Todos os anos, a Rua do Vale de Santo António é protagonista da prova de ciclismo mais popular de Lisboa, onde os participantes, de atletas a meros curiosos, dão tudo para subir aquela íngreme rua. Mais que uma competição, a “Subida da Rampa” é uma festa que junta vizinhos, comerciantes e, principalmente, famílias inteiras e muitas crianças.
Aproxima-se das 10 horas e, lá em baixo, na Rua do Vale de Santo António os primeiros corajosos preparam-se para subir a “rampa”. Mas, cá em cima, no rés-do-chão do número 152, Cláudia e Tiago fazem os últimos preparativos na janela que decidiram decorar com verde, com muito verde. “Tudo sem plástico. As plantas vieram ali de um baldio e o lençol era um velho que tínhamos para ali”, contam. “Não sei se vamos ganhar a varanda mais bonita, mas a mais sustentável é provável”, brincam. Ao longo daquela rua, na freguesia de São Vicente, há mais varandas decoradas, ao gosto de cada um. Em muitas delas são ostentadas, em grandes faixas, frases como “viva o desporto popular” ou ou “tudo isto é bairro”.
Estamos a 20 de Outubro. Um domingo que arrancou com nevoeiro, mas que depressa viu o sol furar a neblina e a aquecer a manhã. Ainda bem, porque era dia de subir a “rampa”. Ou seja, um domingo que já se tornou diferente para quem vive na Rua do Vale de Santo António e arredores.
Foi em 2021 que duas colectividades locais, o Mirantense Futebol Clube e a Associação Desportiva e Recreativa “O Relâmpago”, decidiram recuperar uma prova de desporto popular conhecida como “Rampa do Vale de Santo António”. Esta não é uma competição só para desportistas, mas para todos aqueles que se sintam astutos o suficiente para subir, ao pedal, a inclinada Rua do Vale de Santo António, uma rua que liga os Sapadores a Santa Apolónia e que tem no meio uma subida capaz de desafiar mesmo as canelas mais resistentes.
Mais de uma centena de pessoas inscreveu-se na prova. Alguns são atletas e sabem perfeitamente no que se vão meter, outros são amadores repetentes e também sabem o que vai custar, mas muitos são meros curiosos e que vão pela festa. Uma festa que é popular no melhor dos sentidos. O comércio local, como os cafés, restaurantes e mercearias, estão activos para avisar todas as águas, cervejas e bifanas que o público pede. Adelina é vizinha da proprietária da churrasqueira A Costa, e foi chamada para vir ajudar neste dia de maior afluência. O estabelecimento costuma estar fechado ao domingo, mas naquele abre para dar resposta aos sedentos e esfomeados. “Como estão aqui as bicicletas abrimos que sempre vendemos e fazemos mais um bocado”, diz. “Todos os anos, isto dá vida à rua.”
Há música a sair de algumas varandas, mas também de carrinhas estacionadas no meio da rua. É lá que colectivos da zona, como o Serigaita, que trouxe uma carrinha para “meter música” a meio da rua. “Aqui que é onde o pessoal mais está a morrer e assim damos algum apoio”, dizem-nos.
Ricardo diz que é a primeira vez que vem e que “no ano passado ficou aguado e este ano quis vir”, aponta. “Já subi duas vezes para treinar”, refere. O objectivo não é ganhar a prova. “Quero acabar, o objectivo é esse.” Gonçalo, por seu lado, “adora fazer subidas” quando pedala nas suas deslocações quotidianas pela cidade e, por isso, não podia perder a Rampa. “Se for dar uma volta, um passeio de lazer, escolho um percurso que tenha subidas muito longas”, aponta. Quanto à Rampa, diz que “o truque é gerir esta primeira parte e guardar um bocadinho um pouco para a parte final”.
Mário veio do Porto de propósito para a Rampa, também com o objectivo de estabelecer amizades entre colectivos ligados à bicicleta das duas cidades. É a primeira vez nesta prova. “O túnel de pessoas é mesmo grande motivador. Estás a fraquejas mas as pessoas estão aqui a dar ânimo”, observa. Uma dessas pessoas é Alexandre. Vive perto e decidiu passar por ali. “Vim sozinho mas aqui encontro sempre amigos”, aponta. “Para o ano venho fazer a prova”, promete. “O que me dizem é que é ‘buéda’ duro, tens a gravidade a jogar contra ti.”
O público que se junta na parte mais inclinada da rua tem a função de apoiar, gritando e puxando pelos atletas. Mas também dá uma mãozinha para subirem, se for preciso. Bianca teve de ter essa ajuda, sem qualquer vergonha. “Foi a primeira vez que vim. Decidiu participar porque uns amigos diziam-me que era muito fixe”, disse. Veio na bicicleta que usa “todos os dias” para ir para o trabalho. “Houve ali um momento que achava que não ia conseguir”, mas conseguiu. E para o ano quer voltar.
Há quem suba de eléctrica. Pode parecer mais fácil, porque há um motor a dar assistência eléctrica, mas também quem argumente que, por serem bicicletas mais pesadas, haja a sua dificuldade.
Para quem vive na rua, é mesmo um dia diferente. Pedro, 4 anos, estava encantado a subir rua acima e a descer rua abaixo com uma bandeira de Portugal para dar apoio aos ciclistas. “Moramos mesmo aqui. É um dia diferente que junta pessoal aqui do bairro”, diz-nos a mãe, Ana. “É um domingo diferente. Basta olhar que está tudo alegre”, completa. “É uma cena muito fixe, é uma cena que se pode vir sem estar preparado”, atira o pai Pedro. “Subia na boa”, diz, mas só “para o ano”.
“Para o ano”, dizem todos aqueles a quem se lhe pergunta porque não se inscreveram na prova.
Uma rua inclinada que desportistas e meros corajosos arriscam a subir de bicicleta. Bancas e cafés a vender cervejas, bifanas e tudo o que o cliente pedir. Varandas e portas que se abrem para a rua, enfeitadas. Todos os ingredientes para uma festa que não tem a ver com bicicletas, para uma festa à antiga de que os bairros de Lisboa, muitas vezes gentrificados, tanto precisam.
À quarta edição, o número de adeptos da prova tem aumentado, como também toda a dinâmica popular que se monta em torno dela. São mais varandas enfeitadas, mais comerciantes envolvidos, e também mais comunicação social. A Rampa parece ter vindo para ficar.
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