Cláudio está a criar a “Wikipédia” dos transportes da Área Metropolitana de Lisboa

O lançamento da Carris Metropolitana levou Cláudio Pereira a criar o Intermodal, um projecto que surgiu para colmatar as deficiências de informação do novo serviço rodoviário mas que rapidamente se tornou algo maior e mais abrangente.

Cláudio Pereira criou o Intermodal (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

O lançamento da Carris Metropolitana no Verão passado levou Cláudio Pereira, engenheiro informático de 26 anos, a criar uma plataforma que colmatasse as deficiências de informação do novo serviço rodoviário. Contudo, rapidamente percebeu que a sua ideia tinha potencial para ser algo maior e mais abrangente, e que poderia ser uma espécie de “Wikipédia” dos transportes públicos da Área Metropolitana de Lisboa.

É nisso que está focado actualmente. Cláudio, com a preciosa ajuda de várias pessoas que conheceu na Comunidade do Lisboa Para Pessoas no Discord, está a criar um site, o Intermodal, que pretende reunir toda a informação sobre os transportes da região metropolitana de Lisboa, o que inclui mapear e catalogar as mais de 17 mil paragens de autocarro, entre outras coisas,. A ideia final é “construir um sistema de navegação que se ajuste à pessoa que esteja a usá-lo”. Cláudio dá um exemplo: “Uma pessoa de cadeira de rodas tem necessidades diferentes de uma pessoa sem qualquer incapacidade e, para ela, não podemos sugerir trajectos de autocarro que envolvam paragens sem acessibilidade.”

Acessibilidade no Intermodal (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Uma aplicação, diferentes passageiros

Um dos maiores desafios de Cláudio tem sido o registo da acessibilidade das milhares de paragens de autocarro da Área Metropolitana de Lisboa, tendo começado pelas da Carris Metropolitana. Durante o Verão andou de autocarro e bicicleta de um lado para o outro de câmara fotográfica na mão para fotografar o maior número de paragens possível. O resultado é um “arquivo de cerca de quatro mil fotografias, sendo que a maior parte delas ainda está por indexar, ou seja, por associar a uma paragem”. Neste momento, o Intermodal conta com 2247 fotografias validadas, o que corresponde a cerca de duas mil paragens do universo de 17 mil já prontas. “Um terço ou um quarto da rede, portanto”, aponta.

No Intermodal, Cláudio quer que as pessoas possam consultar fotografias de diferentes ângulos de cada paragem, para que consigam perceber a sua localização e a envolvente. A ambição é fazer estes registos com uma câmara 360º portátil para criar uma espécie de “Street View” dos transportes públicos. Cláudio está a usar as fotografias que capta para dar informações sobre as paragens – se têm caixote do lixo, se têm alguma passadeira próxima ou estão numa estrada de difícil atravessamento, se têm banco ou horários afixados, se têm uma zona de passeio adjacente, sem têm abrigo ou se são “destapadas” (só com um postelete), se são acessíveis para pessoas de mobilidade reduzida, se são visíveis para os passageiros e para os motoristas…

Corrigir os dados das empresas

Mapear 17 mil paragens é um desafio gigante e, por isso, a vasta maioria dos dados do Intermodal serão dos GTFS das transportadoras, ficheiros que uniformizam, numa linguagem comum, a informação de diferentes operadores de transporte. Cláudio e os colegas têm vindo a inserir os dados que as empresas disponibilizam de forma pública em formato GTFS. Não foi o caso da Carris Metropolitana, que, por não disponibilizar o seu GTFS, obrigou a equipa a fazer a inserção manual das 700 linhas e 17 mil paragens. Neste momento, e além da Carris Metropolitana, o Intermodal já tem informação também dos Transportes Colectivos do Barreiro (TCB) e do Metro Transportes do Sul (MTS), mas os TCB são os únicos que para já têm horários.

Cláudio insiste na validação manual das paragens de autocarro porque encontrou, nomeadamente na Carris Metropolitana, várias mal posicionadas no mapa. “A imprecisão de apenas alguns metros na localização das paragens pode ser o suficiente para uma pessoa vulnerável não conseguir apanhar o autocarro”, explica Cláudio, referindo-se aos obstáculos que o espaço público oferece tantas vezes a pessoas mais idosas ou em cadeiras de rodas para dar apenas dois exemplos. As fotografias que tem feito – e as que outras pessoas lhe enviam – não servem apenas para auxiliar os utilizadores do Intermodal no planeamento de viagens. São também para a validação das paragens. O jovem de 26 anos quer garantir que aparecem no sítio certo no Intermodal e, quando não tem fotografias suas ou da comunidade, recorre a imagens de satélite ou ao Google Street View. “Vamos ao local caso persistam dúvidas que não consigamos esclarecer à distância.” Em alguns locais, como grandes interfaces de transporte onde existem muitas paragens, é sempre preciso visitar para garantir uma informação mais correcta.

Interface de autocarros no Pragal (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Mesmo quando há dados que são inseridos automaticamente por GTFS, Cláudio entende que deve existir uma camada humana de validação no processo de disponibilização dessa informação no Intermodal. Há que ver se os dados de determinada transportadora são bons e confiáveis – podendo ser, por isso, importados sem grande questionamento –, ou se é preciso uma verificação mais persistente. E quando esses ficheiros GTFS forem alterados – porque há uma nova linha, um trajecto mudado ou ajustes em horários –, Cláudio quer analisar os novos dados antes de os fazer chegar ao público. Nesta fase, conta com pessoas do Discord do Lisboa Para Pessoas, que ajudam ou com a verificação e inserção de informação ou dentro das suas áreas de conhecimento. Diogo Baptista, 24 anos, estudante de arquitectura, é uma dessas forças voluntárias.

O papel do Openstreetmap

“Sou do Alentejo e também desde criança que me entusiasmava a complexidade e diversidade de meios de transporte numa zona urbana como a AML quando a visitava”, conta. Começou a participar em fóruns online onde se falava dessas temáticas e, desde 2013, é um dos principais contribuidores do Openstreetmap, um mapa colaborativo que qualquer pessoa pode editar e tornar mais pormenorizado. “Tenho mais de 10 mil edições feitas no Openstreetmap. O meu foco sempre foram os transportes na AML, refere. “Sempre o fiz de forma voluntária e gastei muito tempo livre nessa tarefa. Nunca pensei como podiam ser utilizados esses dados depois porque me focava mais no seu mapeamento.”

O mapeamento de paragens na AML (via Diogo Baptista)

Existe uma simbiose entre o Intermodal e o Openstreetmap. Em primeiro lugar, Cláudio rejeita a utilização de software proprietário na sua plataforma porque a ideia é disponibilizar tudo em código aberto, de forma livre. “E o Google Maps para empresas e entidades é pago e muito bem pago, além de não ser permitida a utilização dos mapas da Google para criar serviços concorrentes”, esclarece. Ao tornar o Intermodal aberto, inclusive todo o código, “uma pessoa do Porto pode pegar nisto e fazer igual para os transportes de lá”, por exemplo. Os dados das paragens são mapeados no Openstreetmap e o Intermodal vai lá buscá-los; já outros detalhes passam deste para o mapa aberto. “Colocamos as paragens no Openstreetmap e utilizamo-lo para manter rastro das coordenadas. Tudo o resto entra no Intermodal pela nossa interface e exportamos para o Openstreetmap”, explica Cláudio.

“Um projecto de informação não poderia funcionar sem o principal, os dados. São os dados a grande base de todo o projecto”, acrescenta Diogo, que explica que usa um software chamado JOSM para fazer o mapeamento das paragens e de outras infraestruturas e para enviar os dados para os servidores do Openstreetmap. Diz que gosta de fazer um “mapeamento de máxima precisão” e que tenta que as paragens estejam “marcadas nos locais exactos, sem margens de erro, garantindo uma informação geográfica verdadeira e fidedigna”. “O Openstreetmap permite uma profundidade e detalhamento muito grande da informação”, por comparação a outros serviços. Uma das coisas nas quais Diogo está concentrado é no mapeamento das interfaces de transportes e do interior de estações de metro e de comboio, algo que poderá ser integrado no Intermodal no futuro.

Qualquer um pode editar

A rede de transportes no Intermodal (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Como diz Cláudio, “a parte cosmética, aquela que as pessoas vêem, é fácil de fazer”, diz o jovem informático. “A parte de sanitizar os dados e de permitir que as pessoas possam colaborar sem vandalismo é o que dá mais trabalho.” Os últimos dias de 2022 passou a inserir dados da Carris Metropolitana juntamente com Diogo e outros membros do Discord do Lisboa Para Pessoas no Intermodal. Os próximos passos é acabar a inserção da informação de serviço das actuais 10 marcas de transporte público da Área Metropolitana de Lisboa, validar a localização de todas as paragens (e estações) e as suas condições de acessibilidade, e abrir a plataforma à comunidade.

Tal como a Wikipédia, a ideia é que qualquer pessoa possa editar o Intermodal. Actualmente já é possível criar uma conta e fazer edições que, depois, são validadas por uma equipa de moderadores, na qual Cláudio e alguns membros do Discord do Lisboa Para Pessoas se incluem. É, aliás, assim que colaboram no desenvolvimento desta plataforma. O Intermodal tem, por isso, um backoffice de edição e moderação de todos os conteúdos. “Por agora, ainda temos esta componente de edição um pouco escondida“, diz Cláudio, esclarecendo que existirão sempre moderadores. “Não queremos que as alterações apareçam instantaneamente como acontece na Wikipédia para preservar a plataforma.”

O Intermodal ainda está bastante incompleto e é para já uma prova de conceito. Logo na página inicial, pode ler-se que “é um trabalho em progresso” e que “os dados estão incompletos”. Existe uma página para perceber o estado do projecto – o que já tem e o que falta. Há uma página onde é possível navegar na Rede de transportes de toda a AML (aquela que já está inserida). Clicando numa paragem, podes ver informações sobre esse local, incluindo que serviços existem e um spidermap – onde consegues chegar a partir dessa paragem. No Intermodal, poderá consultar linhas, percursos, horários e paragens; vai ser possível ver o serviço de cada um dos 10 operadores, por zona, concelho e freguesia; e Cláudio quer ainda centralizar os avisos das transportadoras num só local, fazendo web scraping dos seus sites e perfis de redes sociais (se um Metro de Lisboa disponibiliza alterações de serviço numa API, por exemplo, já a TCB publica-as no Facebook, o que torna o acompanhamento por parte dos passageiros muito complicado). Uma ideia que Cláudio também quer implementar é um planeador de viagens, que permita obter direcções de um lado para o outro por transportes públicos.

Todo o Intermodal deverá adaptar-se a quem o está a usar. Já vimos as necessidades de pessoas com mobilidade reduzida, mas também “as necessidades de um jovem são diferentes da de um idoso”, por exemplo. E há pessoas que são recentes nos transportes públicos e outras que são mais literadas. Os públicos são múltiplos e diversos, e a pensar nisso a plataforma já conta com um modo simples e com um modo avançado – para já, não são ainda muito diferentes um do outro, mas a ideia é que possam permitir experiências de uso diferentes. Esta versatilidade do Intermodal também deverá sentir-se no tal planeador de viagens, que deverá cruzar diferentes operadores e meios de transporte, e oferecer a melhor rota para cada perfil de pessoa. Os utilizadores vão ter rotas calculadas para que não fiquem apeadas em eventuais transbordos. “Queremos colocar os passageiros em sítios onde não corram riscos porque se perderem um transporte vem outro logo a seguir, e não em sítios onde podem ficar uma hora a anhar”, refere.

O planeador de viagens vai permitir a Cláudio e os colegas fazer análises estatísticas, como perceber onde existem falhas de serviço. “No fundo, queremos perceber onde é possível chegar na AML. Por exemplo, do Barreiro consigo chegar mais rápido a Setúbal do que à baía do Seixal, que não é assim tão longe, porque existe uma linha de comboio directa para Setúbal”, refere. “Mas será que é assim todo o dia? E depois das 20 horas? E ao fim-de-semana? Em alguns horários, os tempos de espera aumentam muito ou não há serviço de transporte, e as distâncias entre os locais aumentam brutalmente.” O catálogo de informação do Intermodal e o mapeamento do Openstreetmap podem ser extremamente úteis para análises de dados com as mais variadas finalidades, incluindo para o planeamento das redes de transportes. E sendo os dados todos abertos, qualquer pessoa ou entidade poderá utilizá-los.

Cláudio tem 26 anos e é engenheiro informático (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Consciente de que projectos lançados à base de trabalho voluntário dependem quase sempre da disponibilidade futura dessas pessoas, Cláudio Pereira diz que o seu intuito é criar e substanciar a plataforma mas que esta possa depois ser mantida depois pelas pessoas que decidam contribuir para uma base de dados e de informação como sobre os transportes públicos da Área Metropolitana de Lisboa. “Tal como acontece na Wikipédia.” Por outro lado, aquilo que o Intermodal oferece, seja ao nível do rigor, seja ao nível do detalhe, não é disponibilizado pela maioria das empresas de transporte. “Somos crentes que o que importa é que as pessoas gostem. As pessoas dizerem que gostam é um primeiro grande passo”, entende o jovem, que tem estado a pensar numa “abordagem diferente” às empresas e municípios. “Queremos ir com um produto já feito e validado, e não com uma promessa.” Cláudio diz que já teve contactos com tanto a Transportes Metropolitanos de Lisboa (TML), responsável pela Carris Metropolitana, como com os Transportes Colectivos do Barreiro (TCB) e a autarquia barreirense.

O futuro do Intermodal só o futuro ditará.

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