Em Lisboa, quatro start-ups testaram tecnologia direccionada a pessoas invisuais. Dois desses projectos, a Lumen e a WhiteJacket, podem mesmo fazer a diferença na mobilidade pedonal de quem não vê a cidade da mesma forma.
É com um dispositivo tecnológico posto na cabeça que Tomás Delfim sai à rua. Deixa para trás a bengala que normalmente usa para se deslocar na cidade e para ver aquilo que a ausência de visão não deixa. Auxiliado por membros da Lumen, start-up romena que desenvolveu o equipamento, Tomás é guiado até uma zona ampla de jardim. É por aí que se movimenta, testando a tecnologia que ainda está em desenvolvimento.
A Lumen esteve em Lisboa a testar a sua solução de navegação pedonal para cegos, num exercício coordenado pela equipa de Acessibilidade Pedonal da Câmara de Lisboa e que, ao todo, cruzou um grupo de pessoas invisuais com quatro propostas tecnológicas de quatro start-ups. Além da Lumen, participaram a start-up espanhola OnRails com o seu WhiteJacket, a também espanhola 3Finery com a aplicação LisNav, e ainda a finlandesa Omni Audio. Estas quatro jovens empresas participaram num programa de aceleração focado na acessibilidade universal, o Better Mobility Acelerator, promovido pela EIT Urban Mobility na capital portuguesa.
Apesar de procurarem resolver um único problema – a navegação pedonal de cegos e pessoas com baixa visão –, estas start-ups apresentam soluções tecnológicas completamente distintas: a utilização de inteligência artificial para reconhecimento de objectos (LisNav), a comunicação da presença de objectos por meio de sons (Omni Audio), a utilização de estímulos através de um casaco sensorial (WhiteJackect) e uma solução que replica as orientações de um cão-guia (Lumen). Tomás experimentou as quatro ideias, mas foi a da Lumen aquela que mais o convenceu. “Permitiu-me deixar a bengala de lado. Não precisei de a usar, andei livremente e com as mãos livres. Em termos de funcionalidades, achei excelente.” Mas aponta algumas melhorias ao equipamento. “Aquilo que lhes disse é que quanto menos aparatoso for, quanto mais discreto for, melhor é para nós.”
O produto da Lumen consiste nuns óculos que ajudam uma pessoa cega a perceber o ambiente em que se encontra. O dispositivo conta com cinco câmaras que lêem o ambiente pelo utilizador, analisando eventuais obstáculos; e, à medida que a pessoa vai caminhando, o aparelho transmite uma pequena vibração para indicar se o trajecto está livre ou se tem algum bloqueio, seja algum obstáculo vertical como um poste ou um parquímetro, seja uma qualquer interferência ao nível do solo como um degrau ou um buraco.
Tomás Delfim é jornalista na Mensagem de Lisboa, jornal local também dedicado à capital portuguesa, e é lá que conta na primeira pessoa, numa crónica, a sua experiência. Ao Lisboa Para Pessoas (LPP) – que também o acompanhou o teste do produto –, avançou um breve testemunho. “A vibração que recebo dos óculos tem de estar sempre na parte frontal da cabeça. Então, se eu vou a andar e sinto uma vibração do lado esquerdo, por exemplo, é porque tenho de virar para essa direcção. E virando fico novamente com a vibração na frente. Isso significa que estou bem, que estou a salvo, que não vou contra nada.”
No teste feito na rua, várias pessoas da Lumen foram-se movendo à volta de Tomás para testar o comportamento; também colocaram uma trotineta no meio do caminho mas os óculos sempre indicaram com sucesso o trajecto. “Os óculos também detectam degraus, como aqueles pequenos degraus do passeio. Achei espectacular. Mas é como disse, quanto mais pequeno forem, melhor”, conta. “O peso dos óculos não me incomodou. Mas lá está, estive 10 minutos com aquilo. Se calhar, estando uma hora poderia tornar-se algo incomodativo.” (Os óculos têm, neste momento, uma autonomia de hora e meia de uso.) Tomás destaca também o facto de os óculos terem poucos botões e um tutorial na primeira utilização que ajuda o utilizador a adaptar-se ao equipamento e aos estímulos que vai receber.
A Lumen ainda tem trabalho a fazer. Os óculos que mostraram e testaram em Lisboa são um protótipo que ainda terá de ser afinado antes da comercialização do produto. Por exemplo, os óculos não são capazes de reconhecer atravessamentos pedonais desenhados com duas riscas – como existem tantos em Lisboa – em vez da convencional zebra; não reconhecendo, dão sinais vibratórios no sentido de não deixarem Tomás atravessar a estrada. A Lumen foi fundada em 2020 por Cornel Amariei, que nasceu e crescer numa família onde era a única pessoa sem deficiência – um contexto que o fez despertar para o problema e para como a tecnologia poderia dar respostas. “Partimos de um problema simples: pelo mundo, existem 40 milhões de cegos, mas existem apenas 28 mil cães-guia. Porquê? Porque o cão-guia pode custar até 60 mil dólares e cuidar de um cão-guia é muita responsabilidade para uma pessoa cega só. O que fizemos foi replicar as principais características de um cão-guia sem as desvantagens que tornam o cão-guia uma solução não escalável.”
Os óculos da Lumen vão ser capazes de reconhecer a voz do utilizador e o que os comandos que este lhe dá. “Um cego pode pedir ao cão-guia para o levar até à porta de saída ou, se souberem o caminho, mesmo até casa. O cão puxa a mão da pessoa para a conduzir na direcção certa, evitando obstáculos e mantendo-a segura. Aos óculos da Lumen, podem ser pedidos exactamente os mesmos comandos e estes guiarão a pessoa; mas em vez de o fazerem puxando a mão, dão-lhes os sinais através cabeça. É como se estivessem a puxar a cabeça na direcção que o cego deve seguir. Já testámos com mais de 200 pessoas Invisuais”, explica o responsável da start-up romena. “Usar os óculos da Lumen é como ter um auricular no ouvido”, aponta. “Na verdade, esta é a tecnologia assistiva mais avançada do mundo. É uma tecnologia de condução autónoma reduzida a algo que podemos usar na cabeça.”
O desenvolvimento da Lumen está a ser apoiado com 9,7 milhões de euros do Conselho Europeu de Inovação; por isso também, foi o produto mais avançado que esteve em teste em Lisboa. Ringo foi outro dos testadores e ficou convencido. Mas a ideia do WhiteJacket, da espanhola OnRails, também o satisfez. É que se a proposta da Lumen é boa para o exterior, onde existem obstáculos de diferentes alturas, a do WhiteJacket enquadra-se mais num contexto de interior, onde existem pessoas, paredes e outras coisas ao nível do tronco. No fundo, a proposta consiste num casaco branco com vários sensores no interior, capazes de dar um feedback vibratório ao utilizador quando este estiver próximo de algo. “No exterior, eu não usaria, porque sou cego total e só adverte de coisas na altura do tronco. Tu no exterior tens coisas que estão ao nível do tronco mas também no chão. Então, tocas com a bengala e desvias-te. No interior, é diferente”, conta. “Numa loja, por exemplo, as pessoas estão mais concentradas e não se desviam muito. Em vez de chocares contra a pessoa com a bengala, vais saber logo que ela está lá e desvias-te naturalmente. No exterior, as pessoas normalmente deviam-se”, descreve. “Mas no interior é muito útil e ajuda-me a desviar de obstáculos e das pessoas sem chocar. Posso usar com a bengala e posso andar mais rápido.”
No geral, diz, “a experiência foi muito boa e espero que consigam desenvolver isto”. O protótipo do WhiteJacket que a OnRails esteve a mostrar em Lisboa ainda precisa de ser aprimorado. Por exemplo, o peso é algo que precisa de ser reduzido para tornar a experiência de vestir e de uso mais fácil e confortável. Também a mochila de apoio que hoje tem, e onde está toda a capacidade de processamento e de bateria do dispositivo, precisa de ser retirada. Mas tanto Ringo como Tomás gostaram da experiência, e acreditam que poderiam ser equipamentos que os ajudariam a ultrapassar os obstáculos ao nível da mobilidade que hoje em dia encontram em cidades como Lisboa. Para Ringo, “Lisboa é uma cidade acessível. Podia ser melhor, mas também podia ser pior.” Conhece Madrid, Paris e Bruxelas, e para si nada bate a capital espanhola. “Paris e Bruxelas estão mais ou menos ao mesmo nível. Madrid é o sonho. Tem sinais sonoros em todo o lado, não tem a calçada, o pavimento muda quando tens uma escada à tua frente, tens guias que te vão levar às passadeiras em todo o lado. É muito melhor.” Tomás também sonha com uma cidade mais acessibilidade. “Há sítios em que não há a melhor acessibilidade, tanto e nível de chão, de desníveis, de coisas encostadas a paredes, como caixas de electricidade e postes que te obrigam a ir quase na estrada, carros e trotinetas nos passeios…” E alguns desses sítios são zonas de Lisboa que não pode evitar – “preciso de ir a esses sítios”. Tomás desloca-se quotidianamente entre os concelhos de Lisboa e de Vila Franca de Xira de comboio. “Em transportes públicos, é relativamente tranquilo. Por mais que não conheça uma estação, normalmente há sempre alguém para ajudar.”
As pessoas cegas e amblíopes envolvidas nesta acção de produtos e protótipos puderam experimentar as diferentes soluções, com o objectivo de as start-ups retirarem lições para o desenvolvimento dos seus produtos. Por outro lado, esta experimentação permitiu a técnicos do Plano de Acessibilidade Pedonal da autarquia compreender melhor o futuro das tecnologias de suporte à acessibilidade de pessoas de mobilidade condicionada, designadamente como estas se poderão relacionar com o planeamento da infraestrutura pedonal na cidade.
Como afirma o Vereador Ângelo Pereira, que tem junto a si a responsabilidade da Acessibilidade Pedonal, “esta acção insere-se no novo impulso que estamos a dar ao Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa, o qual prevê a necessidade de contínua inovação e atualização das boas práticas para uma experiência pedonal mais inclusiva e de maior qualidade para todos os cidadãos, sem excepção”. E acrescenta: “O resultado mais visível do que tem este Plano já nos permitiu fazer, está na contínua renovação das passagens de peões acessíveis que continuamos a executar por toda a cidade. No entanto, o caminho para a construção de uma Lisboa acessível ainda é longo e trabalha-se em todos os pormenores.”