A associação MUBi, que representa utilizadores de bicicleta, propõe seis medidas prioritárias neste próximo Orçamento de Estado, para acelerar a transição para uma mobilidade urbana mais saudável, justa e sustentável.

Ao contrário de todos os outros sectores económicos, que têm reduzido emissões, na mobilidade e transportes as emissões sobem continuamente há uma década e são hoje em Portugal 60% superiores ao que eram em 1990. Este é, desde 2019, o sector com maior peso (28%) nas emissões do país e responsável por 37% do consumo de energia final. O transporte rodoviário é, de longe, o subsector mais importante e também a principal causa da poluição do ar nas cidades.
Para cumprir os compromissos nacionais e internacionais em matéria de acção climática, Portugal terá de diminuir as emissões dos transportes em pelo menos 40% até 2030, face a valores de 2005. Será necessário reduzirmos significativamente o número de automóveis em circulação e a sua utilização, principalmente nas áreas urbanas. No final da década, os modos activos deverão ser a principal opção de deslocação para quase metade dos portugueses, conforme estipulam a Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável (ENMAC) 2020-2030 e a Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Pedonal (ENMAP) 2030. Em 2025, 4% das deslocações nas cidades portuguesas deverão ser feitas em bicicleta, aumentando para 10% até 2030
Alcançar estas metas requer a reorientação de recursos públicos do automóvel para os modos activos e colectivos de deslocação e um grande investimento e esforço do Estado para uma profunda transformação da mobilidade urbana em Portugal.
Nas cidades, mais de 30% das viagens de carro cobrem distâncias inferiores a 3 km e 50% são inferiores a 5 km. Muitas destas deslocações poderiam ser feitas em 15-20 minutos de bicicleta ou em 30-50 minutos a pé, se existirem condições de segurança e conforto para o uso destes modos. Apoiar e estimular os modos activos de deslocação é das formas mais fáceis, rápidas e eficientes de reduzirmos a dependência dos combustíveis fósseis e as emissões de poluentes e de gases com efeito de estufa. Ao mesmo tempo, estaremos a melhorar a saúde pública, a economia local e das famílias e a qualidade de vida urbana. Os benefícios socioeconómicos da utilização da bicicleta na União Europeia estão avaliados em mais de 150 mil milhões de euros por ano. Destes, mais de 90 mil milhões representam externalidades positivas no ambiente, na saúde e nos sistemas de mobilidade.
Os ciclistas produzem menos 84% de emissões de CO2 relacionadas com a mobilidade do que os não ciclistas. Quem substituir o uso do carro pela bicicleta nos dias da semana – por exemplo, num trajecto de 5 km entre casa e o local de trabalho em cada direcção – reduzirá a sua pegada carbónica em cerca de uma tonelada de CO2 ao fim do ano, poupando também 500 euros só em combustíveis. Se uma família poder prescindir de um automóvel, poupará 4 mil euros por ano, em média, que poderá utilizar na educação dos filhos, em habitação, cultura ou actividades de lazer, por exemplo.
Não obstante, a diferença de investimentos na mobilidade activa para com outros países europeus tem sido abismal. Por exemplo, um cidadão irlandês sabe que, até à hora de almoço, o governo do seu país investiu tanto per capita nos modos activos quanto o Orçamento do Estado para 2022 em Portugal destinou à Estratégia Nacional para a mobilidade em bicicleta para um ano inteiro!
A utilização da bicicleta e o caminhar devem ser pilares das políticas de mobilidade e, por conseguinte, também nos instrumentos orçamentais. A MUBi defende que pelo menos 10% do orçamento total do sector dos transportes seja destinado à mobilidade em bicicleta e outros 10% ao modo pedonal. Na secção seguinte apresentam-se seis medidas prioritárias para o Orçamento do Estado para 2023, que contribuirão para acelerar a transição para uma mobilidade urbana mais saudável, justa, eficiente e sustentável.
6 medidas prioritárias para o OE 2023
1. Dotar a ENMAC 2020-2030 de recursos para acelerar a sua implementação
1.1 Criar um centro de competências nacional, com orçamento próprio, para a coordenação das políticas para a mobilidade em bicicleta, incluindo a gestão e organização da ENMAC 2020-2030
Os três técnicos que a versão preliminar da Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Pedonal (ENMAP) 2030 designa para a coordenação das estratégias para a mobilidade em bicicleta e mobilidade pedonal são manifestamente insuficientes. A título de exemplo, a agência governamental Active Travel England, que coordena a execução das políticas nacionais para a mobilidade activa em Inglaterra, prevê a contratação de um staff constituído por cerca de 100 pessoas. Tal equivaleria à contratação em Portugal de 20 pessoas para a implementação das duas estratégias.
1.2 Programa de capacitação das entidades responsáveis pelas medidas da ENMAC e, também, da ENMAP
Um dos principais constrangimentos ao avanço da implementação da ENMAC 2020-2030 tem sido a dificuldade de grande parte das entidades responsáveis pelas medidas em compreenderem o desígnio e os objectivos da Estratégia e os desafios, os esforços necessários e o papel que têm a desempenhar para a mudança do paradigma da mobilidade.
Se, por um lado, é preciso que haja uma participação activa de todas as áreas governativas identificadas na ENMAC, que não tem existido, é também essencial e urgente capacitar e formar todas as entidades responsáveis por medidas da ENMAC e, também, da ENMAP nas áreas da mobilidade activa e sustentável.
2. Programa de contratação e formação de técnicos das autarquias, comunidades intermunicipais e outros organismos de Estado nas áreas da mobilidade activa e sustentável
A formação e actualização de técnicos de autarquias, institutos públicos e outros organismos do Estado nas áreas da mobilidade activa, inclusiva e sustentável e cidadania rodoviária, é fundamental para promover-se a alteração dos actuais padrões de mobilidade.
A título de exemplo, a República da Irlanda irá contratar 248 técnicos para trabalhar na área da mobilidade activa nas administrações locais e regionais e ajudar na boa aplicação dos investimentos: “As novas contratações dedicar-se-ão à activação e promoção de viagens activas na Irlanda e trabalharão em funções de concepção, comunicação / relações com a comunidade e supervisão de obras.”
3. Programa nacional de apoio ao desenvolvimento e implementação de Planos de Mobilidade Urbana Sustentável por parte dos municípios portugueses, com um gestor do programa a nível nacional
Este programa deverá conter medidas jurídicas, financeiras e organizativas para ajudar a reforçar as capacidades e implementar Planos de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS) em conformidade com as orientações europeias em matéria de PMUS, tal como propõe a Comissão Europeia no Novo Quadro da UE para a Mobilidade Urbana.
Os PMUS são instrumentos estratégicos desenhados para satisfazer as necessidades de mobilidade de pessoas e empresas nas cidades e aglomerações para uma melhor qualidade de vida. Baseiam-se nas práticas de planeamento existentes e levam em consideração os princípios de integração, participação e avaliação. Os PMUS poderão também ajudar a colmatar os muitos erros levados a cabo em Portugal no uso de financiamentos comunitários destinados a reduzir a utilização do automóvel em meio urbano e fomentar a transferência para os modos activos e mais sustentáveis.
A Comissão Europeia irá “publicar, até ao final de 2022, uma recomendação da Comissão aos Estados-Membros sobre o programa nacional de apoio às regiões e aos municípios na implantação de planos eficazes de mobilidade urbana sustentável. Tal incluirá um conceito de PMUS melhorado, estabelecendo prioridades claras para favorecer soluções sustentáveis, incluindo transportes públicos, coletivos e ativos, e mobilidade partilhada (incluindo para as ligações entre zonas urbanas e rurais), integrando plenamente os aspetos da resiliência, bem como planos de logística urbana sustentáveis (SULP), com base em veículos e soluções com emissões nulas”.
4. Programa de apoio para os municípios implementarem alterações do espaço público no sentido de aumentar a segurança e conforto dos modos activos
Este programa deverá apoiar a implementação de medidas físicas de acalmia de tráfego, zonas 30 e de coexistência, especialmente na envolvente de escolas, zonas residenciais, centros urbanos e outros locais onde utilizadores vulneráveis convivam com veículos motorizados. Deverá, igualmente, apoiar a criação de redes de percursos seguros para a utilização da bicicleta (redes cicláveis), respeitando as melhores práticas internacionais, redistribuindo o espaço viário nas artérias urbanas e interurbanas e articulando com grandes equipamentos e interfaces de transporte público.
O investimento em infraestruturas seguras e de qualidade para a utilização da bicicleta tem um papel preponderante para o incremento do recurso a este modo de transporte nas deslocações quotidianas, em alternativa ao automóvel individual, e apresenta razões de custo-benefício muito favoráveis.
Em Espanha, em 2021 o Governo adjudicou aos municípios mil milhões de euros, provenientes do Plano de Recuperação e Resiliência, para implementarem Zonas de Emissões Reduzidas, privilegiando a mobilidade activa e os transportes públicos nos centros urbanos. Cerca de 400 milhões foram adjudicados directamente para melhorar as condições para o uso dos modos activos nas zonas urbanas: 243 milhões para aumentar o espaço para peões nas cidades; 100 milhões para construir 500 km de novas ciclovias em meio urbano e melhorar pelo menos 450 km das já existentes, e 49 milhões para financiar a implementação de sistemas públicos de bicicletas partilhadas. O Governo espanhol abriu, em 2022, concurso para mais 500 milhões, totalizando 1500 milhões nesta linha de actuação.
5. Programa de incentivos às deslocações pendulares casa-trabalho em bicicleta
Os incentivos de apoio à aquisição de bicicletas (que deverão ser continuados e ampliados[1]) têm sido fundamentais, mas agora são necessários programas de incentivo ao uso da bicicleta como modo de transporte. Este tipo de programas, recompensando financeiramente os quilómetros pedalados, tem um grande potencial na transferência modal efectiva do automóvel para a bicicleta nas deslocações quotidianas. Existem em vários países europeus e, comprovadamente, resultam num excelente retorno positivo para a sociedade, nomeadamente em termos de saúde pública e também, e por conseguinte, de redução do absentismo laboral.
O programa francês – l’Indemnité Kilométrique Vélo -, iniciado em 2015, recompensa os trabalhadores em 0,25 euros por quilómetro percorrido em bicicleta, até um valor máximo anual de 200 euros. Na Holanda, os trabalhadores podem agora alugar uma bicicleta por 7 euros por mês, e são recompensados em 0,17 euros por cada quilómetro pedalado. O programa belga existe desde 1999, recompensa os trabalhadores em 0,23 euros por quilómetro, e participam nele mais de 500 mil pessoas, cerca de 11% da força laboral do país.
Este tipo de programa deverá estar associado à obrigatoriedade de Planos de Mobilidade e Transporte para os locais de emprego com mais de 300 pessoas, com prioridade e exemplo para os locais geridos pelo Estado. No Plano de Poupança de Energia 2022-2023, o Governo recomenda ao sector privado a “adoção de planos de mobilidade sustentável para entidades ou com mais de 100 colaboradores no mesmo local”, mas seria inaceitável que não fosse a Administração Pública, central e local, a liderar pelo exemplo este processo.
Comparando com os programas de outros países, a MUBi estima que seriam necessários cerca de 6 milhões de euros – o equivalente a dois dias de redução do Imposto sobre Produtos Petrolíferos (ISP) – para o primeiro ano de um programa deste tipo em Portugal.
6. Taxa reduzida de IVA (6%) para velocípedes e componentes
Não faz sentido que quem abastece o automóvel com combustíveis fósseis pague uma taxa de ISP equivalente à redução da taxa de IVA para 13%, enquanto que quem compra uma bicicleta continue a pagar a taxa máxima de IVA de 23%.
A nova directiva europeia do IVA passou a permitir aos Estados Membros aplicarem a taxa reduzida de IVA a bicicletas, convencionais e eléctricas. Em Outubro passado, a Assembleia da República decidiu, com a uma larga maioria de votos favoráveis, recomendar ao Governo que estude a possibilidade de aplicar a taxa reduzida de IVA de 6% aos velocípedes a partir de 2022.
Esta medida custará, por ano, menos que a redução do ISP custa, por semana, ao Estado português. Ao contrário dos veículos motorizados, a utilização da bicicleta gera significativas externalidades positivas, nomeadamente ao nível da saúde pública, que largamente superariam os custos da redução do IVA que propomos. Esta medida seria particularmente importante como incentivo à aquisição de bicicletas eléctricas e de carga, cujos preços são considerados elevados por muitos portugueses e têm constituído um obstáculo à sua compra e adopção. Ao mesmo tempo, a aplicação desta medida constituiria uma ajuda à indústria portuguesa da bicicleta, que emprega directamente perto de 9 mil pessoas e indirectamente cerca de 30 mil e é responsável pela produção de mais bicicletas do que qualquer outro país europeu.
[1] A MUBi considera que a comparticipação do Fundo Ambiental para bicicletas deverá subir para 60% e, dado o aumento de preços, o valor máximo dos incentivos aumentar aproximadamente em 33%. Assim, propomos:
– Bicicletas eléctricas: Apoio de 60% até 650 euros, para um total de 6000 unidades.
– Bicicletas de carga: Apoio de 60% até 1350 euros, para bicicletas sem assistência, e até 2000 euros, para bicicletas de carga com assistência eléctrica, para um total de 400 unidades.
– Bicicletas convencionais: Apoio de 60% até 250 euros, para um total de 6000 unidades.
– Extensão dos apoios a kits de conversão para bicicletas eléctricas e a bicicletas adaptadas para pessoas com necessidades especiais.