscritores do Pacto de Mobilidade Empresarial ou do Compromisso Verde, o que demonstra a necessidade de melhor integrar a bicicleta como uma parte importante do sistema de mobilidade e das políticas de sustentabilidade da cidade e das empresas. Assim, como a necessidade de prosseguir com maior intensidade neste tipo de ações e associá-las aos compromissos de descarbonização da cidade até 2030.

Por outro lado, confirma-se que existe mais participação na iniciativa por parte de empresas localizadas nas áreas mais centrais da cidade e em locais bem servidos por infraestrutura ciclável, designadamente com ciclovias conectadas, ruas acalmadas e o sistema de bicicletas públicas partilhadas (GIRAs) do que em localizações menos preparadas e/ou mais periféricas.

Entre 2013 e 2016, antes de existir a ciclovia no eixo central de Lisboa ou as GIRAs, poderá associar-se a maior adesão à iniciativa a outras variáveis que merecem uma reflexão mais aprofundada. A integração da bicicleta nas estratégias de mobilidade e compromissos de descarbonização da cidade junto dos vários atores económicos e sociais poderá não estar a transparecer a nível social, além dos vários fatores que comprometem as escolhas de mobilidade das pessoas no seu dia-a-dia. Existem, por exemplo, muitas áreas da cidade que não são bem servidas por infraestrutura ciclável ou que não têm ruas acalmadas ou sem tráfego de atravessamento. Fora do concelho de Lisboa o cenário ainda é mais complicado, com uma paisagem dominada por construções rodoviárias concebidas para escoar mais automóveis a velocidades elevadas e muitos dos polos de atividade social e económica ligados quase exclusivamente por estas. Tomando em conta esta realidade ainda muito focada no automóvel, as questões que se colocam, e que merecem uma reflexão mais alargada, são as seguintes:

Será que a bicicleta ainda não tem o estatuto para ser considerada uma solução de mobilidade legitima e viável no sistema de mobilidade urbana de Lisboa? E se não tem, por que razão não é levada a sério no contexto social mais alargado?

Mapa com localização das empresas participantes (via Lisboa E-Nova, 2022)

Alguns números podem ajudar a esclarecer a evolução do estatuto da bicicleta como solução de pleno direito no sistema de mobilidade, e, não sendo os valores diretamente relacionados com iniciativas como “Um Dia a Pedalar, Porque Não?” que procuram ajudar a validar a bicicleta, as estatísticas demonstram um crescimento muito significativo da infraestrutura ciclável e da utilização deste modo desde a primeira edição em 2011. Recorde-se que os primeiros 3,4 km de ciclovia da cidade foram inaugurados em Setembro 2001, na semana antes do Dia Europeu Sem Carros, e em 2010 o concelho de Lisboa ainda só tinha 31,5 km de ciclovias soltas e maioritariamente a percorrer espaços verdes e de lazer. Os municípios da AML, tal como hoje, ainda estavam mais subdesenvolvidos nesta oferta. Não é de estranhar que em 2011 só 1 818 residentes em toda a AML utilizavam a bicicleta como meio de mobilidade principal nas suas deslocações pendulares, de acordo com os censos desse ano (INE, 2011).

Sendo que a utilização da bicicleta era residual, a novidade do assunto despertou o interesse da comunicação social. Não só ir “De Bicicleta para o Trabalho” era uma iniciativa inédita em Portugal, mas o (re)aparecimento da bicicleta de forma associada à vida quotidiana, ao trabalho, um modo pouco usual numa cidade muito focada no automóvel, também despertava uma certa surpresa.

Em comparação, em 2017 Lisboa já contava com 90,5 km de ciclovias, as bicicletas públicas partilhadas GIRA foram implementadas a partir de Novembro desse ano, e o inquérito à mobilidade, realizado nessa altura nas duas grandes áreas metropolitanas do país, já apontava para 26 187 deslocações/dia na AML a utilizar a bicicleta como o meio de transporte principal. Nessa altura o concelho de Lisboa tinha 5 486 deslocações/dia utilizando a bicicleta como o principal meio de transporte, ainda atrás dos 5 741 de Cascais, que ocupava o primeiro lugar da AML (INE, 2018).

Em 2021, a rede ciclável de Lisboa já se tinha expandido para 162 km a interligar várias áreas da cidade, a GIRA já tinha 91 estações instaladas e centenas de bicicletas a funcionar (CML, 2021), e apareceram operadoras privadas de bicicletas partilhadas ‘dockless’ (em Setembro de 2022 havia três a operar em várias partes da cidade), tudo a contribuir para uma maior oferta da utilização da bicicleta.

Outro indicador igualmente útil para comparar a intensidade da utilização da bicicleta são as contagens realizadas pelos 34 sensores de tráfego ciclável localizados em diversas vias do concelho de Lisboa, e que no dia da iniciativa (16 de Setembro) registaram 26 656 passagens. Sendo verdade que nem todas estas deslocações eram deslocações pendulares, e que se estima que 35% desse tráfego seriam trotinetas, também é certo que esses sensores oferecem um bom retrato da intensidade do tráfego ciclável nas vias onde estão instalados, apesar de não cobrirem todo o tráfego ciclável da cidade e muito menos da AML.

Com os dados destes sensores consegue-se compreender a evolução da utilização da bicicleta na cidade ao longo do tempo, sendo actualmente a ciclovia da Avenida Almirante Reis a que mais tráfego ciclável regista, superando, por exemplo, a média semanal do cruzamento das ciclovias da Avenida da República e Avenida Duque d’Ávila durante a semana que antecedeu “Um Dia a Pedalar, Porque Não?”.

Dados provisórios, sujeitos a correção, dos 34 sensores de tráfego ciclável em Lisboa na semana e dia da realização do “Um Dia a Pedalar, Porque Não?” (EMEL, 2022)

Esta aparente (re)normalização da bicicleta em algumas partes da cidade poderá explicar em parte a falta de atenção mediática dada ao assunto, mas não explica a dissociação da bicicleta dos pactos de sustentabilidade ou políticas urbanas para a descarbonização da cidade. Nem explica porque não participaram mais empresas e organismos que poderiam habilitar-se a ganhar interessantes prémios para alguns dos seus colaboradores enquanto realizavam uma ação que é um primeiro ‘baby step’ na mitigação do setor que emite mais gases com efeito de estufa (GEE), mais partículas poluentes inaláveis para a atmosfera e causa mais ruído na cidade.

Se, por um lado, a iniciativa “Um Dia a Pedalar, Porque Não?” foi um êxito por mobilizar 66 empresas que se organizaram, envolveram e mobilizaram as suas equipas de trabalho, com 277 pessoas a experimentar usar a bicicleta para o trabalho, por outro, a participação nas edições entre 2013 e pelo menos 2015 parece ter sido bastante mais elevada, o que nos deixa um grande desafio para a cidade e para a próxima edição de “Um Dia a Pedalar, Porque Não?” em 2023

Participação de empresas e colaboradores da iniciativa “Um Dia a Pedalar, Porque Não?” desde 2011 (Lisboa E-Nova, 2022)

Talvez as circunstâncias específicas da edição de 2022, como a chuva intensa no início da semana, o arranque tardio do ano letivo e o atabalhoado mês de regresso ao trabalho ajudem a explicar a fraca participação de escolas, a consequente falta de mobilização das respectivas populações escolares e a dificuldade que as empresas e organismos encontraram ao organizarem-se e mobilizarem-se para participar. Por outro lado, seria importante o tecido empresarial considerar a bicicleta como uma parte importante das estratégias de mobilidade sustentável a adotar, e por si só ou em articulação com sistemas de mobilidade partilhada, transporte público e andar a pé, é muito mais eficaz do que o carro elétrico. Porém, mesmo assim, houve grandes empresas que conseguiram mobilizar um número considerável de pessoas. Mas, apesar do forte crescimento da utilização da bicicleta em Lisboa, este modo ainda é pouco usual para uma grande parte da população da AML, obrigando a uma mudança de hábitos de mobilidade, que nem sempre é fácil realizar.

Não obstante, a adesão de 66 organismos aponta para um bom recomeço para colocar a bicicleta na agenda institucional destas entidades, legitimá-la como modo de transporte e conseguir mobilizar mais pessoas a experimentarem. Sendo o reaparecimento da bicicleta e a sua utilização na mobilidade quotidiana um processo evolutivo, a próxima edição de “Um Dia a Pedalar, Porque Não?” permitirá comparar e melhor compreender o alcance desta iniciativa entre a esfera empresarial, institucional e educativa da cidade, bem como dar seguimento à implementação de medidas mais concretas para promover a bicicleta através das empresas, instituições e estabelecimentos de ensino que participarem.


Bernardo Campos Pereira é especialista na área da Mobilidade Sustentável na Lisboa E-Nova – Agência de Energia e Ambiente de Lisboa desde Julho de 2022. Arquiteto pela University of Waterloo School of Architecture (Waterloo, Ontário, Canadá), doutorando com tese entregue, a aguardar a defesa, na Universidade de Aveiro em Políticas Públicas no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território (DCSPT) e Visiting Scholar (2019) no âmbito do programa Sustainable Urban Mobility (SUM) da Eindhoven University of Technology (TU/e, Eindhoven, Países Baixos). Tem experiência em projectos de arquitetura, espaço público e mobilidade sustentável, com particular destaque para a implementação de redes cicláveis e integração de modos, em várias concelhos e localidades, incluindo Lisboa. Conta ainda com trabalhos realizados com empresas do sector de mobilidade e transportes, e é membro do júri para o indicador mobilidade sustentável no programa Bandeira Verde ECO XXI Municípios pela Associação Bandeira Azul Europeia (ABAE).

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