A morte, pela polรญcia, de um cidadรฃo cabo-verdiano levantou uma onda de revolta e focos de destruiรงรฃo nos bairros da รกrea metropolitana de Lisboa. O caso reacendeu a discussรฃo sobre a actuaรงรฃo policial e do Estado nos territรณrios marginalizados. No sรกbado, milhares desfilaram pela Avenida da Liberdade, pedindo justiรงa para Odair Moniz e uma “vida justa”.

A morte de Odair Moniz, um cidadรฃo cabo-verdiano de 43 anos, na Cova da Moura, agitou o circuito mediรกtico durante a รบltima semana. Cozinheiro num restaurante em Lisboa e pai de trรชs filhos, Odair foi atingido naquele bairro da Amadora por duas balas, disparadas por um dos dois agentes da PSP presentes. Os disparos โ fatais para o cidadรฃo, que segundo o relato oficial morreu depois de chegar ao Hospital Sรฃo Francisco de Xavier โ aconteceram na noite de domingo para segunda-feira. Odair regressava a casa e nรฃo terรก respeitado uma ordem de paragem numa operaรงรฃo STOP, o que resultou numa perseguiรงรฃo pela PSP โ uma histรณria ainda envolta em pormenores contraditรณrios, a comeรงar pela versรฃo da polรญcia, que comeรงou por referir que o falecido estava num carro roubado (veio a saber-se que o carro era do prรณprio) e que tinha atacado os agentes com uma faca (afinal, nรฃo atacou).
Este caso, e a trรกgica morte de um cidadรฃo por um motivo aparentemente fรบtil, reacendeu a discussรฃo sobre violรชncia policial e a sua incidรชncia sobre comunidades marginalizadas. O que gerou um sentimento de revolta, que comeรงou no no bairro do Zambujal, onde Odair residia, e tambรฉm na Cova da Moura, onde tem amigos e conhecidos. Esse sentimento de revolta โ que, ร superfรญcie, podemos compreender neste artigo do Pรบblico โ acabou, depois, por se traduzir numa semana de distรบrbios por vรกrios bairros da รกrea metropolitana de Lisboa. Ao todo, quatro autocarros, um da Carris e trรชs da Carris Metropolitana, foram incendiados, tendo havido registo tambรฉm de apedrejamentos a outros autocarros, de caixotes do lixo e ecopontos incendiados, e de carros danificados. Em Loures, um motorista acabou hospitalizado em โestado muito graveโ com โqueimaduras graves na face, tรณrax e membros superioresโ, segundo informou a PSP; mas a situaรงรฃo clรญnica acabou por evoluir positivamente e o homem de 41 anos acabou por ficar fora de perigo de vida.

Desacatos ร noite, normalidade de dia
Apesar das mรบltiplas ocorrรชncias nocturnas, o dia-a-dia foi-se mantendo relativamente normal pela regiรฃo de Lisboa. Motoristas com quem fomos falando relataram nรฃo terem medo de estar ร frente dos autocarros, apesar de sentirem um clima mediaticamente mais tenso e de, por isso, circularem mais alerta que o habitual. Estรฃo, pelo que nos contam, habituados a sons de petardos e a pequenos desacatos em bairros; dizem que sรฃo comuns apedrejamentos a autocarros, e que hรก que conhecer bem as zonas onde รฉ preciso ir com um olho mais aberto a partir de certa hora. Ao LPP, fonte da Transportes Metropolitanos de Lisboa (TML), empresa que gere a Carris Metropolitana, diz que se reuniu, no final da semana passada, com os sindicatos representativos dos motoristas e que houve um consenso em relaรงรฃo ร manutenรงรฃo do serviรงo normal de autocarros, apesar dos incidentes registados. Operadores tambรฉm concordaram com a manutenรงรฃo do transporte pรบblico.
No entanto, a PSP terรก pedido o desvio temporรกrio de algumas linhas de autocarro do interior de alguns bairros e outros desvios foram feitos obrigatoria e temporariamente devido ao corte de estradas. No bairro do Zambujal, por exemplo, as linhas 1001, 1503, 1504, 1704, 1713 e 1718 da Carris Metropolitana, cujos percursos atravessam o meio do bairro, estรฃo a rodeรก-lo desde a passada terรงa-feira, dia 23 โ alteraรงรตes de serviรงo que estรฃo a ser entendidas como informais, uma vez que nรฃo estรฃo comunicadas no site da operadora. Actualmente, sรณ a Carris โmunicipalโ passa no Zambujal; a sua carreira 754, ainda assim, conta com um ligeiro desvio de percurso, passando numa rua paralela ร quela onde o autocarro ardeu. No site da Carris, รฉ possรญvel ler-se que, desde dia 23, โas carreiras 714 [que passa na Portela de Carnaxide] e 754 estรฃo a registar desvios pontuais em alguns troรงos do trajecto, decorrentes de alteraรงรตes de circulaรงรฃo temporรกrias, em algumas viasโ, sem mais detalhes.

Nรฃo se sabe quando e se estas carreiras de transporte pรบblico vรฃo voltar ร normalidade. Fonte da TML indica ao LPP tambรฉm que, da parte da Carris Metropolitana, existem alteraรงรตes noutros bairros da Amadora e de Oeiras, sobretudo, mas garante ao mesmo tempo que รฉ preciso nรฃo deixar de servir esses territรณrios, pois a populaรงรฃo continua a precisar dos autocarros.
“Pรขnico”, “terror”, “a ferro e fogo”
Durante uma semana, os bairros da รกrea metropolitana de Lisboa estiveram nos noticiรกrios, com a banalizaรงรฃo de expressรตes como โmomentos de pรขnicoโ, โterror no bairroโ ou โLisboa a ferro e fogoโ, num rodopio de directos que acabaram por exaustar as pessoas. Quem estivesse a acompanhar a situaรงรฃo pela comunicaรงรฃo social, de outra parte do paรญs ou do mundo, poderia ficar com a ideia de que Lisboa estaria virada do avesso, com incidentes por todo o lado. Mas a รกrea metropolitana de Lisboa รฉ bastante vasta. Sรฃo trรชs milhรตes de pessoas a viver nesta regiรฃo, e ocorrem muitas dinรขmicas em simultรขneo. Nรฃo sรณ os desacatos decorreram em apenas alguns bairros municipais โ que alguns apelidam de “bairros problemรกticos”, outros de “bairros sociais” e as forรงas de seguranรงa de “Zonas Urbanas Sensรญveis (ZUS)” โ, como foram muito circunscritos no tempo e hiperlocalizados.
ร medida que os protestos se espalharam do Zambujal para outros bairros da รกrea metropolitana de Lisboa, evoluรญram de uma reaรงรฃo directa ร morte de Odair para uma manifestaรงรฃo mais ampla contra a marginalizaรงรฃo a que esses territรณrios estรฃo sujeitos. Tornaram-se uma expressรฃo de descontentamento contra a polรญcia, vista nesses bairros como violenta, ร boleia de uma rara atenรงรฃo mediรกtica que essas comunidades, geralmente negligenciadas, raramente recebem. Na televisรฃo e nos demais รณrgรฃos de comunicaรงรฃo social, multiplicaram-se os comentรกrios e anรกlises ao tema. Gerou-se muito ruรญdo, mas tambรฉm houve vรกrias conversas interessantes e que importa realรงar. Antรณnio Brito Guterres, investigador e alguรฉm que โcidade invisรญvel que mora nos bairros das periferias de Lisboaโ, como รฉ apresentado no podcast A Beleza das Pequenas Coisas, do Expresso, foi um dos protagonistas. โA entrada violenta da polรญcia em algumas zonas รฉ uma humilhaรงรฃo completa daquela comunidade. A polรญcia faz isto, depois nega, mesmo com filmagens e testemunhas. Isso nรฃo tem qualquer efeito positivo, sรณ aumenta a raivaโ, disse no referido podcast. โA militarizaรงรฃo do territรณrio faz com que os moradores sejam abordados como se fossem criminosos em potencial. A abordagem policial nestes locais รฉ sempre muito agressivaโ, apontou, deixando tambรฉm uma outra questรฃo importante: โPorque รฉ que em territรณrios onde as taxas de criminalidade sรฃo atรฉ mais baixas se permite a actuaรงรฃo policial tรฃo violenta? ร sempre nos mesmos bairros. A classificaรงรฃo de zonas urbanas sensรญveis, ou ZUS, รฉ feita com base em critรฉrios sociais e atรฉ รฉtnicos, e acaba por legitimar a militarizaรงรฃo.โ

A resposta da parte dos polรญticos ร morte de Odair e ร consequente onda de protesto teve vรกrias falhas. Quando, no momento dos desacatos na Portela de Carnaxide, Isaltino Morais visitou o local, comentou com os jornalistas que os moradores daquele bairro era “pessoas pacatas, trabalhadores” e falou em “grupos provocadoras, marginais, que pretendem provocar distรบrbios”, sensibilizando a comunicaรงรฃo social para nรฃo criar alarmismos desnecessรกrios. Num outro momento televisivo, o Presidente da Cรขmara de Oeiras contextualizou que o problema central รฉ nรฃo ter havido polรญticas de habitaรงรฃo “nos รบltimos 20 anos”. “Como nรฃo houve construรงรฃo de novas casas [municipais], famรญlias que eram de quatro ou cinco pessoas, agora sรฃo de oito ou nove”, com jovens a viver com os pais. “ร preciso haver desdobramentos” com a construรงรฃo de novas casas, disse.
Apesar de Oeiras nรฃo ter sido o principal epicentro dos acontecimentos desta semana, Isaltino Morais, Presidente da Cรขmara daquele concelho, foi o autarca que mais se destacou na comunicaรงรฃo social na รบltima semana, tendo, inclusive, estado presente, neste domingo, no velรณrio de Odair. Jรก Carlos Moedas, que disse recentemente querer ser Presidente da รrea Metropolitana de Lisboa e que lidera a capital do paรญs, onde a maioria das pessoas das periferias trabalha, tem-se remetido ao silรชncio, tendo as suas รบnicas declaraรงรตes sido sobre criar mais esquadras. Tambรฉm calado esteve Vรญtor Ferreira, Presidente da Cรขmara da Amadora, o concelho onde fica nรฃo sรณ o bairro do Zambujal como o da Cova da Moura. Jรก Ricardo Leรฃo, lรญder da autarquia de Loures, desmultiplicou-se pelos canais de televisรฃo.
Da periferia para o centro, por Odair e por uma โvida justaโ
Tumultos em bairros da รกrea metropolitana de Lisboa nรฃo sรฃo inรฉditos. Contudo, desta vez, ganharam uma dimensรฃo mais abrangente na regiรฃo. Todavia, a mediatizaรงรฃo dos desacatos levou-nos a esquecer como tudo comeรงou: com Odair e com a sua morte numa actuaรงรฃo aparentemente excessiva por parte da polรญcia. Clรกudio Gonรงalves, modelo e โmorador do Bairro do Zambujal hรก uma dรฉcadaโ, como o prรณprio se descreve num artigo que assina no Expresso, fala sobre isso nesse texto: โFosse por dor e mรกgoa, para libertar a frustraรงรฃo de uma sociedade oprimida, por solidariedade ou porque queriam fazer parte do acontecimento, vรกrios jovens fizeram o que acharam necessรกrio para mostrar o seu desagrado face ao acontecimento trรกgico. Nรฃo concordo com atos de vandalismo, mas tambรฉm nรฃo concordo com a violรชncia policial e o abuso de poder que sofremos nos bairros sociais. Triste รฉ dizer que os meios de comunicaรงรฃo vieram atรฉ nรณs e tivemos lugar de fala porque caixotes foram incendiados, e nรฃo porque um amigo faleceu.โ
Neste รบltimo sรกbado, uma manifestaรงรฃo convocada pelo movimento Vida Justa lembrou-nos do que despoletou toda esta revolta dos bairros. Foi bem no centro de Lisboa, num percurso entre o Marquรชs de Pombal e os Restauradores, que milhares de pessoas se juntaram, nรฃo sรณ pelo โirmรฃoโ Odair Moniz, mas essencialmente por uma โvida justaโ. Juntos e em voz alta, os manifestantes pediram justiรงa, bem o fim da violรชncia policial nos bairros e da discriminaรงรฃo do Estado. A manifestaรงรฃo ficou marcado por um tom unรญssono de crรญtica pela marginalizaรงรฃo a que as periferias sรฃo sujeitas. โEstamos a falar de uma revolta. Nรฃo estamos a falar de distรบrbios, nem de vandalismo. Estamos a falar de homens e mulheres que se organizaram perante mais uma situaรงรฃo de negaรงรฃo de liberdades democrรกticas, num bairro da Amadora. Uma situaรงรฃo que, na verdade, รฉ comum a vรกrios bairrosโ, afirmou-nos Youssef, um dos participantes e organizadores do protesto.
O activista fala numa violรชncia estrutural do Estado e num racismo das instituiรงรตes do Estado nos bairros, referindo que a manifestaรงรฃo รฉ um acto de resistรชncia e de luta de quem vive nas margens sociais da capital. โEstamos aqui para denunciar, exigir e tambรฉm para lanรงar um apelo: denunciar a violรชncia policial, que รฉ a violรชncia dos Estados, e denunciar o racismo das instituiรงรตes, denunciar o racismo do Estado no seu normal funcionamentoโ, disse-nos.
A manifestaรงรฃo deste sรกbado atraiu moradores de diversos bairros perifรฉricos, que reclamam outro espaรงo na cidade, e nรฃo sรณ a presenรงa enquanto trabalhadores. โNรณs nรฃo vimos sรณ ร cidade em manifestaรงรฃo. Vimos todos os dias, todos os dias, vรกrias pessoas, a partir das quatro da manhรฃ, saem das suas casas da periferia e atravessam a Linha de Sintra, Oeiras, Loures, e vรชm atรฉ ao centro abrir o quรช? Os aeroportos, os centros comerciais, permitir que os autocarros funcionem, que os escritรณrios estejam limpasโ, refere Vรขnia Andrade, porta-voz do movimento Vida Justa. โAs esquadras sรฃo limpas pelas nossas mรฃos.โ
Ao longo da Avenida da Liberdade, levantaram-se punhos, cartazes e gritos a favor de justiรงa por Odair e โpor todos os outros nomes que tรชm vindo a cair por terra e a ser esquecidosโ. โNรฃo por nรณs, mas pelo prรณprio Estadoโ, lamentou Vรขnia. A manifestaรงรฃo terminou nos Restauradores, onde um memorial ao cabo-verdiano de 43 anos foi erguido e algumas palavras proferidas pelos organizadores do protesto. Ao todo, terรฃo descido a Avenida milhares de pessoas. โMais do que nรบmero para nรณs โ que nรณs jรก sabรญamos que รญamos ter grande aderรชncia โ, sabemos porque estamos aqui. Sabemos que, infelizmente, a manifestaรงรฃo pode nรฃo trazer um resultado imediato, mas mostra a nossa resistรชncia. Mostra que estamos aqui e que nรณs sabemos o motivo pelo qual fechamos a Avenida da Liberdade. Estamos a dizer que queremos justiรงa, nรฃo sรณ pelo Odair, mas por todas as outras pessoasโ, acrescentou a porta-voz da Vida Justa.
Para Youssef, รฉ fundamental expor como o discurso de alguns partidos polรญticos tenta dividir a classe trabalhadora, contrapondo-a a grupos racializados e minoritรกrios. โO discurso do Chega รฉ um discurso de divisรฃo. Querem dividir a classe trabalhadora portuguesa com base na pertenรงa รฉtnico-racial, querem dividir trabalhadores nacionais contra trabalhadores imigrantes, querem dividir, inclusive, homens contra mulheres, trabalhadores brancos contra trabalhadores nรฃo brancos. Mas essa รฉ uma polarizaรงรฃo artificialโ, destacou, referindo que a verdadeira divisรฃo que existe รฉ โentre a classe trabalhadora aqui em Portugal, que gera a sua riqueza, e aqueles que nos exploram e fazem com o suporte do Estadoโ.
Alรฉm disso, Youssef apontou a necessidade de uma alianรงa mais forte entre os sindicatos e as organizaรงรตes que representam as periferias e os trabalhadores racializados. โEsta manifestaรงรฃo รฉ tambรฉm uma forma de lanรงar um apelo ร classe trabalhadora portuguesa branca, aos sindicatos, aos partidos na Assembleia que dizem representar os trabalhadores aqui em Portugal, porque quem foi morto, quem foi assassinado, foi um trabalhador negro.โ
A manifestaรงรฃo da Vida Justa encheu a Avenida da Liberdade e os Restauradores. Simultaneamente, uma contra-manifestaรงรฃo organizada pelo Chega, em apoio ร polรญcia, reuniu apenas algumas centenas de pessoas e terminou na escadaria do Parlamento. O funeral de Odair Moniz decorreu no dia seguinte, este domingo, enquanto jรก estรฃo abertos dois inquรฉritos โ um da Inspecรงรฃo-Geral da Administraรงรฃo Interna (IGAI) e outro da prรณpria PSP para apuramento dos factos.