As situações de sobrelotação na Fertagus não são de agora, apesar do mediatismo que têm ganho. São resultado de uma concessão na qual ninguém mexeu em 25 anos e meio, apesar das mudanças sociais na área metropolitana de Lisboa. Fomos ao encontro da Comissão de Utentes de Transportes da Margem Sul para perceber as dificuldades que estão a ser sentidas pelos passageiros que todos os dias atravessam a ponte.

Já passa das 17 horas de uma sexta-feira. Estamos na estação de Entrecampos. Muitas, muitas pessoas acumulam-se na plataforma onde irá parar o comboio da Fertagus que as levará para a Margem Sul. O comboio chega e já vem composto. É que vários preferem entrar em Roma-Areeiro, a primeira estação do percurso, para garantir lugar sentado; e, para isso, chegam a apanhar o comboio em Entrecampos no sentido oposto. “Há pessoas que entram aqui ou em Sete Rios, vão para Roma-Areeiro, não saem e voltam para irem para sul. Preferem andar para trás para garantirem lugar e lugar sentado”, explica-nos Marco Sargento. “É que para Almada ou Seixal ainda se aguenta indo a pé. Para Setúbal, ainda é uma hora.”
No sentido inverso, de manhã, esta dinâmica também se verifica, conforme aponta Aurora Almeida. “De manhã, pessoas do Pragal ou de Corroios já estão a ir para trás, até Coina porque a partir de Coina já não entra ninguém. A única forma que têm de assegurar um lugar é andar para trás”, conta, reforçando que esta ginástica de “andar para trás” tem “transtornos que isso implica nas dinâmicas familiares, no acordar mais cedo….” Marco tem o exemplo próximo no trabalho: “Tenho uma colega que apanhava no Pragal que desde o final do ano que passou a apanhar em Foros da Amora”, diz, explicando que antes essa colega ia de metro até ao Pragal e agora passou a ser mais um carro a circular em Almada na hora de ponta, porque usa-o para ir até à estação no concelho vizinho do Seixal.
“Estas são dinâmicas de agora, mas agravaram-se agora com o aumento da oferta para Setúbal”, diz Aurora. A 15 de Dezembro de 2024, a Fertagus reforçou a ligação entre Setúbal e Lisboa, substituindo as circulações de hora a hora por comboios a cada 20 minutos, em qualquer horário ou dia da semana. No entanto, com a mesma frota de 18 comboios, a empresa teve de aumentar as circulações de quatro carruagens e reduzir as de oito, diminuindo a capacidade em algumas viagens para expandir a oferta em toda a linha. O resultado foi um benefício claro para os passageiros que apanham a Fertagus entre Coina e Setúbal, mas uma redução – ainda que ligeira – na capacidade no troço entre Coina e Lisboa, especialmente nas horas de ponta, onde a frequência é de 10 em 10 minutos.
No início deste ano, em resposta às críticas, a Fertagus anunciou ajustes na oferta, garantindo que, nas horas de ponta, não haveria dois comboios de apenas quatro carruagens a circular consecutivamente. A operadora fez contagens de passageiros para basear essas alterações em dados concretos, e não em percepções. Mas tanto Marco como Aurora criticam o timing. “Foram monitorizar a afluência em período de férias.”
Marco Sargento e Aurora Almeida integram a Comissão de Utentes de Transportes da Margem Sul, que tem praticamente tantos anos quanto a concessão da Fertagus. Marco faz parte desta Comissão “desde 1999” e era, até muito recentemente, o porta-voz da mesma; agora, essa pasta está a ser passada a Aurora. Ambos residem no concelho de Almada e trabalham em Lisboa. Ele usa a Fertagus desde que, em 2019, foi lançado o passe Navegante com acesso a todos os meios de transporte; ela prefere atravessar o rio de autocarro.
Sentámo-nos no café que existe no piso intermédio da estação de Entrecampos para conversar sobre a situação da Fertagus. As notícias que têm vindo a público nos últimos dias pintam um cenário de sobrelotação constante nos comboios que atravessam a ponte. Mas esse cenário, para a Comissão de Utentes, não é uma situação de agora. “Já com a introdução em 2019 do novo passe intermodal [o Navegante], a Comissão alertou para esta realidade, porque aí também a procura disparou. E também não foi acompanhada por reforço”, afirma Aurora, que considera que os comboios azuis e brancos “estão a circular no limite da sua capacidade”. Nesse ano de 2019, a Fertagus já transportou diariamente mais de 98 mil passageiros, um aumento de 40% face ao ano anterior.
São precisas decisões estruturantes
A concessão da Fertagus tem por objecto principal a exploração, pela empresa do grupo Barraqueiro, em regime regular e contínuo, do serviço de transporte ferroviário suburbano de passageiros no eixo ferroviário norte-sul, entre as estações Roma-Areeiro, em Lisboa, e Setúbal. Essa concessão, que assegura que só a Fertagus pode fazer serviço entre as estações Campolide e Pinhal Novo, tem sido sucessivamente alargada.
O último prolongamento do contrato foi feito pelo Ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, em Setembro de 2024; a concessão vai vigorar por mais seis anos e meio, até 31 de Março de 2031, e com uma única alteração: a tal oferta de comboios entre Setúbal e a capital de 20 em 20 minutos, o que representaria, segundo o Governo, num aumento de 73% dos lugares oferecidos em dias úteis e de 172% nos fins-de-semana e feriados no global do eixo Lisboa-Setúbal. O comunicado do Ministério de Pinto Luz falava num “reforço” que daria “uma significativa melhoria da qualidade de vida” às populações dos concelhos da Península de Setúbal “com a redução dos tempos de espera e comboios menos lotados”.

O material circulante de que a Fertagus dispõe é o mesmo desde o início da concessão ferroviária da linha Lisboa-Setúbal, em 1999: os 18 comboios de dois andares, com quatro carruagens cada, e que podem circular em dupla, formando oito carruagens; e que pertenciam à CP e são hoje alugadas à Fertagus pelo Estado português através de uma empresa pública chamada Sagsecur, do grupo Parpública. A aquisição de novos comboios nunca foi incluída na renegociação dos contratos, mesmo com as alterações tarifárias (como a que existiu em 2019), com as as reformulações das redes de autocarros – que vão, nos vários concelhos da Margem Sul, injectando pessoas na rede da Fertagus –, e também com as mudanças socioeconómicas na área metropolitana de Lisboa.
“A área metropolitana continua a crescer e continua a crescer. E com a crise da habitação, como os preços da habitação em Lisboa estão impraticáveis, há cada vez mais pessoas a viver em concelhos como o Barreiro ou em freguesias como Coina ou Penalva”, indica Marco. “Essas pessoas, que estão a sair do centro da cidade, procuram respostas no meio de transportes públicos, porque mesmo o transporte rodoviário individual não absorve. A Ponte Vasco da Gama ou a Ponte 25 de Abril não absorve mais, e também não é esse o caminho que se quer.” Para Aurora, é preciso serem “tomadas medidas urgentes”. “As pessoas viajam em condições indignas. Uma pessoa com carrinho de bebé, com uma criança ao colo ou com mobilidade condicionada, não consegue chegar ao trabalho a horas. E as condições em que as pessoas viajam são desumanas”, realça a porta-voz da Comissão de Utentes.
Os problemas, relembram Aurora e Marco, não são de agora. “Quem tem capacidade de tomar as decisões estruturantes, que possam modificar o sistema de transportes, tem de intervir para que o serviço possa ser melhor possível neste momento”, diz Marco.
Ir buscar comboios à CP?
Uma hipótese que tem vindo a público para as sobrelotações estruturais na Fertagus passa por esta ir buscar mais comboios à CP, nomeadamente as mesmas carruagens de dois andares que esta usa nas ligações de Sintra e Azambuja. Mas, para a Comissão de Utentes de Transportes da Margem Sul, essa não é uma boa ideia. “Achamos que isso não faz sentido porque a Fertagus pode até gerir os comboios da CP, mas depois a CP ficava sem conseguir gerir o seu parque de forma completa. Acabavam-se por tirar respostas que hoje fazem falta na Linha de Sintra ou na Linha da Azambuja”, entende Marco. “Agora, se for a CP a contribuir para este percurso – vamos admitir, a CP ficava com ligação até Coina e a Fertagus até Setúbal –, os comboios que a CP iria alocar a este serviço seriam geridos pelo bolo da CP. Não iria necessariamente prejudicar as pessoas de outros percursos.”
Marco fala mesmo na necessidade de rever a concessão da Fertagus, algo que não foi feito na primeira revisão em 2010, nem em 2019, nem agora em 2024. “Porque é que, por exemplo, não se divide a concessão com a CP? Isto é, uns fazem até Coina e outros até Lisboa. Ou se não for Coina, é Pinhal Novo. Mas pôr os dois operadores ferroviários que trabalham na área metropolitana a tentar resolver um problema”, defende. Para a Comissão, uma visão metropolitana do sector dos transportes é fulcral. “Nós tivemos um passo importante com a criação da Carris Metropolitana, que veio aqui ter uma visão de rede para a área metropolitana, coisa que não existia. Mas ficou restrita ao transporte rodoviário.”
Foi Cristina Dias, Secretária de Estado da Mobilidade, quem admitiu ir buscar à CP comboios para reforçar a Fertagus. A responsável gostaria que fosse disponibilizado pelo menos um dos comboios de dois andares que circulam na Linha da Azambuja; a CP tem, no total, 12 comboios de dois andares: oito estão a circular, dois em manutenção e dois são reserva de exploração, enquanto que a Fertagus possui 18 e só um está parado em manutenção..
Para os sindicatos representativos dos trabalhadores ferroviários a “anunciada intenção do Governo de retirar comboios à CP para os entregar ao operador privado Fertagus” é “a qualquer título inaceitável”, e afirmam que a CP “não tem quaisquer comboios encostados”. “Os comboios que se anunciam como estando disponíveis para entregar à Fertagus terminaram há poucas semanas as operações de renovação geral, orçadas num total de 17,5 milhões de euros, investimento realizado pela CP e executado nas suas oficinas”, dizem.
Os sindicatos não têm dúvidas de que uma “eventual transferência de comboios da CP para a Fertagus” poderia criar perturbações no serviço ferroviário a nível nacional mas também “na transferência imediata para a margem norte do Tejo – Linhas de Sintra e Azambuja – dos actuais problemas que afectam as populações dependentes do transporte ferroviário no eixo Lisboa a Setúbal”. Se se concretizar, a CP “terá de mobilizar comboios de outros serviços a nível nacional para dar resposta à procura de Lisboa”. “Relembramos ainda que a partir do dia 9 de Fevereiro passarão a realizar-se comboios na Linha de Leixões, o que obrigou à deslocação para o Porto de comboios que faziam serviço na Linha do Sado, e por sua vez de comboios de Lisboa para a Linha do Sado, para compensar os que foram para o Porto.”
Para os sindicatos ferroviários, deveria ser feito, “como medida imediata” e pela “segurança dos passageiros”, o “retrocesso temporário aos horários anteriores” da Fertagus. Que esta deve “implementar uma solução complementar de contingência, através de transportes alternativos rodoviários, a exemplo do que a CP faz sempre que necessário”. Defendem também que se deve “retirar, extraordinariamente, à Fertagus a exclusividade do transporte ferroviário urbano/suburbano na linha Lisboa-Setúbal” e “permitir à CP que reorganize a sua oferta para, alterando os horários contratualizados com o Estado, realizar comboios em hora de ponta que sirvam a linha Lisboa-Setúbal”.
Os sindicatos avançam com três propostas concretas: alguns comboios que circulam entre Sintra e Campolide em direcção ao Rossio passarem a ir para Coina, bem como alguns comboios da Linha da Azambuja seguirem para o Fogueteiro em vez do habitual término em Alcântara. Sugerem ainda “comboios semidirectos a Setúbal ou mesmo até Grândola, via Alcácer do Sal”, deixando nota de que “as possibilidades são imensas”.

Rever a concessão
Para a Comissão de Utentes de Transportes da Margem Sul, a solução passaria pela aquisição de novos comboios pela Fertagus, mas isso é um processo que demora e que depende também e principalmente do Governo, enquanto gestor da concessão. Em diferentes intervenções públicas, Cristina Dourado, administradora da Fertagus, tem vindo a pedir ao Estado português – a quem aluga os actuais 18 comboios – mais material circulante.
Entretanto, para Marco, “não podemos ficar fechados numa visão puramente ferroviária, porque ficaríamos limitados, desde logo pelo tempo demora a adquirir ou a construir composições” (ainda que o Governo “deveria ter um papel mais proativo em desbloquear a compra de composições”), pelo que é preciso “sentar os operadores todos à mesma mesa e encontrar soluções entre todos, perceber com o que é que cada um pode contribuir”. “Temos de perceber o que é que a Transtejo pode contribuir, o que é que a Carris Metropolitana pode fazer, como é que o acesso à ponte pode ser reformulado. Falta aqui vontade política, no nosso entendimento, para pôr esta gente a falar à mesma voz”, aponta.
A nova ponte, que terá um eixo ferroviário não só para a alta velocidade mas também para serviços suburbanos, pode ajudar a tirar alguma pressão do eixo Lisboa-Setúbal da Fertagus, ao absorver a procura de passageiros do Barreiro, por exemplo. “Está sucessivamente anunciada mas nunca mais sai do papel”, lamenta Aurora.
A proposta da Comissão de Utentes de Transportes da Margem Sul tem “três pontos”. “Um é a aquisição de comboios. Outro é sentar todos os operadores na mesma mesa. O terceiro é revisitar a concessão da Fertagus”, resume Marco. “Mas isto é só mais uma proposta nossa. São propostas que nós vamos conversando e recolhendo da nossa experiência.”
Para Aurora, a situação actual “só tende a piorar”, até porque “vão começar as aulas do ensino superior daqui a duas semanas, o que vai aumentar a afluência”. Voltar aos horários anteriores também não pode ser uma solução. “Nós não queremos isso, de todo”, seria “louco”, assegura a representante da Comissão de Utentes, voltar a pôr as populações mal. “Esta medida é que foi construída pelo telhado. Primeiro, deveriam ter acautelado formas de trazer as pessoas. Não é meter os horários quando não há capacidade.”
Neste final de sexta-feira, Aurora decide trocar o autocarro pelo comboio e seguir com Marco até à estação do Pragal, onde cada um tomou o rumo de casa. Pelas 18 horas, os dois apanharam um comboio duplo, isto é, com oito carruagens, em direcção a sul. Aurora conseguiu um lugar sentado, Marco foi de pé connosco, que decidimos fazer a viagem. As carruagens estavam cheias mas não a abarrotar – parece que tivemos sorte em relação às circulações anteriores, onde vimos comboios a abarrotar e a deixar pessoas na estação. Durante o percurso,Marco deixou um repto: “Acho que as pessoas no meio deste desespero todo e desta falta de respostas devem fazer duas coisas: devem reclamar e há meios para isso como o Livro de Reclamações Electrónico ou os e-mails para as câmaras, operadores de transporte, autoridades, etc; e devem procurar as Comissões de Utentes de Transportes das suas zonas.”