Assim foi a primeira Assembleia Popular dos Bairros

A Assembleia Popular dos Bairros, organizada pelo movimento Vida Justa, reuniu cerca de 300 pessoas de várias periferias da área metropolitana de Lisboa para discutir problemas como a habitação, a violência policial, a imigração e os transportes. No encontro, foi aprovado um plano de acção para os próximos meses, que inclui uma “Grande Marcha” pelos bairros, um torneio de futebol ou uma rádio comunitária.

A primeira Assembleia Popular dos Bairros juntou três centenas de pessoas (fotografia LPP)

Criar um programa “de baixo para cima” que una a “força de todos os bairros” é o grande objectivo do movimento Vida Justa, que organizou, no último domingo, 24 de Novembro, a primeira grande Assembleia Popular dos Bairros. Com o convite lançado às periferias área metropolitana de Lisboa, o encontro juntou três centenas de pessoas, se reuniram para tratar temas transversais como a habitação, a violência policial, salários, subida de preços, serviços públicos, imigração e transportes. Ao longo daquele domingo, foram discutidos problemas e soluções.

A Assembleia Popular dos Bairros durou um dia inteiro e teve lugar no Centro Cultural de Carnide, no Bairro Padre Cruz, em Lisboa. A sessão arrancou com uma apresentação da ordem de trabalhos e com intervenções iniciais de alguns participantes, tendo a manhã sido dedicada sobretudo à discussão de problemas e soluções em seis grupos temáticos de trabalho: “Habitação”, “Violência Policial”, “Salários, Preços e Serviços Públicos”, “Imigração”, “Transportes” e “Poder Popular nos Bairros”. Cada inscrito na Assembleia pôde inscrever-se num grupo, consoante os seus interesses e motivações. Houve temas que reuniram mais pessoas que outros.

Da parte da tarde, depois de um almoço de cachupa, oferecido pela Vida Justa, os seis grupos partilharam as principais conclusões a toda a Assembleia. A tarde – que, ao contrário da manhã, decorreu sem a presença de jornalistas – foi ainda dedicada à tomada da palavra pelos participantes, bem como à discussão e aprovação de um plano de acção, desenvolvido ao longo do dia pela “comissão de redacção” e que irá orientar a actividade da Vida Justa nos próximos meses. A Assembleia Popular dos Bairros terminou pelas 18 horas com um momento cultural.

Início dos trabalhos da Assembleia (fotografia LPP)

Incluir a periferia na cidadania

A Assembleia Popular dos Bairros juntou pessoas de bairros de Loures, Amadora, Sintra, Setúbal, Seixal, Almada e também de bairros da capital. Participaram também pessoas de Tomar e Abrantes, tendo sido a primeira vez que a Vida Justa chegou fora da área metropolitana.

“Queremos criar estratégias que deem mais força às classes populares e trabalhadores que vivem nos nossos bairros”, indica o movimento numa nota. “É preciso identificar os problemas, apontar soluções e ver quais as formas a adoptar para conseguir resolver as situações existentes. Este processo não pára na Assembleia Popular dos Bairros e tem como objectivo permanente dar mais força às pessoas e trabalhadores que vivem nos bairros e nas periferias. Todas as nossas formas de luta têm como objectivo trazer para o centro da discussão política as questões das periferias que fora relegadas para fora da cidadania.”

Os diferentes grupos de trabalho (fotografia LPP)

A organização da primeira Assembleia Popular dos Bairros, agora consumada, resultou de um trabalho de vários meses da parte da Vida Justa. “Não começámos agora”, nota Flávio Almada, porta-voz do movimento. “Há um acúmulo de experiências anteriores e que vem de outros movimentos. Esse acúmulo permitiu termos hoje pessoas de vários bairros, que podem dar cartazes e falar com pessoal na rua.”

Apesar de ter começado no bairro da Cova da Moura, em 2020, a Vida Justa tem vindo a chegar, passo a passo, a mais periferias da área metropolitana de Lisboa, tornando-se um movimento de reivindicação, de cidadania e de capacitação desses territórios, que tantas vezes são postos à margem. Como coloca Flávio Almada, a Vida Justa “não é um movimento sobre os bairros, e é um movimento dos bairros”. “Toda a gente mora num bairro” e num bairro social – “não sei que bairro é que está fora da sociedade”, destaca.

Discursões abertas, num espaço confortável

À chegada ao encontro, os participantes receberam um documento impresso de cinco páginas, onde se listavam algumas das principais preocupações já identificadas pela Vida Justa em reuniões anteriores realizadas em diferentes bairros. Entre os temas abordados no documento estavam a crise habitacional, agravada pelos baixos salários e o elevado custo de vida, com problemas como rendas incomportáveis, casas municipais sem condições, situações sobrelotação e os despejos realizados em bairros auto-construídos; as dificuldades no transporte público, com horários e percursos desajustados às necessidades, nomeadamente de madrugada e aos fins-de-semana; e a definição das Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), criadas, dizem, com base em critérios racistas e criminalizadores da pobreza.

A Assembleia Popular dos Bairros contou com cerca de 300 pessoas (fotografia LPP)

Também é referida a problemática da violência policial e das mortes a ela associadas, a dificuldade de pais e mães em conciliar trabalho e cuidados com os filhos devido ao desajuste de horários entre empregos e creches, a falta de acesso à saúde nas periferias, ou a ausência de equipamentos culturais, desportivos e sociais em alguns bairros.

Todas estas questões foram aprofundadas nos vários grupos de trabalho durante o encontro. No grupo dedicado ao “Poder Popular nos Bairros”, um dos mais participados da Assembleia, abordaram-se formas de os bairros poderem estar mais presentes na vida autárquica, e uma delas passa por as suas pessoas ocuparem “lugares cimeiros das listas” e estarem em lugares de decisão. Falou-se de um “distanciamento entre as instituições e as populações em relação a projectos que são implementados sem conhecimento das pessoas”, ou da importância de “desconstruir as visões” de que participar não leva a nada (“até a mãe que vai limpar o chão é importante quando vai votar”). Ou ainda que é importante falar dos bairros não só quando há crimes mas também quando há sonhos – e, nesse sentido, está a ser criado pela Vida Justa um “jornal dos bairros” com a formação de “jornalistas nos bairros”, que possam relatar “o que se passa nos bairros”, “sem intermediários”, e também uma rádio dedicada às periferias, anunciou um responsável do movimento.

Grupo de trabalho sobre “Poder Popular nos Bairros” (fotografia LPP)

Haver informação a circular sobre as periferias e sobre questões que dizem respeito às pessoas dessas margens foi tema noutros grupos de trabalho. Por exemplo, na “Imigração”, falou-se em haver difusão de informação sobre direitos laborais e todas as questões de legalização de imigrantes, ou mesmo de existir um núcleo de formação dentro do movimento Vida Justa, que capacite as pessoas para a resolução dos problemas que enfrentam. Ficou saliente, ainda neste debate, que os problemas que os imigrantes “sul asiáticos” hoje enfrentam são os mesmos pelos quais, noutros tempos, “os CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa]” passaram. Abordou-se o “saldo psicológico” dos imigrantes, isto é, a sua saúde mental, quando são confrontados com inúmeras dificuldades no país de chegada e quando, mesmo quando totalmente legalizados, são vítimas de racismo, preconceitos e xenofobias, a também a “categorização de imigrante”“a gente acredita no discurso [da extrema-direita] e auto-categoriza-se entre nós”.

Neste grupo, onde participaram pessoas negras ou de nacionalidade brasileira, entre outras, falou-se na necessidade de unir trabalhadores, “imigrantes e portugueses”, ou na ideia de promover uma greve de “trabalhadores racializados e imigrantes”, para mostrar a importância e dimensão destas pessoas em vários sectores essenciais. Questionou-se, até, se a Vida Justa poderia ter actividade sindical para ajudar a defender os direitos de quem vive nas periferias e trabalha nos centros. “Tem de ter direitos quem não é rico e não tem privilégio”, ouviu-se a meio desta discussão sobre imigração.

Grupo de trabalho sobre “Imigração” (fotografia LPP)

Cada grupo de trabalho contou com um “animador” – uma pessoa directamente ligada à Vida Justa e que procurava dinamizar as conversas, introduzindo, por exemplo, tópicos que já tinham sido discutidos noutros encontros e que estavam descritos no documento inicial da Assembleia. Desta forma, foi possível encontrar algum foco no encontro, sem colocar barreiras intransponíveis. À vez, cada participante levantava-se para partilhar testemunhos, histórias, ideias, desabafos, sentimentos…, beneficiando de um espaço de conforto e abertura, entre pares. Nos grupos, havia ainda alguém a tentar resumir, em folhas A3, as conversas, descrevendo principalmente soluções para os problemas e questões levantados.

Os seis grupos de trabalho ocuparam espaços diferentes do Centro Cultural de Carnide, por exemplo, o do “Poder Popular nos Bairros” e o da “Imigração” partilharam o auditório principal com a discussão sobre “Violência Policial” – mantendo alguns metros de distância para não sobrepor diálogos. Mas, inevitavelmente, questões levantadas num lado eram semelhantes a outras discutidas noutro.

No grupo sobre “Violência Polícia”, foram partilhados testemunhos, muitos deles duros, na primeira pessoa – a jornalista Fernanda Câncio fez o trabalho de resumir algumas dessas histórias aqui. Falou-se aqui da importância de defender o fim das Zonas Urbanas Sensíveis, uma nomenclatura da PSP de 2006 para designar o que antes se referia como “bairros problemáticos” ou “de risco”. Foi unânime que se trata de uma categorização discriminatória e baseada em critérios subjectivos. Por outro lado, referiu-se que o “abuso da polícia não é só fisico mas administrativo, com autos mentirosos”, e como é difícil em bairros sem voz mediática contestar as informações que a polícia passa aos órgãos de comunicação social. Também neste grupo a questão do empoderamento das periferias ao nível da informação foi importante, não só por esta questão de contraria outras narrativas com mais força, mas também porque, dizem, existe um “racismo institucionalizado na polícia” e “uma cadeia de cumplicidade que permite que a policia assassine”, que vai além desta instituição e que abrange não só a tutela, como a referida comunicação social. A título de exemplo desse enraizamento do racismo, falou-se das diferenças de tratamento pela mesma polícia de situações idênticas: a diversão nocturna na Cova da Moura é tratada de forma diferente em relação à mesma festa com álcool e música no Bairro Alto.

Grupo de trabalho sobre “Transportes” (fotografia LPP)

Os “Transportes” e os “Salários, Preços e Serviços Públicos” foram as temáticas que acabaram por atrair menos pessoas – talvez porque todas as outras problemáticas tinham, em comparação, uma urgência maior. Nos transportes, falou-se da questão dos atrasos e como estes impactam as pessoas que deles dependem e que não têm justificação para apresentar no trabalho, de como a mobilidade pode ocupar duas ou até quatro horas das vidas das pessoas pela ausência de horários, percursos ou de articulação entre operadores, e de como é importante ter dados com questionários e testemunhos – à semelhança do que a Vida Justa fez no Cacém – para ganhar argumentos. Nos salários, identificou-se que os sindicatos “não representam os trabalhadores racionalizados e imigrantes” e que a solução poderá passar por reunir primeiro com os sindicatos existentes e, depois, por uma eventual nova sindicalização.

Grupo de trabalho sobre “Habitação” (fotografia LPP)

Já o grupo de trabalho da “Habitação” centrou-se em matérias recorrentes, como os despejos e legalização de casas em bairros auto-construídos, ou os edifícios em mau estado e as dificuldades no relacionamento com as autarquias para a resolução destas situações. No grupo destacaram-se histórias de moradores do Bairro Padre Cruz, onde se realizou esta Assembleia, e do Bairro 1º de Maio, em Monte Abraão. Histórias duras, envolvendo algumas situações de violência doméstica, que silenciavam qualquer sala sempre que eram contadas.

Uma Assembleia diversa e jovem

A primeira Assembleia Popular dos Bairros reuniu pessoas de várias idades, promovendo o encontro entre quem enfrenta dificuldades semelhantes e ajudando a perceber que esses problemas não são casos isolados, mas sim questões estruturais. Para a Vida Justa, este encontro permitiu identificar e validar os desafios comuns em diferentes territórios, principalmente dentro da área metropolitana de Lisboa. “Os temas desta Assembleia são dos bairros e afectam 90% da sociedade portuguesa“, realça Flávio Almada. “O nosso programa, aquilo que nós defendemos, é que haja habitação para toda a gente, que haja emprego e segurança nesse emprego, bons transportes, o fim das Zonas Urbanas Sensíveis… São coisas que afectam as nossas comunidades, mas que são também transversais a todos”, assegura o porta-voz do movimento.

Participante toma algumas notas (fotografia LPP)

Foi em número significativo a participação de jovens nesta primeira Assembleia Popular dos Bairros. Adolescentes e jovens adultos estiveram presentes nos grupos de trabalho e nas restantes actividades. Houve, inclusive, uma sala dedicada a actividades para crianças. “Diz-se que a juventude não se interessa na política. É preciso entender que esse silêncio de juventude é uma manifestação política”, entende Flávio. “A ideia de que os jovens não se interessam por política é um mito. Devíamos refletir sobre o que estamos a fazer de errado para ter causado esse afastamento.”

O trabalho da Vida Justa parece ter sido bem feito. “Quando existe um espaço democrático, os jovens participam, como vimos hoje. Isso mostra que, se houver algo relevante, a juventude vai aderir”, diz o porta-voz, acrescentando que quer “que mais jovens participem, façam propostas, tomem a palavra e se organizem conosco para lutar por melhorias na vida das pessoas”.

Entre os muitos participantes, encontrámos Ivan, um jovem negro de 27 anos, estudante de sociologia. “Sou activista e participar nestas coisas faz parte da muda vida. E é importante, tendo em conta o que se está a viver hoje em dia nas estruturas institucionais e sociais”, refere. Foi no grupo de trabalho dedicado à imigração que mais o ouvimos, um tema que escolheu por sentir que é “o departamento mais importante” e que “engloba todos os assuntos”.

Sala praticamente cheia no arranque dos trabalhos (fotografia LPP)

Já Joaquim, de 16 anos, diz que vem de um “meio muito privilegiado”, mas, desde pequeno, pelo contexto parental, tem contacto com outras realidades menos favorecidas. “Faço voluntariado no Bairro Horizonte”, na Penha de França. É membro do clube desportivo Relâmpago e foi através daqui que chegou ao Vida Justa. “Eu já me interessava muito por política. O Relâmpago é claramente não só um clube desportivo, como um clube associativo que envolve a política”, destaca. Encontrámos Joaquim no grupo da habitação, a ouvir muitas situações difíceis e pelas quais nunca teve de passar. “Não posso olhar para o lado e fingir que não é comigo. Pessoas que vivem a saltar de sítio em sítio, sem um porto seguro… Não posso deixar passar, porque pode acontecer comigo, mesmo vindo de um meio privilegiado.” O sonho do jovem é claro: “Quero ajudar os outros para que dia possamos todos nos inter-ajudar e conseguirmos viver bem.

Os próximos passos

Numa nota divulgada no final do encontro, o movimento Vida Justa referiu que “cerca de 300 pessoas de dezenas de bairros de todo o país, trabalharam em plenário e em grupos de trabalho, sobre os problemas, soluções e formas de luta” e que esta primeira Assembleia foi um primeiro “instrumento de construção do poder popular e a organização dos bairros” – um trabalho que continuará a ser feito com a organização da “Grande Marcha dos Bairros”, isto é, “um processo de trabalho bairro a bairro que terminará numa nova Assembleia” e que terá o objectivo de “aprofundar a capacidade de juntar as pessoas dos territórios populares para conseguirem conquistar uma vida melhor.

Está prometida uma nova Assembleia para 2025 (fotografia LPP)

A Grande Marcha dos Bairros irá decorrer “durante o mês de Março”, percorrendo “os territórios populares da área metropolitana de Lisboa com manifestações e acções políticas”, pode ler-se na mesma nota. A realização desta Grande Marcha é uma das medidas que saiu do plano de acção, aprovado ao final da tarde. Esse plano inclui também outras prioridades, a saber: “uma campanha de acabar com as Zonas Urbanas Sensíveis”, um “campeonato de futebol dos bairros para reivindicar espaços de desporto”, a “criação de uma rádio, de um jornal e de uma mixtape dos bairros”, a luta “por creches e espaços verdes nos bairros”, e ainda um foco no “direito a habitação e contra os despejos”. “E faremos uma festa, porque faz parte da nossa luta”, pode ler-se no mesmo comunicado.

Algumas destas ideias já tinham sido partilhadas no início do encontro, que serviu basicamente para solidificar e validar algumas delas, a partir das discussões que foram sido tidas e orientadas ao longo do dia, e para encontrar novos caminhos de acção. Por exemplo, sobre a criação de um torneio de futebol, este tem como objectivo “unir os jovens e acabar com as desavenças que não lhes permitem ver quem são os verdadeiros inimigos”, ajudando com esses encontros que os jovens percebam que “sofrem, em parte, os mesmos problemas”, pode ler-se no documento distribuído aos participantes no início dos trabalhos. A próxima Assembleia Popular dos Bairros, a decorrer no ano que vem, terá data ainda a definir.

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