No último sábado, o colectivo Lisboa Possível e o partido Volt fecharam duas ruas na freguesia da Misericórdia aos carros e abriram-nas às pessoas, num evento que contou com o apoio da restauração local. “Os comerciantes disseram-nos que esta ideia de que precisam de carros a passar para facturar mais é errada. Durante o Covid,…

Ksenia Ashrafullina, activista do colectivo Lisboa Possível, queria mostrar que um “superquarteirão” (ou “superbairro”, como prefere chamar) é possível em Lisboa. E queria mostrar também que é possível fechar ruas aos carros e abri-las ao comércio e às pessoas. Mas não lhe foi possível concretizar essas propostas sozinha. Por isso, juntou-se ao Volt, partido político que, apesar de não ter representatividade nos órgãos locais de Lisboa, quis sair para a rua em campanha e mostrar que é possível uma outra Lisboa.
No último sábado, dia 8 de Julho, a Rua e a Travessa dos Mastros, na freguesia da Misericórdia, em Lisboa, estiveram sem carros e com muita gente dentro. O evento, organizado entre a Lisboa Possível e o Volt Portugal, procurou devolver a rua às pessoas e também ao comércio. Restaurantes e bares puderam colocar mesas no exterior, potenciando os seus negócios; e várias pessoas puderam aproveitar não só essas esplanadas, mas também as actividades que foram organizadas ao longo do dia naqueles dois arruamentos. Houve uma conversa sobre “como mudar o sistema” e melhorar a nossa relação com o planeta, um workshop de “fado activista”, declarações de poesia, a actuação de um grupo ucraniano de folclore, um mercado de livros asiáticos, e outras actividades. Todas as actividades acabaram antes das 22h30 para que os moradores pudessem descansar, e houve preocupação de não deixar lixo na rua, nem usar objectos descartáveis.

“Somos um novo partido na cena política portuguesa e queremos fazer política de uma forma diferente, e pode ser desta forma, celebrando o espaço público e mostrando que a rua pode ter outros usos, e não servir apenas para carros passarem”, explica Duarte Costa, dirigente do Volt. “Pela lei portuguesa, os partidos têm total liberdade para fazerem trabalho político nas ruas, e ainda bem, é uma conquista de Abril que serve para todos os partidos. E nós usámos esse dispositivo legal para poder dar esta oportunidade às pessoas de estarem na rua, de conversarem, de terem esta rua para elas.” Esta não é a primeira vez que o Volt e a Lisboa Possível trabalham em conjunto, mas para Ksenia a independência partidária do colectivo continua garantida: “Trabalhamos com todos os que queiram trabalhar connosco.”





A Travessa dos Mastros, juntamente com a Rua dos Mastros e a Rua da Silva partem da Rua dos Poços dos Negros; a Travessa dos Mastros faz um “L” e cruza com a Rua dos Mastros e a Rua da Silva, que são paralelas e que terminam ambas no Largo do Conde Barão, em Santos, na freguesia da Misericórdia. “Temos aqui duas ruas iguais, mas uma é morta e a outra viva”, brinca Ksenia. “Sou moradora aqui na freguesia da Misericórdia e atravesso regularmente este quarteirão. O que faço? Vou sempre pela Rua da Silva porque ali sinto-me bem, sinto-me mais segura, sem medo de ser atropelada ou de ter de me encostar ao prédio para o carro passar. Nunca vou pela Rua dos Mastros.”
Os três arruamentos têm um perfil semelhante: são ruas estreitas, com passeios pequenos e rodeadas de prédios de baixa volumetria. Durante a pandemia de Covid-19, estiveram sem carros, permitindo à restauração aproveitar o espaço exterior numa altura em que o distanciamento social era necessário e havia imposições ao nível da lotação nos espaços fechados. Finda essa situação excepcional, a Rua da Silva foi a única a permanecer sem circulação automóvel; aliás, esta rua, que entretanto se tornou conhecida como “Green Street Lisbon” e como uma rua cheia de plantas, tornou-se uma pequena atracção turística na cidade e tem várias pessoas a caminhar ou a usar as esplanadas da restauração. Além da Rua da Silva, também a Rua do Merca-Tudo e a Travessa dos Pescadores são pedonais.

No evento organizado no sábado, intitulado “Com Gente Dentro”, o colectivo Lisboa Possível e o partido Volt quiseram dar à Rua dos Mastros e também à Travessa a dinâmica social e comercial que existe na Rua da Silva, mostrando também que 40 cm de passeio não são passeio, que faltam “lugares de brincadeira” (um trocadilho com “lugares de estacionamento”) e que é possível ter ruas onde as pessoas possam abrir as janelas sem se preocuparem com o sai dos tubos de escape. Lisboa Possível e Volt apoiam a pedonalização destas ruas de bairro e contam com o apoio dos vários restaurantes e bares ali estabelecidos – Copa Lisboa, Mamma Gaia, Miss Dumpling, Sekai Sushi Bar, Sekai Cocktails, In Noodles, O Fatica e Modjo –, que foram envolvidos na promoção desta iniciativa. “Antes de fazermos este evento, falámos com os comerciantes que nos disseram que esta ideia de que precisam de carros a passar para facturar mais é errada. Eles viram que, durante o Covid, quando as ruas estavam fechadas, facturavam mais. Disseram-nos que perderam 40% da facturação”, explica Ksenia.

Nem todos os estabelecimentos que funcionam hoje na Rua e Travessa dos Mastros existiam na época do Covid, quando estas eram maioritariamente pedonais. O Miss Dumpling, por exemplo, começou durante a pandemia com entregas em casa mas só recentemente ganhou uma morada física em Santos. Hélder Beja, proprietário deste restaurante de comida chinesa, estava satisfeito por poder finalmente colocar o quadro com a ementa no meio da Travessa dos Mastros. E por ter uma esplanada. “Quanto abrimos há dois meses e meio, falámos com a Junta de Freguesia para perceber a viabilidade de uma esplanada. Foi-nos dito que a esplanada que o restaurante antes do nosso teve foi uma excepção devido à pandemia e que era impossível termos uma por haver duas garagens licenciadas na rua. Aceitámos as regras, claro”, conta. Contudo, Hélder diz que nunca viu as tais garagens a serem usadas e diz que a Travessa “transforma-se numa espécie de parque de estacionamento a céu aberto, principalmente durante a semana. As pessoas que trabalham aqui ou vêm aí almoçar a outros sítios estacionam aqui na rua e até deixam os números de telefone nos carros. De repente, há cinco ou seis carros aqui em fila. E é pena que as autoridades não deixem ter esplanadas mas também não façam nada sobre isto, que acaba por tirar qualidade de vida a toda a gente”. Ou seja, a Travessa não serve nem para circulação rodoviária, nem para caminhar, mas para estacionamento informal e gratuito.

O responsável do Miss Dumpling adoraria que não só a Travessa como a Rua dos Mastros pudessem estar fechadas aos carros “sempre ou com um pilarete e acesso com cartão para essas garagens que, como disse, não são usadas mas que existem e os donos têm direito a usá-las”. “E se não pudessem estar fechadas sempre, que estivessem pelo menos ao fim-de-semana. São duas ruas antigas, muito estreitas. Não é possível uma cadeira de rodas ou um carrinho de bebés passarem nas condições em que as ruas estão hoje, uma com carros a passar e outra com carros estacionados” , lamenta Hélder.
O sábado foi um dia especial para os restaurantes dos Mastros. “É muito bonito ver estas ruas com mesas e com pessoas sentadas. Pusemos uma musiquinha baixa lá fora. Não tem nada a ver com os outros dias. Mesmo para quem aqui está a trabalhar, o ambiente muda logo.” Hélder espera que este dia mostre que “com um bocadinho de vontade política é possível tornar esta zona muito mais atrativa, sem, mais uma vez digo, sem afectar a vida dos moradores, pelo contrário, melhorando também a vida dos moradores porque ninguém quer – pelo menos, eu não quero – transformar isto num bairro de festa. Só queremos poder usar a rua como ela deve ser usada, para as pessoas, com gente dentro, como a gente diz”, aponta o jovem empresário, consciente dos problemas que por vezes as ruas pedonais com muitos restaurantes, bares e esplanadas podem representar para os residentes. “Nós não fazemos ruído e às 11 da noite já estamos a fechar tudo.”

Por seu lado, Felipe Resende é dono d’O Fatica, um restaurante de comida brasileira que se situa na Rua dos Mastros. É ainda morador dessa mesma rua e prefere falar como tal. “É uma rua que é muito estreita para ter trânsito de carros e autocarros, porque afronta o direito a caminhar das pessoas. As pessoas não podem usar só a calçada para caminhar”, refere. “Isto impacta a qualidade de vida das pessoas que aqui vivem, que aqui trabalham, que querem viver a rua e não podem. É muito triste que essa rua tenha voltado a passar carro.” Felipe já vivia aqui durante a pandemia, quando a rua ficou sem circulação rodoviária. “Ter esplanada é importante para o negócio, mas não é o principal, não é a minha pauta. Eu falo mais como morador que como comerciante. Queria ter uma rua para poder caminhar tranquilamente, sem me preocupar com os carros. Isto é muito triste, sabe? É um centro histórico, é uma rua que poderia ser lindíssima, onde caberia várias actividades, várias coisas.” Sonia é vizinha de Felipe; foi na Rua dos Mastros que encontrou um apartamento quando veio de França há alguns anos, e naquele sábado estava a oferecer massagens na rua – montou um pequeno estaminé em pouco tempo.“Gostava de ter sabido deste evento mais cedo para que eu e outros moradores pudéssemos preparar alguma coisa para oferecer aqui na rua. Estas oportunidades são boas para partilharmos entre vizinhos, porque durante o dia estamos a trabalhar e não nos vemos uns aos outros.” Sonia gostou de ver aquele quarteirão novamente sem carros. “Tivemos estas experiências durante o Covid e em alguns fins-de-semana, e era bastante bom. As pessoas, e principalmente as crianças, podiam caminhar muito mais facilmente, em segurança. Era como uma pequena vila.”

A pizzaria Mamma Gaia também abriu recentemente – em Janeiro – e é o segundo restaurante de Gonçalo Rodrigues, que tem outro estabelecimento na pedonal Rua da Silva. “Sinto muita diferença. A diferença é enorme, é abismal. Posso dizer que o restaurante dali [Rua da Silva] faz três vezes o que eu faço aqui, por dia. Acredito que é por o facto de lá ter esplanadas e aqui não”, aponta, referindo que o número de pessoas que consegue sentar no interior de ambos os restaurantes é idêntico. “Por exemplo, uma pessoa agora no Verão, com 30º, vai querer beber um cocktail num local com esplanada ou num espaço fechado?” O jovem proprietário gostaria de ver a Rua e Travessa dos Mastros de novo sem trânsito rodoviário. “Isto é um bairro histórico, os passeios são mínimos e há carros que passam aqui rápido. Se sais mais distraído de um restaurante ou de casa, estás sujeito a levar com um carro. Porque quando uma pessoa sai de uma loja, está distraída.” Gonçalo também pediu à Junta de Freguesia uma esplanada, que lhe foi negada. “Não tivemos sequer maneira de lutar por uma esplanada porque nos foi logo negado porque passava ali [na Rua dos Mastros] um autocarro. Mas, como vemos no dia de hoje, não há autocarro. Ele dá a volta ali noutra rua e está tudo bem.”
O autocarro de que Gonçalo fala é o 22B, a Carreira de Bairro da freguesia da Misericórdia que atravessa a Rua dos Mastros no seu percurso circular entre o Príncipe Real e o Cais do Sodré. Ksenia diz que o 22B, que não faz paragem naquela rua, poderia passar pela mais larga Rua das Gaivotas (a 100 metros) – como fez naquele sábado – ou pela Avenida Dom Carlos I (a 80 metros). Ao longo dos últimos meses, a Lisboa Possível andou a ouvir a opinião dos moradores dos Mastros, também para recolher dicas, medos e objecções não só em relação ao evento que iam fazer no sábado, mas também sobre o que aqueles dois arruamentos poderiam ser dali para a frente. “Estamos a fazer trabalho de rua para realmente mudar alguma coisa aqui, na rua onde as pessoas vão continuar a viver depois deste sábado.” O tema do autocarro foi central nas conversas. “Dizer que esta rua tem que ficar assim para o autocarro e para todo o trânsito só porque alguém tem que ir para o centro de saúde ou ao Mercado do Ribeira não faz sentido”, comenta a activista, sustentando-se em testemunhos de moradores. “Há ruas paralelas a 100 metros ou menos. Esta rua deveria fazer parte deste conceito de ‘superbairro’ que estamos a tentar desenvolver para criar um ecossistema seguro e a própria malha urbana convida a isso.”

Ksenia e a Lisboa Possível andou durante vários meses a tentar convencer uma Junta de Freguesia da cidade a organizar, durante um dia, um “superquarteirão” (ou “superbairro”) – isto é, uma zona onde a circulação automóvel é reorganizada de modo a desviar o tráfego de atravessamento para as ruas principais circundantes, permitindo que no interior do quarteirão seja dada prioridade ao andar a pé e à bicicleta (isto sem eliminar, claro, o acesso a garagens e a viaturas de emergência). Chegou a estar previsto um “superquarteirão” em torno da Praça das Flores com o apoio da Junta de Freguesia da Misericórdia, mas, por dificuldade em reunir autorizações, respostas e consensos das várias partes para fechar as ruas circundantes, a iniciativa acabou por não se realizar. Ksenia mudou, então, de estratégia.
A relação entre a Lisboa Possível e o Volt não é nova e surge uma vez mais pelo alinhamento entre as ideias defendidas pelo colectivo e pelo partido político. “Precisamos de materializar o sonho de cidade que queremos ter. Uma cidade com mais espaço para as pessoas, uma cidade com menos carros, uma cidade com melhor qualidade do ar e uma cidade alinhada com os desafios climáticos que temos pela frente. E aqui temos um problema na Misericórdia. Temos uma Junta de Freguesia que é muito resistente à ideia de pedonalizar esta zona e que diz que pedonalizar é penalizar. Nós discordamos profundamente com isto, a Lisboa Possível também”, aponta Duarte Costa, do Volt. “Nós queremos mais espaço para as pessoas, como temos já em muitas cidades europeias, incluindo, em alguns casos, através de eleitos locais do Volt, que têm introduzido essas mudanças. Queremos fazer o mesmo em Lisboa. E aqui hoje é um dia para desfrutar, um dia para sonharmos que esta Lisboa é possível.”
“Aquilo que eu sinto ao longo deste dia em que tenho estado a falar com as pessoas que passam, com os comerciantes, e com os clientes desses comerciantes, é que não faz sentido estas ruas terem trânsito. Não foram desenhadas de raiz para terem carros e inclusivamente não cumprem a lei no que diz respeito às larguras mínimas de passeios e de rua para carros”, adiante o dirigente do Volt. O evento montado no sábado levou à Rua e Travessa dos Mastros várias pessoas, que ali usufruíram da restauração mas também da programação proposta. Houve crianças e adultos a desenharem no asfalto ou a brincarem na rua, por exemplo, a fazerem o jogo da macaca. O Volt esteve em campanha, na tentativa também de se dar a conhecer às pessoas na esperança de conseguir eleitos locais em Lisboa pela primeira vez nas próximas eleições. “Precisamos que as pessoas nos conheçam, para saberem ao que viemos e para poderem confiar em nós na hora de eleger, para permitir que possamos representá-las e até dar espaço para elas serem representadas dentro do Volt”, refere Duarte, para quem este evento “é uma forma muito acessível de as pessoas sentirem isso, porque é uma acção concreta de rua que melhora a sua qualidade de vida”.

“No contexto europeu, o Volt já tem 130 eleitos em todos os níveis, do local ao europeu, em vários países da Europa. Nós temos eleitos do Volt, por exemplo, na Alemanha e também na Holanda que já têm conseguido este tipo de medidas de fechar ruas ao trânsito automóvel e abri-las a outros usos, de repensar o urbanismo das cidades e de reduzir o estacionamento em zonas que prejudicam o espaço público, transferindo-o para outras zonas e apostando noutras formas de mobilidade. E como somos todo um único partido europeu, eu acho que há aqui uma grande vantagem que nós podemos trazer essa perspectiva europeia para Portugal, para Lisboa, para a política local, de uma forma que talvez nenhum outro partido consiga igualmente fazer. E esta iniciativa visa justamente mostrar que isso é possível”, diz Duarte.
Por seu lado, Ksenia gostaria de ver mais partidos a fecharem outras ruas noutras freguesias e cidades. “Gostávamos que outros partidos, associações, colectivos… tomem esta ideia e façam mais, que copiem, melhorem. E se a junta ainda não chegou lá porque está atrasada, nós não podemos ficar atrasados por causa da junta. Temos que fazer aquilo que é o futuro, que é trazer as pessoas para a rua, fazê-las perceber isto das ruas sem carros para que possam pedir isso. E depois isto muda o ciclo eleitoral, porque de repente são os moradores a querer e eles têm de prometer isso para ganhar as eleições.”