20 anos de OUT.FEST no Barreiro, a cidade que nunca quis ser periferia

O OUT.FEST completa 20 anos no Barreiro – são duas décadas a contrariar a centralidade cultural de Lisboa. De 2 a 6 de Outubro, o festival volta com uma programação de música nova para descobrir, sem preconceitos, em diversos espaços da cidade. A celebração destes 20 anos inclui um dia extra de festival, uma exposição fotográfica e um livro comemorativo.

OUT.FEST em 2023 (fotografia cortesia de Vera Marmelo/OUT.FEST)

Há 20 anos que o Barreiro vem contrariando a centralidade cultural de Lisboa e criando um nome no panorama da música mais underground e alternativa. Pela 20ª vez, o festival OUT.FEST está de regresso ao Barreiro, prometendo activar uma série de espaços e colectividades que tornam esta cidade numa das mais vibrantes cultural e socialmente da área metropolitana de Lisboa, e apresenta um cartaz cheio de artistas que provavelmente vais gostar de conhecer e adicionar ao Spotify.

De 2 a 6 de Outubro, o OUT.FEST promete uma vez mais transformar o Barreiro e colocar novas pessoas a circular pela cidade. Para essa missão, vão ser activados uma série de espaços culturais da cidade. Um deles é a SCR Paivense, uma sociedade recreativa como tantas outras e que às 10 da manhã de um dia de semana tem velhotes a beber bagaços e a fumar cigarros, e velhotas a entrar para uma aula de ginástica. “Vamos ter o festival aqui pela primeira vez”, diz Rui Dâmaso, co-fundador e programador do OUT.FEST, aos jornalistas. É no SCR Paivense que começa a primeira visita de imprensa organizada pelo festival em 20 anos. “Não costumamos fazer conferências de imprensa, mas são os 20 anos e temos várias coisas para apresentar“, acrescenta. O SCR Paivense vai, no dia 6, transformar-se e receber as últimas actuações do festival, aproveitando para misturar um pouco o OUT.FEST, e os jovens à procura de música nova, com a vida quotidiana do Barreiro. “Queríamos ter uma celebração mais popular e perto de um Barreiro que acontece fora do OUT.FEST.”

Ao longo de duas décadas, o OUT.FEST foi saltitando entre espaços no Barreiro. Alguns desses espaços fecharam e desapareceram, outros apareceram, outros reinventaram-se. Para a organização, a relação entre os espaços e os artistas tem de fazer sentido, e, por isso, também há palcos que numa edição não existem e noutra reaparecerem. Um exemplo são as oficinas da CP no Barreiro, um barracão gigante do tamanho de dois campos e meio de futebol e prestes a cumprirem 140 anos de actividade de manutenção ininterrupta. Já ali foram feitos concertos no OUT.FEST, como lembra Vera Marmelo, barreirense de nascença que fotografava o festival quase desde a primeira edição. “Eram aqui mesmo” e a aponta para uma área mais desimpedida da oficina onde se vêem peças e maquinaria por todo o lado. “Afastavam as coisas ali para os lados”, diz, recordando que o festival foi uma oportunidade de entrar nestas oficinas. Vera conta, aos jornalistas, que começou a fotografar não só o OUT.FEST como outros concertos no Barreiro quando começou a sair à noite; a câmara era a sua companhia e uma desculpa “para ter alguma coisa para fazer e fazer amigos”.

As oficinas da CP no Barreiro (fotografia LPP)

Foi com as fotografias que começou a conhecer outras pessoas do Barreiro e, à medida que fotografava mais e mais concertos, o hobby foi tornando-se mais sério e é hoje a sua profissão. “Ganhei uma vontade de documentar o que se passava aqui para mostrar aos outros que passava coisas no Barreiro”, recorda. Quanto ao OUT.FEST, Vera não se lembra se foi em 2004 – “não tenho fotografias” – mas foi em 2005 e começou a fotografar o festival “de forma mais consistente” no ano seguinte. Olhando para trás, tem um arquivo de muitos terabytes de fotos que cedeu agora, na íntegra, à organização do OUT.FEST. Algumas dos melhores registos foram publicados numa exposição, que vai estar patente no Largo do Mercado 1º de Maio até dia 13 de Outubro. Em diferentes painéis, Vera evidencia a relação entre os espaços e os músicos, mas também com o público. “Tenho zero interesse em só fotografar bandas. A música vai passando por cá, mas as experiências interessam-me muito mais”, explica.

Vera Marmelo (fotografia LPP)
A exposição de Vera está patente no Largo do Mercado 1º de Maio (fotografia LPP)

Para a jovem fotógrafa, que actualmente já fotografa cultura por todo o país, o OUT.FEST continua a ser “um dos festivais de que mais gosto de fotografar por esta possibilidade de entrar em espaços da minha cidade onde não entraria ou que passo a ver de outra forma”. “O OUT.FEST tem concertos em sítios onde o comum barreirense não costuma ir. Há espaços que até estão abertos ao público mas onde tu não entras”, acrescenta. Não é propriamente o caso da ADAO – Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios, uma das salas underground mais conhecidas do Barreiro. Foi, noutros tempos, um quartel de bombeiros da cooperação Sul e Sueste, que trabalhava ajudava a CP a resolver os incêndios provocados pelas locomotivas a vapor. Hoje, os bombeiros Sul e Sueste têm outras funções e outro quartel e o antigo edifício foi cedido e transformado na ADAO.

No piso térreo, há duas salas para concertos, sendo desenvolvida uma programação regular dependendo da disponibilidade financeira e de tempo das pessoas, pois todas têm o seu emprego. No piso de cima, há ateliês e residências para artistas; e, no exterior, há mais umas oficinas de trabalho, como é o caso da do Sr. António, que ali desenvolve os mais variados trabalhos em madeira.

“A ADAO tem sido o ponto habitual do OUT.FEST nos últimos anos. É um espaço onde conseguimos programar musicas muito diferentes entre si. Desde 2015, desde que existe ADAO que vimos para cá”, explica Rui. “Chegámos a fazer aqui 18 concertos numa noite.” Vão ser bem menos desta vez. Durante a tarde, a programação do OUT.FEST vai ter lugar quase sempre n“Os Penicheiros”, também uma sociedade recreativa e um espaço já histórico do festival, e só depois de jantar é que ruma para a ADAO. O festival vai também passar pela Sala 6, pela Biblioteca Municipal do Barreiro e por duas igrejas, a de Santa Cruz e a de Nossa Senhora do Rosário, com músicas mais contemplativas. Contas feitas, nestes 20 anos, foram cerca de 80 os espaços do OUT.FEST, lembra Rui.

A programação espalha-se, este ano, por mais um dia, apesar de Rui reconhecer que “do ponto de vista da programação, não tivemos nenhuma atenção especial por ser a 20ª edição”. O regresso da quinta-feira com música vai acontecer como uma experiência. “Vai ser a primeira vez que fazemos concertos numa quinta-feira à tarde que não é feriado”, aponta Rui em relação a 2023, quando a quinta à tarde foi introduzida mas era feriado. Geralmente, o OUT.FEST não coloca o público a escolher excepto num dia. “2018 foi o ano em que introduzimos o sábado à tarde no OUT.FEST com várias salas que obrigam as pessoas a escolher. É importante para nós ter as pessoas a escolher para que circulem pela cidade.”

O OUT.FEST vai manter a mudança que fez entre esse ano e 2019, quando se abriu um pouco mais e começou a introduzir artistas mais abrangentes no cartaz, tendo conseguido, desde então, chegar a mais pessoas sem perder aquela essência dos primeiros anos. “A mudança do festival tornou-o mais abrangente e trouxe pessoas com interesse muito mais diverso da música”, lembra Vera, que conta que ao longo dos anos o seu ouvido foi ficando mais desperto para as sonoridades trazidas pelo festival.

O alinhamento musical, que está inteiramente disponível no site, mostra que este não é um festival para aquele público que gosta de música confortável e que tem um ouvido que estremece à mínima experiência sonorora. O OUT.FEST é para descobrir novas sonoridades e conhecer músicos que estão a suscitar curiosidade pelas salas dessa Europa fora. Alguns nomes do alinhamento são presenças já habituais do festival, outros são estreias nacionais – como Nídia & Valentina, Dreamcrusher, H31R e Mariam Rezaei – e outros são artistas que, antes ou depois do Barreiro, vão atravessar o Tejo e fazer furor em Lisboa. O cartaz conta, ao todo, com cerca de 30 artistas.

Rui Dâmaso na apresentação do OUT.FEST aos jornalistas (fotografia LPP)

Entre as estreias absolutas em Portugal, está o novo projecto que une Nídia à percussionista Valentina Magaletti, e cujo álbum de estreia chega este mês de setembro; a dupla norte-americana H31R, da gira-disquista britânica Mariam Rezaei; o duo japonês KAKUHAN, projecto de Koshiro Hino (goat jp); o trio France (apropriadamente nomeado); ou o ruído queer e catártico de Dreamcrusher. No contingente nacional, destaque para o regresso ao Barreiro do celebrado saxofonista Rodrigo Amado com a sua nova formação Unity (juntamente com Gabriel Ferrandini, Rodrigo Pinheiro e Hernâni Faustino), do trio Inês + Arianna + Violeta (Inês Malheiro, Arianna Caselas e Violeta Azevedo), e das estreias de Tomé Silva e de Zancudo Berraco. A matiné prolongada no SCR Paivense contará com os Ghosted (de Oren Ambarchi, Johan Berthling e Andreas Werliin), ojoosòn du maquís e Chuquimamani-Condori, que se juntam DJ Anderson do Paraíso e carolf para uma celebração destas duas décadas de festival.

No meio da programação, há espaço para uma conversa entre a investigadora Margarida Mendes e o músico DeForrest Brown Jr., autor de Assembling a Black Counter Culture, um livro que explora como a música electrónica negra foi apropriada de diferentes maneiras. “Já tivemos mais actividades paralelas, e começámos a ter menos. A nossa prioridade nos últimos anos tem sido a musica ao vivo, mas, sempre que conseguimos, vamos ter momentos que não sejam apenas música”, explica Rui.

O OUT.FEST em 2023 (fotografia cortesia de Vera Marmelo/OUT.FEST)

A 20ª edição do OUT.FEST chega com um livro comemorativo das primeiras décadas, que junta texto, fotografias, ilustração e reflexão em várias páginas. “Gostamos muito de livros e há muito tempo que era uma das coisas que queríamos fazer quando chegássemos aos 20 anos”, diz Rui. “Deparámos-nos com o desafio de como traduzir 20 edições num livro e acabámos por optar por construi-lo como um concerto de música improvisada, abdicando da cronologia e de um fio condutor mais evidente, agrupando imagens que tínhamos do arquivo e convidando algumas pessoas, sobretudo artistas, a escrever algumas palavras.” Para José Mendes, que fez o design do livro, que vai estar à venda no festival, este trabalho foi mais uma oportunidade que o festival lhe deu de experimentar e de se divertir. “O OUT.FEST sempre me permitiu explorar várias coisas como designer, que depois podia usar com clientes meus. Acabei por me divertir bastante. Esta parte da diversão e experimentação é muito importante no processo criativo. A diversão também faz parte do trabalho”, diz, referindo-se ao livro como o resultado de uma “jam” entre várias pessoas. “Retirei toda a hifenização e justifiquei o texto, e isso dificulta a leitura, mas cria um tempo de leitura com a pessoa. E esse tempo é uma relação importante. Nem tudo tem de ser rápido de ler”, comenta o designer do Barreiro.

Nos 20 anos do OUT.FEST, o Barreiro volta a afirmar-se como um centro e não como uma periferia, na Margem Sul, e a celebrar todos os espaços e colectividades que marcam esta cidade. Por dia, o festival está dimensionado para cerca de 800 pessoas, “no máximo, mil”. Os passes gerais, ao preço de 50 euros, já estão esgotados, mas há bilhetes diários, com valores que vão dos 10 aos 25 euros; podem ser comprados através da BOL e presencialmente dos balcões da FNAC, Worten e CTT.

Chegar ao Barreiro a partir do centro de Lisboa, e regressar, demora apenas 20 min de barco a partir da estação do Terreiro do Paço. Os barcos trabalham todos os dias entre as 5h05 e a 1h30 da manhã. Todas as salas da edição de 2024 vão estar no máximo a 20 minutos a pé da estação fluvial, mas, se quiseres, podes usar os autocarros da TCB gratuitamente com o bilhete ou pulseira do OUT.FEST, a partir de três horas antes do início dos concertos em cada dia. Nas noites de sexta e sábado, o OUT.FEST vai disponibilizar um serviço de autocarro para regressar a Lisboa, com partida junto à sala de espectáculos dessa noite por volta das 2h45 (bilhete custa 3 euros e é necessária reserva prévia para [email protected] porque a lotação é limitada).

O OUT.FEST é produzido pela associação OUT.RA e co-programado pela associação Filho Único, com o apoio da Direcção-Geral das Artes (DGArtes) e da Câmara Municipal do Barreiro.

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