Pequenos heróis da cidade por um dia

Por uma manhã, elas sentiram a escola sendo só delas. E se pudesse ser mais vezes assim? Não só o espaço da escola, mas a cidade, o espaço público. E se as cidades fossem mais vezes das crianças? E se as crianças também tivessem uma palavra a dizer?

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Numa manhã de sol quente, uma dezena de crianças pedala ou “trotineteia” em torno da sua escola, na Amadora. Há acidentes à beira de acontecer, e alguns – pequenos – acontecem mesmo. Mas não faz mal, é parte da aprendizagem. É final de Julho e já não há aulas: a escola, por esses dias, tem a função de manter os mais pequenos ocupados com actividades, enquanto os pais ainda trabalham. Essa manhã serviu para (re)descobrir a bicicleta e, a partir desta, imaginar cidades diferentes.

A actividade inseriu-se no projecto Bicycle Heroes, uma iniciativa europeia que a organização sem fins lucrativos BYCS desenvolveu em algumas localidades holandesas e que agora pretende experimentar noutros países. O Bicycle Heroes está agora em Lisboa, Dublin e Roma. Na capital portuguesa, a “importação” do projecto coube à cooperativa Bicicultura juntou-se à Associação Para a Promoção da Segurança Infantil (APSI). “A ideia é dar voz às crianças e às suas perspectivas sobre a mobilidade na cidade, focando na bicicleta mas não só; tudo o que tenha a ver com mobilidade activa, no fundo”, explica Ana Pereira, da Bicicultura, uma das responsáveis pelo projecto. “Fomos afastando as crianças para sítios seguros e às tantas elas estão fechadas nesses sítios. O que queremos é o contrário: que elas possam circular de uma forma natural na sua própria cidade e que a cidade seja amiga e segura das crianças”, completa Liliana Madureira, da APSI, a outra parte envolvida.

Naquela manhã de Julho, na EB 1/JI Maria Irene Lopes de Azevedo, na Amadora, o objectivo foi deixar os mais pequenos e as mais pequenas livres com bicicletas e trotinetas, permitindo que se apropriem do espaço da escola, que o explorem sem restrições, que aprendendo com as imperfeições desse território e que aproveitem uma liberdade que não costumam ter nas cidades. Mas o Bicycle Heroes vai muito além de um dia livre de brincadeira. O núcleo do projecto são os workshops feitos também com as crianças, onde são desafiadas a resolver problemas de mobilidade urbana relacionados com a bicicleta.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Na EB1/JI Maria Irene Lopes de Azevedo, também houve tempo para um destes workshops. Em Junho, aos pequenos heróis – alunos do 3º e 4º anos – foram dadas cartolinas, plasticina e outros materiais para que pudessem maquetizar as suas ideias para a cidade, identificando problemas e propondo soluções. Como explica Ana, criou-se “uma espécie de hackathon para as crianças inventarem coisas que pudessem melhorar o seu uso da bicicleta”. “Levámos materiais que pudessem ser usados para fazer protótipos, eles organizaram-se em equipas, pegaram nesses materiais e temos 11 propostas que foram depois votadas por uma série de parceiros”, como o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), a MUBi – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta e a Câmara da Amadora.

Entre as ideias apresentadas, havia chapéus de chuva para bicicletas, campanhas de televisão para educar os condutores de automóveis, trocar o estacionamento dentro da escola por estacionamento para bicicletas (“realmente nesta escola não há estacionamento cá dentro, e é curioso terem-se lembrado disso”) e, claro, ciclovias. Das 11 propostas, foram escolhidas três, e os alunos e alunas vencedoras receberam prémios simbólicos.

Agora, a ideia de Ana e Liliana é fazer um conselho de crianças. E como explicam, querem  “que seja a 20 de Novembro para bater com a comemoração da Convenção sobre os Direitos da Criança”, um tratado que visa a protecção de crianças e adolescentes de todo o mundo, aprovado em 1989 pelas Nações Unidas

Nesse conselho, a proposta é voltar a reunir as crianças que foram participando nas actividades do Bicycle Heroes e as ideias por elas apresentadas, trabalhar essas ideias e colocar os miúdos e miúdas a falarem com “adultos que têm algum poder de decisão”, seja no IMT ou na ANSR, mas principalmente nas Câmaras Municipais. “Vai ser uma oportunidade para as crianças contactarem com estas pessoas, com quem normalmente no dia-a-dia não contactam e que são pessoas que mexem em coisas, que poderão pegar em algumas das suas ideias e ver se dão para implementar”, refere Ana. Já Liliana destaca que é importante “lembramo-nos mais vezes das crianças quando estamos a desenhar cidades e a resolver problemas; não pensarmos só naqueles adultos com os seus problemas”.

“As crianças não são os cidadãos de amanhã. Podem ser cidadãos activos hoje”, sugere Liliana, para quem a educação que os miúdos e miúdas levam ao longo do seu tempo de crescimento é decisiva para o comportamento enquanto adultos. “Normalmente quando os miúdos são pequenos andamos sempre a dizer para não fazerem isto ou irem para determinado sítio, e depois chega uma altura em que não percebemos porque é que não têm iniciativa de fazer ou de empreender. Mas andámos uma série de anos a dizerem para não fazerem”, acrescenta a especialista em promoção de segurança infantil. “Temos de começar a trabalhar esta voz das crianças, a torná-las activas. E temos de conseguir que haja consequência dessas suas participações. Se elas trabalham em ideias, essas ideias têm de chegar a quem de alguma forma possa executá-las.”

A escola na Amadora onde Ana e Liliana levaram o projecto Bicycle Heroes tem quatro turmas, uma por cada ano do 1º ciclo de ensino; as quatro tiveram aulas de bicicleta e actividades relacionadas com as duas rodas no ano lectivo passado, no âmbito de um projecto da Junta de Freguesia local. Apesar do contacto das crianças com este meio de mobilidade, Ana Pereira notou que as ideias apresentadas nos workshops “foram muito estandardizadas, o que foi interessante de reparar”. Poderá ter sido por terem tido “pouco tempo” para pensar nelas, mas também por “só terem experiência com a bicicleta aqui na escola”. “Foram muito na onda das orientações gerais que íamos dando. Como não têm muita experiência própria, pegaram nas coisas que foram ouvindo.”

O objectivo daquela manhã de brincadeira livre com bicicletas e trotinetas na escola foi também expor os mais pequenos e pequenas a “novos conhecimentos e experiências relacionadas com a mobilidade urbana”, explica Ana. Havia uma bicicleta de carga com um atrelado onde a cooperante da Bicicultura ia transportando algumas crianças, maravilhadas pelo seu rosto com aquilo. Também foram disponibilizados jogos e algumas actividades, mas as crianças “só queriam fazer corridas e andar à vontade”. Ana, que já tem feito actividades com mais pequenos em escolas, diz que é sempre assim: “Quando não andas de bicicleta no dia-a-dia e tens um sítio onde não há mãe ou pai a dizer que não por causa dos carros, é esta loucura. Há uma fome de simplesmente andar de bicicleta.”

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