No bairro clandestino das Marinhas do Tejo, há solução para alguns mas não todos

O Governo e a Câmara de Loures encontraram uma solução de realojamento para os moradores das barracas do bairro clandestino das Marinhas do Tejo, em Santa Iria da Azóia. Mas deixaram de fora os ocupantes das casas de tijolo, que também se encontram em condições precárias.

A auto-construção é novamente uma realidade em Loures (fotografias LPP)

É um dia de aparente normalidade no bairro clandestino das Marinhas do Tejo, em Santa Iria da Azóia, Loures. As barracas que a autarquia liderada por Ricardo Leão (PS) queria demolir, em poucos dias, em Dezembro passado, ainda se mantém de pé. E há pessoas a continuar a residir nelas. Na “casa-mãe”, como são conhecidos os edifícios de tijolo que também integra este bairro e que foi ocupado por várias famílias há dois ou três anos, também continuam a morar pessoas.

Este clima de suspensão contraria as notícias recentes. O Governo tinha prometido realojar 44 moradores das Marinhas do Tejo, através do programa Porta de Entrada, como revelou a Câmara de Loures no final de Março. Num comunicado divulgado na altura, Ricardo Leão, Presidente da Câmara, saudou essa decisão e iniciativa do Governo, falando numa “vitória” do “esforço” e “insistência” da autarquia (que foi sempre dizendo que não conseguia resolver sozinha a situação). “Mas este problema não termina aqui. A crise da habitação não se resolve com medidas avulsas nem com respostas casuísticas”, acrescentou o autarca.

O programa Porta de Entrada aplica-se a “situações de necessidade de alojamento urgente de pessoas que se vejam privadas, de forma temporária ou definitiva, da habitação ou do local onde mantinham a sua residência permanente ou que estejam em risco iminente de ficar nessa situação”, pode ler-se no Portal da Habitação. Esta resposta, que se destina a situação de carácter “imprevisível ou excepcional”, pode ser activada pelo Governo, através do IHRU, competindo aos municípios fazer levantamento das situações existentes nos seus territórios.

No entanto, a resposta por via do Porta de Entrada não vai aplicar-se a todos os moradores das Marinhas do Tejo – apenas aos 44 que residem nas barracas; os que estão nos edifícios de tijolo (“casa-mãe”) vão ficar de fora deste realojamento, como veremos mais adiante.

Que bairro clandestino é este?

A “casa-mãe” (fotografia LPP)

Apesar de só ter sido notícia no final de 2024, o bairro clandestino das Marinhas do Tejo começou a ganhar forma há cerca de dois anos. Através do passa-a-palavra de amigos e conhecidos, os residentes, na maioria são-tomenses, foram ocupando um terreno de propriedade privada – primeiro, habitaram os três edifícios devolutos existentes, conhecidos como “casa-mãe”; depois, começaram a construir as suas próprias habitações com contraplacado e o que havia à mão. Nasceu assim, em Santa Iria de Azóia, um bairro de barracas com uma centena de moradores.

No início de Dezembro, a autarquia quis colocar um travão neste aglomerado auto-construído, numa altura em que novas barracas continuavam a ser erguidas, e afixou em cada uma das portas, com fita-cola, um aviso a dar conta de que essas habitações seriam demolidas no prazo de 48 horas. Surpresos, os habitantes começaram a deslocalizar os seus pertences para debaixo do viaduto da auto-estrada, situado mesmo ao lado do bairro. No entanto, o caso ganhou atenção mediática e a Câmara de Loures acabou por recuar, prolongado o prazo para as demolições – primeiro até final de Janeiro, depois até final de Fevereiro, e por aí adiante…

Em meados de Fevereiro, a Vice-Presidente da Câmara de Loures e Vereadora da Habitação, Sónia Paixão (PS), dizia à agência Lusa que seria impossível atribuir uma casa municipal a estas famílias, uma vez que “existe uma longa lista de espera” por parte de pessoas em situação de “maior vulnerabilidade social”. Então, que solução para as famílias das Marinhas do Tejo?

Solução serve alguns, não todos

Algumas das barracas construídas nas Marinhas do Tejo (fotografia LPP)

A solução foi anunciada apenas no final de Março e apenas para os 44 moradores das barracas construídas neste bairro clandestino. Os residentes da “casa-mãe” não vão ser abrangidos pelo programa Porta de Entrada, como confirmou o LPP no local e também junto da Vida Justa, associação que tem acompanhado e apoiado estas famílias.

Fonte da Vida Justa diz-nos que está a tentar perceber ainda os detalhes da resposta que vai ser dada, nomeadamente quanto a quem vai ser abrangido e quem não vai, mas uma coisa parece já certa: só quem reside nas barracas é que vai ser realojado; as restantes pessoas, que vivem nos conjunto de edifícios a que chamam de “casa-mãe”, vão ficar à espera de uma decisão judicial que determinará se poderão continuar a ocupar ou não esse local. Em cima da mesa, estará um litígio envolvendo o proprietário do terreno e do edifício.

Tisete é uma dessas ocupantes da “casa-mãe”. Está a par dos desenvolvimentos desde as notícias de despejo, respirando alguma tranquilidade pela solução encontrada, mas diz-nos que esse realojamento deveria ser para todos, não só para alguns. Gilson, vizinho, concorda pois, apesar de a casa onde vive ser feita de tijolo, não deixa de ser precária. Outros moradores da “casa-mãe” confirmam que vão poder ficar… até ao dia em que “alguém” lhes diga para sair, uma vez que os edifícios que estão a ocupar são privados. Mas referem que não conseguem habitação de outra forma, devido às rendas altas e aos salários baixos e instáveis.

Entretanto, num comunicado, a Vida Justa elogia, entretanto, a solução encontrada para 44 residentes, lamentando que não tenha sido dada mais cedo. “No dia 12 de Dezembro de 2024, o movimento Vida Justa acompanhou os moradores das Marinhas do Tejo, em Santa Iria da Azóia, à Assembleia Municipal de Loures para reivindicar a suspensão dos despejos sem alternativa habitacional”, lê-se na nota. “A Vida Justa e os moradores propuseram nesta assembleia a utilização do programa Porta de Entrada, obtendo na altura uma resposta negativa. Quatro meses depois foi esse o caminho tomado”, acrescenta a associação, referindo que “esta solução nunca teria surgido se não fosse a pressão dos moradores e do movimento”.

Para a Vida Justa, “ficou claro que é possível realojar pessoas em situação de despejo, precariedade habitacional ou sem abrigo”. “É necessário que as câmaras municipais trabalhem em conjunto com o Governo em vez de atirar para o Estado central a função de realojar, enquanto se limitam à função de desalojar”, conclui a associação.

Conter as barracas

O bairro fica no número 107 da Rua das Marinhas do Tejo (fotografia LPP)

Por seu lado, a Câmara de Loures, no comunicado já referido, disse que apresentou ao Conselho Metropolitano da Área Metropolitana de Lisboa (AML) “a urgência de uma resposta coordenada para a crise habitacional, destacando o impacto crescente da construção precária e ilegal em todos os municípios da AML”. Ricardo Leão sugeriu a realização de uma reunião entre o Governo e os 18 municípios da região para debater soluções conjuntas e eficazes para este fenómeno.

A autarquia reiterou a sua “posição intransigente perante a construção de novas barracas no concelho” e assegurou que “qualquer nova edificação ilegal será imediatamente demolida”, uma vez que estão “já identificadas todas as situações de habitação precária”. “Quem construiu no passado em situação de necessidade terá uma resposta. Mas deve ficar claro que não vamos permitir mais construções ilegais”, afirmou Ricardo Leão. O autarca alertou ainda para “abusos e manipulações que tentam distorcer a realidade”. “Vemos construções vazias, sem condições mínimas, que são apresentadas como habitações ocupadas, quando na verdade não o são. Essa tentativa de manipulação da opinião pública não passará”, acrescentou.

Na mesma nota, a Câmara de Loures sinalizou um “agravamento da precariedade habitacional” e “o ressurgimento da autoconstrução informal em terrenos públicos e privados”, e assegurou “que não permitirá que o concelho volte a ser marcado pela expansão da construção precária, sem as mínimas condições de segurança e saúde pública”.

No número 107 das Marinhas do Tejo, onde se desenvolveu este bairro clandestino, há quem resida há muito mais que dois anos. E que viu, da sua janela da sua casa – a sua casa de sempre –, a ocupação dos edifícios e terreno das traseiras, bem como a construção das barracas. Lamenta que nada ainda tenha mudado, apesar das promessas já asseguradas. Queixa-se do ruído, música alta e ambiente de festa aos fins-de-semana, mas deseja que todas as pessoas tenham um tecto.

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