Uma escola de jovens actores, um restaurante assegurado por pessoas em situação de vulnerabilidade, um café onde a associação de moradores serve diárias a cinco euros, e um ginásio com mensalidades acessíveis. No Bairro Padre Cruz, em Carnide, um edifício tornou-se palco de iniciativas que impulsionam o desenvolvimento local e respondem às necessidades da comunidade.

“Aqui pode almoçar por 5,50 euros. Em que mais sítios de Lisboa se pode almoçar por 5,50 euros?”, diz-nos Maria José Domingos. A diária inclui sopa, prato e uma peça de fruta, e é confeccionada pela Associação de Moradores do Bairro Padre Cruz com legumes frescos, colhidos na horta que existe no topo do edifício. Estamos no Centro de Recursos de Carnide, em pleno Bairro Padre Cruz.
Este centro de recursos, à semelhança de outro que existe nas Olaias, no bairro da Curraleira, é gerido pela Rede DLBC Lisboa, uma espécie de aglomeração de associações locais com o objectivo de estabelecer sinergias entre elas e de melhor captar as oportunidades de financiamento, seja nacional, seja europeu. “Temos uma equipa que procura linhas de financiamento e fazem candidaturas. Quando ganhamos, esse dinheiro é distribuído de forma directa ou indirecta pelos nossos associados. Algumas vezes vai para uma associação directamente, outras vezes é distribuído”, explica Maria José, directora executiva da Rede DLCB Lisboa. Tudo depende da candidatura feita: umas vezes é para um projecto específico que um associado queria desenvolver; outras vezes para uma iniciativa que pode ter diferentes intervenientes.
Neste momento, na Rede DLBC Lisboa estão 217 associados – a grande maioria são associações e cooperativas da cidade, mas nesse bolo estão também entidades como a Câmara de Lisboa, a Fundação Calouste Gulbenkian ou a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Os associados são de toda a cidade. “Temos a preocupação de que toda a cidade tenha acesso ao financiamento. Por isso, dividimos a cidade em quatro áreas, para que o dinheiro pudesse chegar de forma equilibrada a toda a cidade, evitando que uma zona fosse privilegiada por ter mais recursos humanos ou associações”, descreve a responsável. “Por outro lado, a rede dá apoio técnico às organizações para que a falta deste conhecimento também não seja um factor de exclusão.”

De 2015 até Carnide
A Rede DLBC Lisboa foi criada em 2015 como resposta a uma linha de financiamento europeu que exigia a constituição de um organismo intermédio para gerir as candidaturas. “Ou o Município de Lisboa concorria sozinho, ou as organizações se organizavam e criavam uma associação que funcionasse como organização intermediária”, explica Maria José.
Assim, nasceu a Rede com cerca de 100 associados iniciais e uma equipa técnica que começou a trabalhar em 2018, permitindo a abertura de concursos a projectos de três anos, com financiamentos que variam entre 100 e 250 mil euros. Um dos exemplos concretizados é o restaurante da associação Crescer. Mas já lá vamos.
Todo esse trabalho de intermediar financiamento, sobretudo europeu, e de o distribuir pelo tecido social da cidade é, de certo modo, invisível. A parte visível da Rede DLBC Lisboa está nos chamados “Centros de Recursos”, uma espécie de hubs de empreendedorismo sociais, só que virados para o desenvolvimento local e não para a tecnologia – como acontece no Beato, por exemplo. No Bairro Padre Cruz, esse Centro de Recursos está localizado no mesmo edifício branco onde funciona o Centro Cultural de Carnide e a Biblioteca Municipal Natália Correia. À entrada, pode ler-se em letras bem grandes “DLBC Lisboa” e, em baixo, “Centro de Recursos”, mesmo ao lado do logo da Câmara de Lisboa. Logo à entrada, há uma placa a dar conta da inauguração ocorrida em 2020 por Fernando Medina, então Presidente da autarquia.

Quem não conheça o espaço, entra a meio, perguntando-se se é suposto estar ali, que sítio é aquele, se é de acesso público… As respostas foram obtidas à medida que perdemos a vergonha e subimos as escadas.
É no piso superior, num grande átrio, que encontramos o tal café da Associação de Moradores. Tem bolos e pastelaria habitual, além do almoço diário a custar 5,50 euros. Os preços, explica-nos Paula, a funcionária do estabelecimento, são mais acessíveis que nos cafés habituais. “Este café foi criado para servir a população com preços mais baixos que os outros cafés”, conta. Qualquer pessoa pode comer aqui, seja um lanche, seja uma refeição mais completa ao almoço. “São 5,50, com prato, sopa e uma peça de fruta”, diz Paula. Durante o dia, dá para ficar aqui a trabalhar remotamente, aproveitando o wi-fi gratuito, bem como as mesas ou os sofás do espaço.
“Também temos uma cantina solidária, lá em baixo, onde servimos população em dificuldades.” Essa cantina, também da Associação, é dirigida a moradores do bairro que não tenham como fazer comida, pela velhice, pelo isolamento, pela pensão baixa ou por um acumular destes factores. “Inscrevem-se e vêm aqui buscar a comida, que é servida numa caixa. É três euros com prato, sopa e sobremesa para sócios da associação e 3,50 para os restantes”, refere.

Uma horta, um restaurante e um ginásio
No Centro de Recursos do bairro Padre Cruz existem sete a oito associações presentes. Uma delas, ocupando várias salas no piso intermédio, é a Act4all, uma escola de actores que foi forçada a sair do LXFactory e que todos os dias trás para o bairro jovens para aprender representação (e também, claro, consumir no café da Associação de Moradores). Na entrada do edifício, está a Ciclopes, uma oficina de reparação de bicicletas que também empresta bicicletas a quem precisar, além de desenvolver projectos de duas rodas no bairro e fora deste. Na cave, há um ginásio da associação Futebol de Rua, com várias máquinas disponíveis e mensalidades mais acessíveis que as dos ginásios habituais.
No piso superior, funciona o restaurante da Crescer, uma associação ligada aos sem abrigo e que trabalha naquele espaço com a inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho. “Aprendem aqui e depois podem sair para ir trabalhar na restauração.” A abertura contínua deste restaurante ao público provou não ser rentável por não haver massa crítica interessada no bairro, pelo que o espaço funciona ou por marcação de grandes grupos, ou para fazer comida para eventos (catering).

As refeições são feitas, como no caso da cantina da Associação de Moradores, com produtos da horta comunitária, que encontramos no terraço do edifício. Couves, batata doce, beterraba, xuxus, morangos, aromáticas como alecrim ou lúcia Lima, piri piri, nabiça, salsa e coentros, beringela… Aqui há de tudo um pouco. A horta é cuidada no dia-a-dia por uma pessoa do bairro e também por um funcionário da Câmara de Lisboa; e, além de servir para a confecção de refeições, os legumes e fruta também podem ser distribuídos pela população, caso haja excedente. Também são feitas actividades com escolas na horta, em que “as crianças vão apanhar os alimentos e cozinhar aqui pizzas”, conta Maria José. “Nos projectos que candidatamos aos fundos, tentamos que fique sempre algo. Foi o caso desta horta. O espaço ficou e continuou a ser utilizado.”
DLBC é sigla para Desenvolvimento Local de Base Comunitária, uma abordagem que junta moradores, organizações locais, empresas, profissionais e a administração pública para trabalhar em conjunto, criando emprego e promovendo o empreendedorismo, com base nas necessidades das comunidades. Para a Rede DLBC Lisboa, esse trabalho ganha forma através destes Centros de Recursos nos bairros. “Fala-se muito em criar hubs de empreendedorismo, como o do Beato. O que propomos aqui é um hub social e de recursos, um ecossistema para dinamizar o bairro”, refere José Almeida, actual presidente da Rede DLBC Lisboa. “O resultado em Carnide tem sido muito positivo. O bairro ganhou com esta iniciativa. Por exemplo, temos aqui uma escola de teatro que, provavelmente, não teria vindo para cá de outra forma. São mais de cem jovens num bairro periférico, ajudando a desconstruir muitos preconceitos associados a estes territórios.“

Um hub em cada bairro
Na visão da Rede DLBC Lisboa, existiriam hubs ou centros de recursos em cada bairro de Lisboa, o que, segundo José, poderia contribuir para o aproveitamento de edifícios devolutos ou abaixo do seu potencial. “Há inúmeros equipamentos que estão desaproveitados e que precisam do envolvimento de associações como a nossa para serem bem geridos e dinamizados”, diz, explicando que, no seu entender, a autarquia não tem capacidade para fazê-lo – por isso, é que também no caso da Unicorn Factory Lisboa (antigo Hub Criativo do Beato) delega essa gestão na Associação para a Inovação e Empreendedorismo de Lisboa (AIEL), mais conhecida como “Startup Lisboa”, e do qual é sócia.
É a Rede DLBC Lisboa que cuida hoje do edifício no bairro Padre Cruz, ao abrigo de um protocolo estabelecido em 2020 com a Câmara de Lisboa. “Este edifício estava devoluto e era um problema enorme para a Câmara”, diz Maria José Domingos, explicando que o imóvel tinha sido cedido pela autarquia à Santa Casa da Misericórdia para o estabelecimento de uma creche e centro de dia, que entretanto passaram para outro lado. Com a saída da Santa Casa, “o edifício ficou abandonado e fechado durante muito tempo”, com excepção do espaço da biblioteca e do auditório do Centro Cultural de Carnide. “Em 2020, surgiu a ideia de criar espaços que pudessem funcionar como centro de recursos para a comunidade”, conta, acrescentando que, com o protocolo entre a Rede e a autarquia, foi transferida uma verba de 175 mil euros. “Uma parte dessa verba foi destinada a recuperação desse espaço. Não imagina como é que isto estava! Era só ratos e lixo…”

O edifício foi, então, recuperado pela Rede DLBC Lisboa, que fez várias obras entre esse ano e 2021. Foram construídas duas cozinhas profissionais, totalmente equipadas – uma para o restaurante e outra para a Associação de Moradores –, recuperadas salas e casas-de-banho, construído o espaço de ginásio com balneários, etc. Desde então, a Rede tem assumido os custos de manutenção corrente, beneficiando de uma maior agilidade que a autarquia na compra do que é necessário. “A Câmara poderia fazer a gestão e manutenção do espaço. Mas nós temos outra forma de estar. Conseguimos simplificar determinados processos. Conseguimos uma gestão menos hierárquica e burocrática que os serviços da Câmara”, afirma Maria José, referindo que isso é importante na hora de resolver um problema eléctrico que deixou toda a gente sem luz ou de repor o stock de papel higiénico. “As associações passam a estimar mais este equipamento do que se fosse a Câmara a gerir”, acredita, por seu lado, José. “É um espaço que sentem como sendo de todos, e todos acabam por cuidar dele.”
A Rede e a Câmara, uma relação complicada
Segundo os dois responsáveis, a autarquia reconhece valor na existência de hubs de recursos nos bairros, que agreguem projectos e acrescentem valor às comunidades da vizinhança. Mas não quer que a Rede DLBC Lisboa seja a única a gerir esses espaços. Neste momento, a Rede tem, além do centro em Carnide, o das Olaias, não estando este “contratualizado” no protocolo original. Na verdade, a ocupação do espaço das Olaias aconteceu na altura em que o Executivo nos comandos da autarquia mudou e ficou por assinar uma adenda ao protocolo original.
O tema também deixou de ser prioritário para a Câmara, que tinha uma nova equipa nos comandos a inteirar-se dos problemas e desafios da cidade. “Estes dois centros de recursos encaixavam numa estratégia de encontrar equipamentos devolutos em diferentes territórios e de criar outros centros de recursos noutros bairros”, diz José.

Na reunião de câmara desta quarta-feira, 11 de Dezembro, o Executivo de Carlos Moedas quer renunciar o protocolo que foi estabelecido com a Rede DLBC Lisboa e também que a Câmara deixe de ser m dos 217 associados da Rede; ao mesmo tempo, propõe a aprovação de um contrato-programa para voltar a sistematizar a relação da Rede com o espaço em Carnide. “São já quase dois anos de negociação com a Vereadora Filipa Roseta”, diz José, cansado de a situação nunca mais ficar esclarecida.
“Querem renunciar o protocolo existente e sair da Rede – tudo OK; não concordamos, mas é legítimo –, e depois apresentam-nos um contrato-programa de um ano, e mais nada.” Isto preocupa os dois responsáveis. Não só porque este contrato tem um tempo curto, como que “não permite que possamos ter mais contratos-programa”. Na prática, a Rede poderá gerir o espaço em Carnide mas não o das Olaias. Mas também no bairro Padre Cruz há uma mudança subtil: “Com a denúncia do protocolo, passamos a ser uma inquilina da Câmara e deixamos de fazer a gestão do Centro”, alerta Maria José. “Sempre nos foi dito que estamos a fazer um excelente trabalho aqui e querem que a rede deixe de gerir estes espaço? Querem ser eles a fazer a gestão, mas à distância. Ou seja, passamos a ser um meros inquilinos da Câmara apenas”, reforça a responsável.
Durante a governação de Moedas, a Rede DLBC Lisboa queixa-se de dificuldades na relação com o Município, não só com pagamentos, mas também com o próprio cumprimento do protocolo em vigor. Depois da transferência de 175 mil euros em 2020, a Rede só voltou a receber em Agosto de 2022, tendo suportado até lá os encargos com as obras de recuperação do espaço que tinham sido feitas, bem como os outros encargos correntes. “Pagaram-nos 350 mil euros, com os quais saudamos algumas dívidas que tínhamos por causa das obras. Este dinheiro serve, uma parte, para a manutenção do edifico e, a outra parte, para desenvolver actividades, dar apoio a organizações e para pagar os salários”, esclarece Maria José.
Desde esse ano até ao presente, a Rede não recebeu nem mais um cêntimo da autarquia.
Isto apesar de dizer que cumpriu todas as obrigações, como entregar em Novembro de cada ano um plano de actividades e orçamento para o Executivo Municipal discutir em reunião de câmara; se for aprovado, “no início do ano, transferiam-nos metade do valor que estava em orçamento. Depois em Fevereiro, fazemos um relatório de actividades e contas do ano anterior. E em Junho libertavam a restante verba, que podia ser de até 350 mil euros por ano, segundo o protocolo” (no primeiro ano, em 2020, foi de apenas 175 mil; em 2022, foi de 350 mil para saudar a dívida do ano anterior). “Respeitámos sempre o protocolo e mandámos sempre os planos, orçamentos e relatórios”, alega Maria José, referindo que esses documentos nunca foram discutidos em reuniões de câmara durante o mandato do actual Executivo. “O que nos foi dito é que o protocolo tinha de ser revisto e que se ia encontrar uma outra forma de trabalharmos em conjunto. Passámos 2023 a negociar e a falar”, assegura.

A relação entre a autarquia e a Rede ficou, assim, num meio-limbo. Até esta semana, com a tomada de uma decisão em relação à renúncia do protocolo e à sua substituição por um contrato-programa. Havendo maioria à esquerda na Câmara, não é certo que estas alterações possam avançar. De qualquer modo, para José Almeida, “há uma dificuldade de a Câmara explicar porque é que não quer rever o protocolo que existe e porque continua a elaborar protocolos com outras entidades”, como a Associação Turismo de Lisboa, exemplifica. “Se não quer este protocolo, vamos encontrar outros protocolos”, entende o presidente da Rede, que gostaria de ter a estabilidade e o horizonte temporal que um documento deste género oferece.
E o futuro
Apesar destas mudanças, a Rede DLBC Lisboa continua a fazer o seu trabalho de activação e capacitação do tecido social. “O protocolo com a Câmara cobre o que os financiamentos muitas vezes não cobrem”, aponta Maria José. “Não queremos ficar dependentes do Município, nem nunca quisemos”, afirma. “A grande fonte de financiamento terminou em 2023 e estamos a encontrar alternativas.” Maria José destaca o financiamento disponível através dos fundos comunitários destinados a Portugal no âmbito do Desenvolvimento Local de Base Comunitária (DLBC). Até agora, receberam sete milhões por esta via. “Não foram para nós, mas para a cidade. Actuamos como intermediários em candidaturas que, devido à sua dimensão, não poderiam ser apresentadas de outra forma”, lembra. Este dinheiro e o do protocolo serve também para manter sete pessoas a trabalhar na Rede, incluindo técnicos que vão apoiar as duas centenas de associados com candidaturas do seu interesse, a outras linhas de financiamento.

De qualquer modo, José sublinha que fragilizar a Rede pode levar à perda de financiamentos importantes, já que Lisboa precisa de organizações como a Rede DLBC Lisboa para apresentar candidaturas que, de outra forma, não seriam possíveis. “Lisboa acaba por perder estes fundos porque não há organizações como a nossa que estejam interessadas em apresentar estas candidaturas. Somos uma rede mais generalista”, explica, referindo que outras redes mais sectoriais não conseguem ter a mesma abrangência que a Rede DLBC Lisboa tem.
O modelo DLBC tem mostrado ser eficaz em Portugal, abarcando contextos rurais, costeiros e, mais recentemente, urbanos. Este modelo surgiu da necessidade de abordar problemas específicos em áreas locais, especialmente em bairros com níveis de pobreza. “Chegamos aos bairros onde estão as bolsas de pobreza, e são as associações que melhor conhecem os problemas locais e as respostas necessárias para os resolver”, diz Maria José. No âmbito dos financiamentos de DLBC, as entidades privadas sem fins lucrativos são podem ser financiadas a 100% por via dos fundos europeus, enquanto que uma entidade pública, como uma Câmara, recebem apenas 50% de financiamento, o que limita a sua capacidade acção. Em muitos municípios, a criação de associações dedicadas ao DLBC permitiu desbloquear estes fundos e implementar projectos com impacto directo nas comunidades, nota José. Nesses casos, as autarquias têm uma posição dominante. Algo que não acontece na Rede DLCB Lisboa, em que a Câmara de Lisboa tem (ou tinha?) o mesmo voto que os restantes 216 associados.
A Rede DLBC Lisboa tem mostrado o impacto positivo de uma abordagem colaborativa que conecta associações, moradores e entidades públicas para transformar bairros em espaços mais inclusivos e dinâmicos. Com os Centros de Recursos em Carnide e nas Olaias, a Rede prova que a colaboração local pode trazer soluções inovadoras e sustentáveis para os desafios urbanos. Na verdade, os bairros podem ser motores do se próprio desenvolvimento local, basta haver um tecido social forte e financiado; no Bairro Padre Cruz, com a Rede DLBC Lisboa, esse trabalho está a ser feito.