Criar comunidade, um canteiro de cada vez

No Bairro dos Alfinetes, em Marvila, há um projecto comunitário a tentar estimular laços de vizinhança e hábitos de participação na vida pública. “Isto são processos que ainda estão a ser findados. As pessoas não estão tão habituadas a participar. Estão a começar a ter um bocado mais de receptividade.”

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Melhorar a qualidade do espaço público do Bairro dos Alfinetes, em Marvila, e, por conseguinte, a qualidade de vida dos moradores é o objectivo do Sê Bairrista – um projecto que une vários parceiros na freguesia, como a Junta de Freguesia de Marvila, o grupo comunitário de moradores 4Crescente ou o atelier de arquitectura Rés-do-Chão. Projecto a projecto, o Sê Bairrista procura estimular uma maior participação da comunidade local nas soluções. A criação de um novo canteiro na Praceta B do Bairro dos Alfinetes é mais um pequeno passo nesse sentido.

O logo do Sê Bairrista (DR)

Em conjunto com os moradores dos prédios que rodeiam a Praceta B, a equipa do Rés-do-Chão desenhou uma proposta para aumentar e revitalizar o canteiro central existente nessa praceta. A ideia era dar um novo espaço onde os vizinhos possam deitar as mãos à terra e plantar aquilo que entender, mas também conviver e estabelecer novas amizades. Depois de um processo de co-desenho do novo canteiro e da fase das obras propriamente ditas, foi feita a inauguração da nova estrutura com a colocação das primeiras plantas. “Nós aqui inauguramos tudo”, brinca uma moradora do Bairro.

Como era o canteiro (fotografia cortesia de Sê Bairrista)

No final de tarde de 12 de Janeiro, duas dezenas de pessoas, entre vizinhos da Praceta B e amigos, reuniram-se em torno do canteiro para ajudar na plantação e, no final, conviver com os comes e bebes que uns e outros trouxeram (havia, por exemplo, um bolo de laranja da Dona Isilda muito saboroso). Bruno Guimarães, arquitecto, membro do atelier Rés-do-Chão, que é um dos principais motores do projecto, explica-nos que um dos objectivos da intervenção no canteiro central foi “esconder as campânulas metálicas que, por sua vez, escondiam máquinas de ventilação do parque de estacionamento subterrâneo”. Assim, o canteiro pré-existente foi expandido para o espaço que essas estruturas ocupavam. “Aproveitámos os gradeamentos metálicos. Ou seja, procurámos aproveitar ao máximos os materiais antigos”, diz. Junto ao canteiro, criaram um banco onde as pessoas podem estar a apanhar sol e a ver a paisagem, com a linha de comboio e o rio Tejo lá ao fundo. “Percebemos que as pessoas se sentavam nos muros laterais da praceta para apanharem sol. Então criamos este sítio para sentar, virado para sul.”

Depois da obra, o canteiro foi largamente aumentado (fotografia de Lisboa Para Pessoas)
O projecto do canteiro (via Sê Bairrista/Rés-do-Chão)

Em relação às plantas, “mantivemos o que estava, porque os moradores assim o quiseram” e “trouxemos algumas plantas novas dos Lotes C do Bairro. Vamos ver como corre a votação aqui do B e vamos adicionar as plantas que os vizinhos quiserem”. A contagem dos “votos” foi feita neste dia da inauguração e plantação. As espécies a colocar no canteiro, junto às que já estavam na configuração original deste, foram escolhidas pelos moradores da praceta, através de uma votação colocada na entrada de cada prédio. Nem todos decidiram participar, revelando a desconfiança ou desinteresse ainda existente em relação a estas iniciativas. “As pessoas não querem saber”, lamenta Lurdes, uma moradora que decidiu ir ao lixo buscar alguns dos papéis dos vizinhos desinteressados e que preencheu com as plantas mais queria ver no canteiro. “A Dona Lurdes fez batota”, brinca Inês Sebástian, arquitecta e antropóloga do Rés-do-Chão.

Nas caixas de correio da vizinhança tinha sido colocado um papel para as pessoas preencherem com as espécies que desejariam ver no canteiro. Havia alecrim, alfazema, oregãos, tomilhos, roseiras, heras, calenudas… e para responder era só colocar uma cruz nas plantas desejadas. “Tenho lá alecrim, que gosto de usar na carne. A rosa é boa porque dá todo o ano”, diz Lurdes. “E esta aqui é muito bonita”, refere, apontando para na apténia, uma planta suculenta e rasteira que é muito resistente. “Alastra-se muito”, acrescenta António, também morador ali da praceta.

António é bem conhecido na comunidade porque já mantém um canteiro público debaixo da sua janela (sobre o qual falamos mais à frente). Lamenta que às vezes lhe levem as plantas que coloca. “Há aqui uns miúdos que gostam de fazer isso.” Por isso, diz que começou a cultivar mais vezes lá em cima mesmo junto à sua janela e, por isso também, sugeriu que não se plantasse “muito à mão de semear” no novo canteiro.

Lurdes e António são pessoas habituadas à terra. Nasceram e cresceram com ela em partes da sua vida, apesar de agora a cidade ser a sua casa. Lurdes, por exemplo, nasceu em Lisboa mas diz-nos que foi “criada no mato”. “Eu adoro isto!”, exclama, enquanto, com as próprias mãos, abre buracos na terra, coloca as plantas e depois, com os pés, acalca a terra em torno delas. António, cujas mãos também denunciam uma vida ligada ao campo, ia enchendo baldes e despejando água para cima das espécies recém-plantadas, fazendo pequenos orifícios para aumentar a infiltração.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Enquanto António e Lurdes deitavam mãos ao trabalho, para colocar aquele canteiro bonito para todos, alguns vizinhos iam espreitando curiosos e desconfiados da janela. Outros juntaram-se ao convívio na praceta. Ernesto junta-se a dada altura. Era bem conhecido da comunidade e diz-nos a Rés-do Chão que aprendeu bastante com ele e com o seu conhecimento da botânica. É Ernesto que começa a dar as orientações do que plantar, onde plantar e como plantar. Maria Gorette, uma vizinha menos experiente, sobe para o canteiro de enxada na mão para ajudar Lurdes. “Olhem para ali as mulheres a trabalhar e os homens aqui sem fazer nenhum”, atira uma vizinha. “As mulheres podem muito bem fazer o que os homens fazem”, responde Gorette.

O Sê Bairrista pretende dinamizar a comunidade, mas diz-nos Bruno Guimarães que é preciso “ir conquistando as pessoas pouco a pouco, um trabalho de cada vez”. “Isto são processos que ainda estão a ser findados. As pessoas não estão tão habituadas a participar. Estão a começar a ter um bocado mais de receptividade”, comenta. O projecto de repensar aquela praceta começou entre 2021 e 2022, com acções de co-construção abertas a toda a vizinhança. As pessoas foram convidadas a dizer o que pretendiam naquela praceta, tendo como ponto de partida o canteiro central. “Fizemos cinco sessões de co-desenho mais focadas nesta parte central da praceta e identificámos também coisas mais pequenas transformações mais pequenas que os moradores também gostariam de ver implementadas”, descreve Inés Sebástian. Entre as ideias discutidas, estiveram uma churrasqueira comunitária, um compostor, estacionamento para bicicletas, um espaço para jogos infantis, uma ardósia para as crianças desenharem, um placard para comunicação das actividades comuns, ou a dinamização de outros canteiros e vasos.

O canteiro central, que agora é dinamizado, é a transformação maior a acontecer na Praceta B; mas foi precedida por outras duas intervenções de menor dimensão, concretizada em 2022. Uma delas passou pela transformação de uns cubos de betão, de grande volume, que serviam apenas para bloquear o estacionamento abusivo na praceta, em vasos de jardim. “Havia pessoas que paravam aqui os carros e então colocou-se ali aqueles cubos. Mas eles não serviam para mais nada. Por isso, virámo-los ao contrário e transformámo-los em vasos”, explica Bruno. Os cubos foram pintados, enchidos com terra e neles foram plantadas algumas flores.

Um dos canteiros lateriais (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Outra das dinamizações passou pela transformação dos dois canteiros lateriais da praceta; os residentes do Bairro foram convidados a participar num workshop de ervas aromáticas, onde puderam aprender sobre estas plantas – que podem ser úteis na culinária e medicina –, e depois plantaram algumas dessas ervas. “Alguns moradores como o Sr. António sentiram-se mais apelados e deram continuidade aos canteiros, fazendo a sua manutenção”, explica Bruno. “Há uma espécie de consórcio de três moradores a cuidar desses canteiros.” Entre os dois espaços laterais, há uma área de cultivo central que está agora a ser limpa e que pode ser a próxima intervenção. “Não há ainda um consenso entre aquele consórcio do que esse canteiro pode ser. Estes pequenos choques também são bons para as pessoas começarem a dialogar, a perceber o que é criar decisão em comum, que cedências é que fazem, como podem fazer valer o seu ponto de vista…”

O Rés-do-Chão funciona muitas das vezes como um mediador, incintado a discussão e promovendo os primeiros encontros entre a vizinhança, e afastando-se de seguido do processo para deixar que a comunidade se organize sozinha. Uma das coisas que querem fazer, diz-nos Inés, é “colocar os canteiros todos da praceta em relação”. E as ideias que foram discutidas nas sessões anteriores de co-criação mantém-se em cima da mesa – todas menos uma, a de instalar uma churrasqueira comunitária, que foi amplamente rejeitada com o receio de que pudesse perturbar o direito ao descanso dos vizinhos.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas
Gostaste deste artigo? Foi-te útil de alguma forma?

Considera fazer-nos um donativo pontual.

IBAN: PT50 0010 0000 5341 9550 0011 3

MB Way: 933 140 217 (indicar “LPP”)

Ou clica aqui.

Podes escrever-nos para [email protected].

PUB

Junta-te à Comunidade LPP

A newsletter é o ponto de encontro de quase 3 mil pessoas.