Bairro clandestino de Santa Iria de Azóia sente-se desamparado e com futuro incerto

O bairro auto-construído das Marinhas do Tejo, em Santa Iria de Azóia, continua sem soluções claras. Após a demolição ter sido adiada, permitindo aos moradores ganharem algum tempo para encontrar alternativas, o futuro de muitos permanece incerto. À Câmara de Loures são deixadas novas críticas, por não ter oferecido um apoio mais adequado e próximo.

Os moradores do bairro das Marinhas do Tejo organizaram uma assembleia no último sábado (fotografia LPP)

Voltamos a Santa Iria de Azóia, ao bairro clandestino escondido no número 105 da Rua das Marinhas do Tejo. Em Dezembro, uma centena de pessoas que ali vivem em condições precárias, e numa série de construções irregulares que eles próprios ergueram, conseguiu adiar a demolição prevista, ganhando algum tempo até ao final de Janeiro, para conseguirem procurar alternativas habitacionais. Agora, e sem essas soluções à vista, o relógio volta a apertar, e o risco de desalojamento paira novamente sobre estas famílias.

No último sábado, 25 de Janeiro, o movimento Vida Justa, que tem acompanhado estas pessoas, organizou uma assembleia naquele bairro, com o objectivo de juntar os moradores e mostrar que a união é uma importante força de resistência. À vez, cada pessoa pegou no microfone para partilhar as suas histórias, preocupações, frustrações e desabafos. “Depois de termos conseguido que a Câmara de Loures recuasse com o despejo, no início de Dezembro, as famílias começaram a ser chamadas ao Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social (SAAS), que é o serviço de apoio social da Câmara”, explica Gonçalo Filipe, porta-voz da Vida Justa, fazendo um ponto de situação em relação a Dezembro. “Lá eles fazem o apuramento da situação das famílias, um procedimento normal. Só que falharam na outra parte do apoio, que seria o apoio de conseguirem arranjar casa.”

Stéphanie, 29 anos (fotografia LPP)

“O que a Câmara fez foi ir ao Idealista, ao OLX e a essas plataformas, fazer uma compilação de anúncios e entregá-los às pessoas. Só que, primeiro, isso não é nada que as pessoas não tenham já feito.” Stéphanie, 29 anos, mostra-nos um desses anúncios, que o serviço social da autarquia lhe entregou em papel. Era uma folha A4 com uma entrada do idealista impressa e o contacto de um senhorio. Só que no dia em que Stéphanie iria ver a casa, foi chamada para trabalhar pelo ex-patrão, que precisava de uma mão extra na cozinha de um restaurante Stéphanie está agora desempregada, pelo que, entre um dia de salário, que lhe permitiria pôr comida na mesa, e uma casa, a escolha pareceu-lhe óbvia: ir ganhar dinheiro. Quando depois ligou para tentar ver a casa, disseram-lhe que já estava ocupada.

Stéphanie foi uma das moradoras que pediu o microfone para falar na assembleia deste sábado. De telemóvel numa mão e o anúncio da casa na outra, partilhou esta sua história com os presentes, entre vizinhos e membros da Vida Justa. E partilhou aquele que pareceu ser um sentimento geral entre os moradores das Marinhas do Tejo: medo de poder estar a ser enganada e explorada. “Esse medo generalizado vem do padrão de contactos que fazem. Muitas pessoas ouviram como resposta que as casas já estão ocupadas. A outras, ao descobrirem que eram de São Tomé, os senhorios recusaram alugar-lhes casas, afirmando simplesmente que não alugavam a negros. E depois há uma barreira linguística: apesar de todos falarmos português, o português de São Tomé é significativamente diferente”, explica Gonçalo. “Portanto, eles têm essas dificuldades todas.”

Stéphanie, agora desempregada, teve de escolher entre ver uma casa e ganhar dinheiro para comer (fotografia LPP)

Sem acompanhamento próximo

O bairro clandestino das Marinhas do Tejo começou a ganhar forma há cerca de dois anos. Através do passa-a-palavra de amigos e conhecidos, os residentes, na maioria são-tomenses, foram chegando e ocupando um terreno de propriedade privada – primeiro, habitaram os três edifícios devolutos existentes; depois, começaram a construir as suas próprias habitações. Nasceu assim, em Santa Iria de Azóia, um bairro de barracas com uma centena de moradores.

Em Dezembro, a autarquia quis colocar um travão neste aglomerado auto-construído, numa altura em que novas barracas continuavam a ser erguidas, e afixou em cada uma das portas, com fita-cola, um aviso a dar conta de que essas habitações seriam demolidas no prazo de 48 horas. Surpresos, os habitantes começaram a deslocalizar os seus pertences para debaixo do viaduto da auto-estrada, situado mesmo ao lado do bairro. No entanto, o caso acabou por ganhar atenção mediática com a intervenção da Vida Justa, que mobilizou a comunicação social; e a Câmara de Loures acabou por recuar, dando até ao próximo 31 de Janeiro para os residentes encontrarem alternativas e desocuparem aquelas habitações.

Por um lado, os medos e algum desconhecimento dos procedimentos habituais levaram a que a população das Marinhas do Tejo não tenha conseguido seguir as alternativas apresentadas pela Câmara de Loures; por outro, a autarquia não se mobilizou a fazer um acompanhamento de perto, ajudando as pessoas, uma a uma, a superar as dificuldades sentidas como barreira linguística ou os preconceitos. “A Câmara poderia ajudar as pessoas a falar com os senhorios e a tentar uma relação de confiança, porque é normal que as pessoas não queiram alugar as casas a qualquer pessoa”, explica Gonçalo. “E, infelizmente, as pessoas nesta situação são menos propícias a ser aceites numa casa.” A casa que tinha sido apresentada a Stéphanie tinha uma renda de 490 €/mês, ou seja, quase metade de um salário mínimo. Mas terão sido apresentadas alternativas com outros valores, alguns mais altos, outros mais baixos. De qualquer modo, a Câmara de Loures disponibilizou-se para pagar a primeira renda e a caução a todos os residentes das Marinhas do Tejo. “Mas para isso, era preciso que as pessoas tivessem conseguido encontrar casa elas próprias, pela via normal, contactando os senhorios e tentando celebrar um contrato de arrendamento”, reforça o activista.

Vários membros da Vida Justa têm-se disponibilizado para acompanhar a situação em Santa Iria de Azóia. “Somos um movimento social de activistas que tiram parte do seu tempo livre para poder construir um movimento e dar voz aos bairros. Mas quem tem a estrutura, o financiamento e os trabalhadores para ajudar, os assistentes sociais, é a Câmara”, refere Gonçalo. “Obviamente que a Câmara devia de fazer, não só porque tem isso, mas porque deveria ter, uma política de integração social, que garantam que as pessoas tenham os apoios de que precisam para poderem fazer a sua vida.”

Nas Marinhas do Tejo, os residentes resistem à espera de soluções (fotografia LPP)

A Stéphanie resta-lhe acreditar na sua fé. “Rezo a Deus a toda a hora, confio que tudo dará certo, Deus nunca me abandonou”, disse. A Preta Lopes, que ouvimos na primeira reportagem realizada sobre este caso, também só lhe resta ter fé. “Tudo agora vai estar na mão de Deus. Seja lá o que Deus decidir para nós, vamos ter de respeitar. Se com todo o apoio que deram, se a demolição for feita, será feita. Se for para ser feito assim será, mesmo com todo o vosso [Vida Justa] apoio”, disse, depois de ter contado que as ajudas que a Câmara lhe deram não deram em nada. “Liguei para o senhorio, não me atendeu. Liguei várias vezes e nada. Depois, a única resposta que deu foi que a casa já estava ocupada.” Para Preta, não só ter casa é importante, como algo que consigam pagar. “A maior parte das casas que ela [a assistente social da Câmara] nos deu nós não conseguimos pagar. Muitos de nós ganhamos o salário mínimo”, lembrou.

“Uma casa está a 800-1000 euros, nós recebemos salário mínimo, como conseguimos pagar isso?”, ouviu-se de outra interveniente, Ita. E há outro factor importante que Preta também realçou. “Se trabalhamos em Lisboa, temos de conseguir chegar ao trabalho a um horário adequado”, sendo que muitas pessoas, como ela, que trabalham nas limpezas, é-lhes pedido que esses horários sejam quase de madrugada.

Casas que consigam pagar

Enquanto escutamos a assembleia, dois são-tomenses que não quiseram intervir no fórum metem conversa e pedem para fotografarmos bem tudo, para que os nossos leitores possam compreender melhor a sua realidade. “Nós procurarmos casa é difícil. A Câmara é que deve entrar em contacto com o senhorio porque para nós é complicado”, dizem. “Agora não temos solução nenhuma. Estamos num impasse para saber qual é a solução, a decisão.” A população das Marinhas do Tejo parece confiar no movimento Vida Justa e no trabalho que este movimento tem feito de visibilização de comunidades que costumam estar invisíveis; e que esse trabalho passa também pela presença da comunicação social e de jornalistas, a quem foi dada toda a abertura para acompanharem a assembleia.

“Tenho a plena certeza que em Dezembro, o que impediu o despejo foi o facto dos jornalistas estarem cá, porque criaria um problema político gigantesco à Câmara de Loures. Acho que no dia 31 de Janeiro, isso vai se repetir”, refere Gonçalo, garantindo que “a Vida Justa não quer ninguém a morar em barracas”, mas respostas para resolver esta e outras situações. Segundo o movimento, a situação das Marinhas do Tejo é um problema que atravessa diversos bairros de auto-construção na área Metropolitana de Lisboa, que têm sofrido um rápido crescimento devido à falta de soluções criada pela especulação imobiliária e pela desresponsabilização do Estado pela construção pública. Em Unhos, também no concelho Loures, o bairro do Talude, igualmente de génese clandestina, foi recentemente demolido e, segundo a Vida Justa, apesar disso, os seus ex-residentes continuam numa situação de precariedade habitacional muito grave. Ana Paula, mãe de três crianças e com uma quarta a caminho, participou na assembleia deste sábado para explicar que pode vir a perder a pensão onde a autarquia a realojou porque, com uma quarta cabeça, essa casa ficará sobrelotada.

A Vida Justa afirma que, no caso de Santa Iria de Azóia, a aceleração do processo de despejo, juntamente com as ameaças de retirada das crianças das famílias, tem sido uma forma de punir os residentes, que não conseguem pagar os preços elevados do mercado de arrendamento. Para o movimento, esse tipo de ação reforça as desigualdades, colocando as famílias em situação de extrema vulnerabilidade. A Vida Justa tem defendido que nenhuma família deve ser despejada sem que haja alternativas habitacionais disponíveis, conforme previsto na Lei de Bases da Habitação. O movimento exige que as soluções venham tanto das câmaras municipais quanto do governo, especialmente em tempos de crise habitacional, quando a precariedade habitacional tem levado à proliferação de barracas (em Almada, é notícia um gigantesco bairro de barracas em terreno do IHRU). 

A auto-construção pode ser vista como uma solução temporária, e que, segundo a Vida Justa, é melhor que deixar as pessoas sem abrigo. “As barracas são uma consequência da crise de habitação. Há casas para as pessoas, mas boa parte dessas casas estão ocupadas para outras funções, ou estão fechadas por fundos imobiliários, ou estão devolutas. Ou seja, é preciso uma mudança de política. Não é preciso inventar a roda, é só preciso vontade”, entende Gonçalo. No caso das cem pessoas da Rua das Marinhas do Tejo, “o que resolve o problema das pessoas é a Câmara de Loures dar apoio sério. As pessoas não estão a pedir casas grátis, estão a pedir casas que podem pagar. E, portanto, a Câmara tem que vir aqui organizar-se com cada família, e ajudá-las a procurar casa”, diz o activista. “Precisamos que haja programa sério de resposta a estas situações.”

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