Arroios acolhe “peddy-paper” que procura humanizar a rotina dos estafetas

Diários de Uma Bicicleta é uma peça de teatro na forma de “peddy-paper” que vai explorar a dura realidade dos estafetas de entrega de comida. O público será convidado a seguir instruções através de uma aplicação e, ao longo do percurso, vai cruzar-se com histórias baseadas em testemunhos reais, interpretadas por actores. As inscrições abrem no início de Setembro.

Estafetas Uber em Arroios (fotografia LPP)

Vemo-los pela cidade, de um lado para o outro. Uns de bicicleta, outros de mota. Mas todos de mochila às costas. Vemo-los e, ao mesmo tempo, eles passam-nos despercebidos. Não interagimos com eles nem eles connosco, a não ser no momento de uma entrega. Aí, sim, há pelo menos uma troca de um “bom dia/tarde/noite” e de um “obrigado”, mas rapidamente a porta é-lhes fechada nas costas. E eles regressam para a sua rotina de invisibilidade, para responder a um outro pedido e fazer uma outra entrega. Estes estafetas que diariamente circulam por urbes como Lisboa são, todavia, pessoas como nós, com os seus problemas e dificuldades. E, ao contrário de muitos de nós, têm um trabalho que obriga a trabalhar muitas horas para ganhar muito pouco. Um trabalho que é mediado por empresas de tecnologia que não se importam e por algoritmos que desumanizam as relações.

Diários de Uma Bicicleta é o título de um peddy-paper que será também uma peça de teatro e que procurará humanizar a rotina dos estafetas de entrega de comida. Vai decorrer em Arroios no próximo dia 14 de Setembro, integrado no Festival Todos. “Este espectáculo foi uma sugestão da produção do festival, com quem já trabalho há três anos. Este é o quarto ano do Todos. Nos últimos três anos trabalhamos sempre em Santa Clara, e neste ano estamos aqui em Arroios”, explica Joana Brito Silva, directora artística da peça. Através de testemunhos reais, interpretados por actores, propõe-se ao público que embarque, ao longo de uma hora, numa viagem de reflexão sobre os vínculos laborais nesta profissão contemporânea e sobre as migrações humanas.

Póster de Diários de Uma Bicicleta (DR)

Este tema é relevante na actualidade de bairros como Arroios, especialmente devido ao elevado número de estafetas em situações precárias que, não só circulam por esta freguesia, como residem nela. “Aquilo que fizemos primeiro foram entrevistas a várias estafetas, de diferentes nacionalidades, com diferentes ligações laborais às plataformas, diferentes rendimentos, diferentes estilos de vida…”, detalha Joana, referindo que essas entrevistas foram, porém, difíceis de realizar, tanto pela dificuldade de acesso aos estafetas e pela barreira linguística, como pelo medo destas pessoas em falar. “A ideia com que nós ficamos – não nos disseram isso directamente – é que há muitas pessoas que estão em situação ilegal ou equiparável, que têm medo ou que trabalham com patrões de quem, se calhar, também têm medo.”

As histórias recolhidas nestas entrevistas foram depois ficcionadas através de textos do argumentista Sandro William Junqueira, e vão ser interpretados por actores profissionais – Eduardo Molina, Gabriel Delfino Marques e Rute Rocha Ferreira. “Desde o início, que se decidiu que seriam sempre actores profissionais a interpretar estes textos e que não íamos colocar em exposição estas pessoas que já estão numa situação tão frágil”, explica a directora artística. “As histórias que vão ouvir na peça são todas baseadas em factos reais, mas vão ter algumas enfabulações.”

Sandro explica que o ponto de partida para o texto acabou por ser a última entrevista que fizeram. “É uma pessoa muito específica, com uma história de vida bastante atribulada”, diz. “Eu não faço planos. Tenho ponto de partida, e depois a escrita vai fazendo o seu próprio trabalho, uma frase atrás de frase.” Uma preocupação, no entanto, foi ter uma mulher na história, “embora não tenhamos entrevistado nenhuma mulher”.

Joana Brito Silva (fotografia LPP)

A peça de teatro vai ser apresentada no formato de um peddy-paper e os participantes serão convidados a percorrer diferentes pontos do bairro de Arroios seguindo instruções dadas por uma aplicação móvel, que simulará a experiência de um estafeta. “Como era sobre estafetas, surgiu logo desde o início esta ideia de tentar incluir os telemóveis ou as aplicações de alguma maneira, e foi-se tornando mais claro que seria dando aos participantes estas missões ou etapas, um bocadinho para recriar aquilo que estas pessoas passam”, explica Sandro.

Durante o percurso, que será feito em grupo, os participantes vão cruzar-se com os actores e com os respectivos textos. O início do peddy-paper será no Mercado de Arroios e vão existir duas sessões, uma às 15 horas e outra às 17h30; as inscrições abrem no próximo dia 2 e são limitadas, podendo ser feitas através deste site.

Embora o peddy-paper tenha um lado mais lúdico, com o peddy-paper e o recurso a uma app, os textos que os actores vão interpretar prometem remeter os participantes imediatamente para a dura realidade dos estafetas, numa perspectiva de conscientização social. “Estas pessoas estão no fundo da cadeia alimentar, são exploradas até ao tutano e a entidade patronal é quase uma abstração, porque é, no fundo, uma aplicação, nem sequer existe edifício, escritório, uma cara”, refere Sandro. “Esta gente está completamente sem defesa perante tudo. Não tem vida, não têm tempos livres para ir passear. Só vivem para trabalhar e para enviar dinheiro para casa. E depois, há esse contexto todo com a questão da imigração e de como é que os portugueses tratam os imigrantes.”

Sandro e Joana quiseram abordar todas estas questões “de forma artística, sem ser panfletária”. “Não vai ser um espectáculo documental que consiga trazer uma estatística sobre o que se passa em Arroios ou em Lisboa, porque não temos uma amostra grande suficiente para podermos afirmar isso”, sublinha a directora artística.

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