Os Comboios de Bicicletas já estão presentes em 25 escolas da cidade de Lisboa e, neste último ano lectivo, envolveram 240 crianças e 42 “maquinistas”. Paulo Chakour foi um deles.
Numa manhã, Paulo viu um Comboio de Bicicletas a passar à frente de sua casa, nos Olivais. E nesse momento quis saber mais sobre o que aquilo era e, por isso, perguntou a um dos monitores (“maquinistas”). Paulo e a família tinham chegado do Brasil há não muito tempo, nessa altura. “Parei esse Comboio e perguntei ‘bom, o que é isso?’. Eu queria que meus filhos pudessem participar. Aí me falaram ‘ah, você entra no site da Câmara e faz o cadastro'”, conta. “Por acaso, a escola dos meus filhos ainda não tinha nenhum Comboio e eu os inscrevi na escola ao lado. Depois, a gente conversou e conseguiu ampliar para que esse Comboio fosse para as duas escolas e comecei a participar com meus filhos.“
Hoje, Paulo Chakour é também um dos 42 “maquinistas” dos Comboios de Bicicleta em Lisboa. Integra a cooperativa Bicicultura, que desde 2019 operacionaliza este projecto para a Câmara de Lisboa. Neste último ano lectivo, 2022/23, o programa abrangeu 240 crianças e 25 escolas, com um total de 362 circulações – há pelo menos uma circulação semanal por escola.
O Comboio de Bicicletas “conduzido” por Paulo foi dos mais concorridos. Realizava-se à quarta-feira entre o bairro das Galinheiras, na freguesia de Santa Clara, e a EB1 Quinta dos Frades, perto da Alameda das Linhas de Torres, já na freguesia do Lumiar. No dia em que acompanhámos Paulo e o seu Comboio, já no final de Junho e do ano lectivo, levou uma dezena de passageiros. “A gente tem 16 crianças inscritas e participa uma parte dessas crianças”, explica. “E, se eu não estou enganado, talvez seja o comboio mais longo. É um Comboio de praticamente cinco quilómetros e tem no percurso dois parques, o Parque Oeste e a Quinta das Conchas, que a gente cruza e que são uma motivação extra para as crianças participarem. Mas a gente não deixa também passar em pedaços que são ruas.”
Por outro lado, diz Paulo, “percebi que o nosso Comboio tem duas realidades dentro do mesmo Comboio, porque a gente sai de uma região um pouco mais remota da cidade e vem em direcção a uma região que não chega a ser central mas que tem um poder económico mais alto. E aí a gente termina numa zona onde há parques, há ciclovias, há acesso para bicicleta, mas começa o percurso numa região onde a pavimentação da rua está um pouco mais buracada, onde a própria colecta de lixo me parece não ser a mesma…“.
Enquanto “maquinista” principal e coordenador desta linha de Comboio de Bicicletas, a responsabilidade de Paulo não se esgota à quarta-feira, quando sai para levar os pequenos e pequenas à escola. Na véspera, por exemplo, tem de fazer a chamada para saber que crianças vão participar no dia a seguir; são os pais que indicam essas presenças através de um grupo de WhatsApp de comunicação com a equipa da Bicicultura e da Câmara:
Bom dia, bom dia! Amanhã temos Comboio de Bicicletas ☀️ Venho pedir-vos que comuniquem as presenças, indicando o nome da criança e a paragem em que integram o comboio Estejam também à vontade para colocar as questões que possam ter. Obrigado e boas pedaladas! 🚲
– mensagem de Paulo no grupo de WhatsApp
Paulo prepara, então, uma folha de presenças com os passageiros previstos e as paragens onde vão entrar. Podem existir desistências de última hora e para isso serve também o canal de WhatsApp. Sendo o “maquinista” principal, é Paulo que segue à frente do Comboio, conferindo todas as paragens e garantido que todas as crianças embarcam no grupo de bicicletas – sempre de olho no WhatsApp para qualquer eventualidade e na lista de passageiros para não ficar ninguém para trás. A responsabilidade não recai totalmente em si; Paulo é acompanhado por “maquinistas” auxiliares que ajudam na condução e dinâmica do Comboio. Em conjunto, todos os monitores adultos (há um rácio de um monitor por cada quatro crianças, determinado pela Bicicultura) garantem que cada Comboio de Bicicletas circula como um grupo coeso e em segurança, havendo particular atenção os momentos de partilha de estrada com os veículos automóvel e às intersecções em geral.
Os monitores ou “maquinistas” procuram ajudar as crianças na condução da bicicleta, dando-lhes dicas de condução da bicicleta ao longo do percurso, corrigindo comportamentos desadequados e prestando também auxílio ao nível da mecânica ou do ajuste da altura do selim, por exemplo. Todos os “maquinistas” da Bicicultura são experientes na utilização da bicicleta em contexto urbano mas recebem, ainda assim, formação específica para a condução dos Comboios, pois a circulação em grupo apresenta desafios próprios.
“De uma certa forma, eu já era um ‘maquinista’ antes de conhecer a Bicicultura porque tenho o meu próprio ‘comboio’ quando levo os meus dois filhos à escola. Acho que isso que me trouxe uma facilidade para entender a dinâmica de um Comboio e quais são as preocupações de estar acompanhando uma criança andando de bicicleta nas ruas de Lisboa”, observa Paulo. “Mas acho que, ainda assim, um Comboio é muito diferente de um pai levando as crianças à escola, pois possibilita a integração dos ciclistas num grupo, que traz mais segurança para andar nas ruas, e isso também permite uma interação social entre as pessoas. Os Comboios promovem isso nas crianças, que não é algo que você vê acontecendo naturalmente.”
Paulo, como os restantes maquinistas da Bicicultura, recebem por este trabalho – é uma forma de garantir o compromisso e a estabilidade do projecto. Mas não é a renumeração que o leva a acordar todas as quartas cedo para levar uma ou duas dezenas de crianças à escola. “Sabia que havia essa remuneração, mas a minha impressão é que todo mundo participaria na mesma se fosse uma actividade voluntária. Foi um pouco o que aconteceu comigo no começo, queria ajudar o projecto”, conta. Como as entradas das crianças são antes dos horários laborais convencionais, os “maquinistas” conseguem conjugar as duas actividades. Paulo é consultor na área industrial e trabalha remotamente para o Brasil; está há um ano e meio em Lisboa e diz que os Comboios de Bicicleta são uma das motivações que o faz continuar na capital portuguesa. “Eu morei 40 anos em São Paulo. É uma cidade um bocadinho mais difícil de ter essa dinâmica de ocupação da rua pelas crianças.”
“O projecto tem vários propósitos além de envolver as crianças. Também promove que os pais possam usar mais a bicicleta, talvez pais que nunca tenham vindo com os filhos de bicicleta para a escola começam a ver que podem fazê-lo e que podem usar bicicleta em outros dias. E acho que todo esse propósito motiva a gente, maquinistas, a continuar a participar e tentar trazer mais crianças que possam participar”, descreve. “E acaba sendo um projecto de afirmação. Acredito que a médio-longo prazo, se a gente tiver os pais todos trazendo as crianças de bicicleta para a escola, este projeto nem seria necessário. Os próprios pais podem se organizar, trazer as crianças. Mas, por enquanto essa não é a cultura da cidade. Então, acho que um projeto de afirmação que promove uma cultura e lá na frente a gente consiga mudar, de uma certa forma, a cara da cidade.” E acrescenta: “Além disso, para mim, que trabalho com projectos de engenharia, de construção e montagem industrial, a possibilidade de estar envolvido com uma iniciativa que tem um lado mais humano é também motivadora.”
Com entrada às nove horas na EB1 Quinta dos Frades, significa que a linha arranca pouco depois das oito no ponto de partida nas Galinheiras. Para Paulo e para os restantes monitores, significa acordar às sete da manhã ou ainda mais cedo. “Para mim é uma oportunidade também de pedalar, porque são oito quilómetros”, conta. “Eu optei por não usar a bicicleta eléctrica justamente para poder fazer um exercício de manhã.” E depois dos oito quilómetros de deslocação e antes dos cinco do Comboio, costuma haver tempo para um café e um pouco de confraternização. “Eu já acordo cedo por conta dos meus filhos, então a minha dinâmica é essa. Eu acabei indo sempre um pouco mais cedo para um café que fica próximo do primeiro ponto. E outros maquinistas acabam indo para o café também. A gente se encontra lá e esta socialização entre os ‘maquinistas’ é muito bacana.”
Paulo Chakour vai continuar a levar crianças à escola no ano lectivo que se segue, quando os Comboios de Bicicleta voltarem, e a EB1 Quinta dos Frades deverá continuar a contar com este programa. A Bicicultura, que já conta com projectos de Comboios de Bicicletas noutras cidades da área metropolitana de Lisboa (como Almada) e também pelo país, conta só em Lisboa com 42 “maquinistas” e tem sempre aberto um formulário de candidatura. “Procuramos pessoas que se desloquem de bicicleta na cidade, capazes de promover a interacção com as crianças e que estejam disponíveis para aprender e executar as técnicas de segurança para as quais damos formação”, aponta Luís Vieira, cooperante da Bicicultura e coordenador do projecto dos Comboios de Bicicleta/CicloExpressos a nível nacional. “Temos procurado ter uma equipa diversa, procurando, entre outros aspectos, caminhar no sentido da paridade de género, de forma a promover a representatividade e evidenciar o papel da bicicleta enquanto elemento agregador da comunidade.”