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Os navios eléctricos da Transtejo

Artigo de Opinião.

Também eu não poderei avaliar se o processo de aquisição dos 10 navios foi juridicamente bem conduzido, mas posso comentar algumas afirmações do Tribunal de Contas.

O primeiro dos 10 barcos eléctricos encomendados pela Transtejo Soflusa (TTSL) no estaleiro da empresa em Cacilhas (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

No final de Março, o Tribunal de Contas desencadeou uma polémica em torno da compra de 10 navios eléctricos e respectivas baterias pela Transtejo Soflusa (TTSL). Uma polémica desigual, porque a opinião pública maioritariamente pareceu escandalizada e partilhou os argumentos do Tribunal de Contas, condenando a administração demitida (e já substituída); e muito poucos comentários apareceram e têm aparecido dizendo que o Tribunal poderá ter bem fundamentado juridicamente o seu parecer mas não ter competência técnica, entendida como de engenharia, para utilizar certos termos na comunicação que divulgou.

Também eu não poderei avaliar se o processo de aquisição dos 10 navios foi juridicamente bem conduzido, mas posso comentar algumas afirmações do Tribunal de Contas.


“A Transtejo comprou um navio completo e nove navios incompletos, sem poderem funcionar, porque não estavam dotados de baterias necessárias para o efeito. O mesmo seria, com as devidas adaptações, comprar um automóvel sem motor, uma moto sem rodas ou uma bicicleta sem pedais, reservando-se para um procedimento posterior a sua aquisição.”

– Tribunal de Contas

Tomemos, então, o exemplo do automóvel. Na aceção que parece ser a do Tribunal de Contas de que um veículo só está completo se puder funcionar, poderá dizer-se que esse automóvel está completo se o depósito de combustível estiver vazio? E que deixou de estar completo se a gasolina faltar a meio da viagem? Simplifiquemos: o automóvel não está completo se não tiver um depósito de combustível, assim como um automóvel eléctrico não estará completo se não tiver a bateria de tração (que equivale tecnicamente ao depósito de combustível; este armazena a energia potencial da gasolina, enquanto que a bateria armazena energia eléctrica).

Mas não se pode dizer que um navio eléctrico sem bateria equivale a automóvel sem motor. Motor, do latim motorius, é o que move. Segundo uma definição mais técnica, motor é o conversor de energia que converte, por exemplo,  a energia química potencial da gasolina na energia mecânica do movimento, ou a energia elétrica no movimento. A bateria converte a energia recebida através de uma corrente e de uma tensão eléctricas em, através de uma reação química, energia elétrica potencial. Motor é uma coisa, bateria é outra coisa.

A comparação correcta seria automóvel sem depósito de combustível. Também a citação de navios sem leme não parece correcta, uma vez que existem navios sem leme – e, se não me engano, até funcionam na Transtejo –, com turbo-propulsores azimutais, isto é, grupos moto-propulsores que giram em torno de um eixo vertical, fazendo às vezes do leme.

E, se em vez de comprar navios de baterias, a Transtejo tivesse encomendado navios a hidrogénio? Viriam completos, com a sua célula de combustível que converteria o hidrogénio em eletricidade, mas também não funcionariam sem a instalação em terra de electrolisadores que produzissem hidrogénio a partir da água (no pressuposto que, por razões ambientais, o hidrogénio não deveria ser produzido a partir de eletricidade com origem em centrais de gás natural). Só que ainda não se difundiram em Portugal os electrolisadores para produção local de hidrogénio, e é sempre um risco adoptar uma tecnologia nova sem grande experiência em condições reais. No entanto, até se pode considerar a hipótese de alguns dos 10 navios virem a ser adaptados (evidentemente pelo seu fabricante) para tracção híbrida, baterias de menor capacidade e hidrogénio.


“A Transtejo disse ao Tribunal de Contas, num curto período de tempo, uma coisa e o seu contrário para justificar os contratos que submete’ e até faltou à verdade quando submeteu o primeiro contrato a fiscalização prévia. Os pressupostos em que o tribunal tomou a decisão de concessão de visto [no primeiro contrato submetido] foram incorretos, porque a entidade faltou à verdade. Sendo que se tivessem sido prestadas ao tribunal as informações corretas – como deveria ter sido feito – a decisão do tribunal poderia ter sido -, à luz do que se acabou de expor e da própria jurisprudência do tribunal nesta matéria – a de recusa do visto.”

– Tribunal de Contas

Evidentemente que é possível que o Tribunal de Contas tenha razões para se sentir “enganado” na altura do visto no primeiro contrato, o de compra dos navios. No entanto, deveria ponderar que o contrato foi feito numa altura de evolução da tecnologia das baterias e do seu preço. Ignoro os termos do contrato, portanto tenho de reconhecer a possibilidade do erro e do engano induzido, mas também posso admitir que os colegas que fizeram o caderno de encargos da Transtejo também estivessem enganados, o que é aceitável tratando-se de uma tecnologia nova e evolutiva, ao admitir que o fornecimento separado de baterias podia ser através de um concurso público. Como se verá adiante, por razões de segurança as baterias devem ser fornecidas pelo fabricante do navio, pelo que, a ter havido engano, poderá ter sido em boa fé e não por má fé. Até porque o argumento invocado pela administração demitida da Transtejo é válido, o custo de produção das baterias estava a baixar.


“Recorrendo a regras de experiência e de conhecimento, mesmo básico, da realidade empresarial, a resposta só pode ser uma: havendo um intermediário, aumenta o preço.” 

– Tribunal de Contas

Concorda-se que com um conhecimento básico se chegue a esta conclusão: um intermediário aumenta o preço. Contudo, um raciocínio secundário deter-se-á em aspectos importantes. Por exemplo, numa aquisição de uma tecnologia complexa e recente como esta, a existência dum intermediário que detenha conhecimento técnico que previna soluções erradas ou perigosas pode justificar-se.

Os custos dessa consultoria podem ser inferiores aos custos de um acidente por ignorância na aquisição (estou aqui a fazer a equivalência entre um consultor, ciente, por exemplo, dos riscos de integração de baterias suscetíveis a incêndio, e o fabricante dos navios). Curiosamente, foi recentemente divulgado que algumas marcas de automóveis eléctricos baixaram os custos de produção graças à incorporação das baterias na carroçaria do automóvel (lá está, o automóvel está completo com as baterias fabricadas pelo fabricante do automóvel, embora na indústria automóvel seja normal o fabricante ser uma espécie de assemblador de peças fabricadas por subfornecedores), mas com o grave inconveniente de uma pequena colisão poder danificar o conjunto das baterias de tal modo que não terão reparação possível.

Mas não é esta a única possibilidade de, evitando um intermediário competente e indo displicente e negligentemente cair nos braços dum subfornecedor mais barato, cometer um erro grave. Não foram divulgadas as caraterísticas técnicas dos navios. Ignoro, por isso, a capacidade das baterias e a sua autonomia, admitindo que possam ser de 1500 a 2000 kWh e à volta de 20 km de autonomia. São valores que exigem muita confiança nas referências do fornecedor, que no caso da Corvus Energy, afirma ter 750 navios equipados.


“O comportamento da Transtejo, com a prática de um conjunto sucessivo de decisões que são não apenas economicamente irracionais,mas também ilegais, algumas com um elevado grau de gravidade, atinge o interesse financeiro do Estado e tem um elevado impacto social” O contrato inicial, com o prazo de execução de três anos, foi celebrado, após concurso público, com a empresa espanhola Astilleros Gondán, empresa a que a Transtejo entendeu, através de uma aditamento no contrato, comprar posteriormente, por ajuste direto, as ‘nove baterias que não faziam parte, por opção sua, do contrato de aquisição dos navios (e uma bateria)’. A Gondán, por sua vez, compraria as baterias ao fabricante, a Corvus Energy, para as revender à Transtejo. A Transtejo alegou que já teria tentado comprar as baterias, por ajuste direto, ao fabricante, mas este recusou. Quanto ao aditamento ao contrato para a aquisição das baterias, o TdC não tem dúvidas: ‘É ilegal com dois fundamentos: a violação dos princípios da concorrência e da igualdade’, porque iria criar ‘uma dependência da entidade pública relativamente a um fornecedor’, e a violação do Código dos Contratos Públicos, por falta de preenchimento dos requisitos para a modificação objetiva do contrato.”

– Tribunal de Contas

Um dos maiores erros da engenharia portuguesa – não na concepção ou no projecto, mas na planificação da obra e na fiscalização – foi o desastre do túnel do Metro no Terreiro do Paço, em 2000. O túnel já tinha sido construido por um empreiteiro, mas teria de ser ligado à estação que ainda não tinha sido construida. Essa obra deveria ter sido feita pelo mesmo empreiteiro pela simples razão da garantia do túnel. Mas a administração da altura achou a proposta muito elevada e fez um concurso público. Quem ganhou o concurso subcontratou os carotadores que abriram os buracos para injecção de betão e consolidação de estacas sem a presença dos diretores e fiscais da obra, provocando a destruição parcial do túnel. Felizmente não morreu ninguém. Foi um exemplo de que pruridos jurídicos virtuais não devem sobrepor-se às razões técnicas reais.

Conto este episódio, porque a analogia é evidente, as baterias de iões de lítio têm um problema grave. Defeitos de fabrico ou excessiva concentração de modo a subir a densidade energética em Wh por kg pode tornar as baterias suscetíveis a incêndios espontâneos por fusão do lítio, que funde a 180 ºC, provocando dendrites e curto circuitos entre os eléctrodos. As baterias de fosfato de lítio/ferro terão maior imunidade aos incêndios, mas a sua densidade energética é cerca de metade da dos iões de lítio o que é decisivo na tracção. 

Os incêndios podem também ter origem em colisões ou falta de ventilação. São do domínio público incêndios em automóveis de uma conhecida marca, quer espontâneos, quer na fase de carregamento rápido, quer na sequencia de colisões. Igualmente se verificaram espontaneamente incêndios em autocarros eléctricos ao serviço da operadora de transportes RATP, em Paris. Não admira, assim, que deva ser o fabricante dos navios a responsabilizar-se pela garantia das baterias. As baterias para navios não são como rodas de bicicleta: o seu nível de capacidade exige rigor no fabrico para evitar o risco de incêndios e não devem ser fornecidas fora da garantia do conjunto.

Aliás é um paradoxo na argumentação do Tribunal de Contas: se as baterias são parte integrante do navio, há que comprá-las ao vendedor dos navios.


Mas não interessa esta discussão aos passageiros. 

Há que resolver o problema em nome dos passageiros da Transtejo e substituir a queixa ao Ministério Público (arquivar a queixa, como se diz), cujos fundamentos técnicos deixam a desejar e revelam insuficiências de conhecimento técnico, por uma auditoria independente com técnicos conhecedores de engenharia naval e de tracção elétrica, que desenvolva o seu trabalho com divulgação pública interativa fase a fase do respetivo progresso.

Devemos defender o princípio da separação de poderes, incluindo a independência do poder judicial, mas também a interdependência com os outros poderes, para que o poder judicial não queira considerar-se infalível e acima da realidade técnica, mantendo a confiança dos cidadãos (que não se repitam casos como a aposição do visto do Tribunal de Contas ao contrato da Linha Circular do Metro em 2020, logo a seguir a uma lei da República, a 2/2020 que mandava suspender a construção da Linha Circular; a teoria do “cavaleiro” numa lei do orçamento que pretende inibi-la é uma teoria, não é uma disposição constitucional – o Tribunal de Contas não detém o poder da infalibilidade, nem é uma turris eburnea acima de escrutínio).

Salvo melhor opinião, evidentemente, a intervenção do Tribunal de Contas está a atrasar tudo e, portanto, a ferir o interesse público. Não seria a primeira vez.

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