Forno do Tijolo: e se esta (ou outra) rua fosse nossa?

Crónica.

Quando as ruas pertencem às pessoas, a cidade ganha vida. Foi isso que testemunhámos na Rua do Forno do Tijolo, em Arroios. E se fosse sempre assim nesta ou noutra rua? E se fosse assim, pelo menos, ao fim-de-semana?

Fechada ao trânsito para obras, a Rua do Forno do Tijolo, em Arroios, encheu-se de crianças e de vizinhos durante um fim-de-semana de sol (fotografia cortesia de Alexander Helmer/DR)

“Eles não sabem que o sonho / É tela, é cor, é pincel”, cantava Manuel Freire em 1993. No último fim-de-semana, a tela foi a Rua do Forno do Tijolo, que devido à obras de repavimentação esteve fechada aos carros, tendo sido apropriada espontaneamente por vizinhos. Crianças e adultos usaram-na como tela, pintando-a com giz de diferentes cores; mas também como espaço de brincadeira, de encontro e de refeição.

Depois desses dias, todos ficámos a querer mais. E todos ficámos a sonhar. E se fosse sempre assim? E se fosse assim, pelo menos, ao fim-de-semana? Será este um sonho possível?

A vida naquela rua em Arroios, Lisboa, estava à vista de todos – famílias passeavam, pais ficavam nos cafés e esplanadas enquanto observavam os filhos, que brincavam na rua temporariamente sem carros. Comentavam que, naqueles dias, as crianças passaram mais tempo na rua do que ao telemóvel.

E o trânsito? “Não notei muita diferença.” Até os trabalhadores das cargas e descargas do supermercado gostaram da ideia da rua fechada – “Assim ninguém refila connosco e temos todo o espaço. Ainda terminamos o serviço mais cedo.”

Num fim-de-semana solarengo de Inverno, a rua foi sendo apropriada por adultos, jovens, crianças, cães. Por gentes de lá e de fora. Por jogos da macaca coloridos e palavras que pediam esta rua para sempre. Houve um grupo de amigos montou uma mesa em pleno asfalto, com toda a cerimónia que uma boa toalha de mesa confere, e partilhou uma refeição. 

Na segunda-feira seguinte, tudo acabou: as marcas para o estacionamento de carros começaram a ser colocadas. E não tardarão a voltar os carros, o trânsito, as buzinas.

Mas a prova já foi dada: quando as ruas pertencem às pessoas, a cidade ganha vida. Mas como transformar esta experiência efémera numa realidade permanente? O que é preciso para mudar? Naturalmente não é trivial e requer planeamento. Mas, impossível não é.

A solução rápida é simples: fechar a rua ao fim-de-semana. Ainda assim, os carros estacionados continuariam a fazer parte da paisagem da rua, limitando o espaço de lazer e impondo barreiras físicas ao direito a brincar. Por outro lado, não sendo uma solução permanente, acarretaria certamente questões logísticas como a colocação e retirada de infraestruturas, e exigiria outras dinamizações do espaço público. No entanto, mesmo sem ser definitiva, já seria um passo em frente.

Mas… e se pudéssemos ir além? E se uma eventual mudança não fosse apenas temporária e passasse pelo redesenho urbano eficiente? Muda-se o desenho, mudam-se as vivências.

Mesmo com a requalificação da Praça das Novas Nações prevista para o primeiro semestre de 2025, onde a Rua de Angola se tornará apenas descendente, há soluções possíveis. Essa mudança, se se concretizar, irá trazer mais tráfego rodoviário à Rua do Forno do Tijolo, o que poderá ser um desafio à pedonalização da mesma (a rua é também uma artéria importante para os transportes públicos do bairro).

Mas olhemos mais de perto: a Rua Forno do Tijolo tem 400 metros e com quatro intersecções. Seria mesmo impossível imaginar uma transformação através da pedonalização apenas de uma parte da rua? Porque não pedonalizar, por exemplo, o primeiro troço, em coexistência com o transporte público, através de um canal livre para BUS? Que ruas adjacentes existem com menos pressão rodoviária e que poderiam ser alternativa para a circulação no bairro?

Famílias a ocuparem a Rua Forno do Tijolo (fotografia cortesia de Alexander Helmer/DR)

Esta ideia não é propriamente nova: no Orçamento Participativo de Lisboa de 2021, surgiu a proposta de pedonalizar a Rua Maria (segmento entre a Rua do Forno do Tijolo e a Rua Antonia Andrade) – um projeto pensado para criar uma área pedonal de 380 metros quadrados com canteiros, árvores e mobiliário urbano, oferecendo uma área de lazer acessível a crianças e adultos.

Curiosamente, esta proposta surgiu após um fenómeno semelhante ao que aconteceu na Rua Forno do Tijolo – em Junho de 2020,  quando umas obras de requalificação trouxeram uma interdição temporária ao trânsito na Rua Maria, também nasceu uma zona espontânea de lazer em pleno espaço rodoviário. Crianças a brincar livremente, desenhos no chão, cadeiras carregadas às costas, vizinhos e amigos reunidos, e o espaço deixava de ser apenas uma via de circulação para se tornar um ponto de encontro e partilha.

Proposta de pedonalização da Rua Maria (via OP 2021)

E a melhor parte desta ideia de pedonalizar a Rua Maria? O impacto da pedonalização seria mínimo e as vantagens, imensas. Apenas 14 lugares de estacionamento e duas garagens estariam em causa, com acessos que podem ser facilmente assegurados. Ao contrário do Forno do Tijolo, a circulação de transportes públicos não seria afetada.

Em 2021, este projeto foi considerado viável. Então, por que não agora? Se esta transformação já provou ser possível e benéfica numa rua ao lado, porque não concretizá-la de uma vez? O sonho já foi vivido na Rua Forno do Tijolo – só falta torná-lo permanente, nessa ou na Rua Maria.

Que a ideia não se perca – novos espaços podem renascer. O bairro das Novas Nações, tantas vezes esquecido pelo atual executivo, anseia por mais do que ruas e edifícios: precisa de vida, de espaço, de reencontrar a comunidade que um dia o fez pulsar. 

Durante aqueles dias, esta rua em Arroios foi uma realidade – um lugar de todos. Seja esta ou outra, ficou claro: o bairro fica mais feliz com uma rua pedonal. Quando o desenho da cidade proporcionar humanidade, teremos todos vivências mais felizes. A comunidade já nos mostrou o caminho.

Agora, cabe-nos garantir que este sonho não se apaga no asfalto. Cabe a nós exigir mais para termos um verdadeiro Arroios, lugar de todos.

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