O filho de 10 anos de Gonçalo ia sozinho de bicicleta para a aula de inglês pela ciclovia da Alameda dos Oceanos quando um agente da PSP o impediu de passar – nem mesmo com a bicicleta pela mão pôde seguir. À luz do Código da Estrada, uma pessoa com a bicicleta pela mão é…

Um grande evento tem sempre um impacto na cidade onde se realiza, obrigando a condicionamentos de trânsito temporários e a mudanças em hábitos de mobilidade. À sexta edição do Web Summit em Lisboa, os moradores e visitantes do Parque das Nações já sabem mais ou menos com o que contar – com restrições várias na zona da Alameda dos Oceanos, principalmente na envolvente da FIL e da Altice Arena. Gonçalo Peres, que costuma fazer a sua vida urbana de bicicleta, também já sabia que o Web Summit iria afectar a ciclovia dessa alameda, um eixo importante para si e para muitas pessoas do Parque das Nações. No entanto, foi este ano surpreendido com proibições que descreve como aleatórias e discriminatórias.
Na passada sexta-feira, dia 4 de Novembro, último dia do Web Summit, aproximavam-se as 17 horas quando o filho de Gonçalo, de 10 anos, ia sozinho de bicicleta para a aula de inglês. Como habitual, deslocava-se no sentido de usar a ciclovia da Alameda dos Oceanos, até porque a escola fica nessa artéria. Mas, logo à saída da Rotunda dos Vice-Reis, foi intersectado por um agente da PSP, que lhe terá dito que não podia e que poderia ir pela paralela Avenida Dom João II. “Ele disse ao polícia que a mãe não o deixa ir por ali, só pela Alameda dos Oceanos”, contou Gonçalo, explicando que a Avenida Dom João II é uma artéria com muito trânsito e perigosa, em especial para crianças de 10 anos. Intimidado pela presença do agente de autoridade e obedecendo às orientações da mãe, o pequeno rapaz terá optado por ir pelo passeio – legalmente pode fazê-lo por ainda ter 10 anos.
Desde que o Web Summit aterrou em Lisboa em 2016 que a ciclovia da Alameda dos Oceanos – um importante eixo na freguesia do Parque das Nações e na rede ciclável da cidade – foi mantida desimpedida para circulação de quem se desloca de bicicleta ou trotineta. Esta ciclovia tem dois lados, sendo que em cada lado se circula num sentido (pista unidirecional); durante o Web Summit, um dos lados costuma estar cortado e o outro passa a ter dois sentidos, ou seja, é transformada numa ciclovia bidireccional temporária. Durante vários anos, foi inclusive colocada sinalética a indicar os dois sentidos temporários da ciclovia.
Tal não sucedeu este ano. Ainda assim, segundo a Junta de Freguesia do Parque das Nações, a ciclovia ia manter-se disponível num dos lados para quem dela precisasse de usufruir: “A ciclovia no sentido sul norte da Alameda dos Oceanos estará encerrada na zona do evento, passando a funcionar como bidirecional no lado poente”puedes leer numa página da Junta dedicada aos condicionamentos de trânsito por causa do Web Summit. Segundo Gonçalo Peres, que por ali passou várias vezes durante o evento, “as regras eram aleatórias”, conta, acusando os agentes da PSP de discriminar negativamente quem optava por se deslocar de bicicleta ou de trotineta.

No mesmo dia em que ocorreu o episódio com o filho, também Gonçalo sentiu dificuldades com a sua mobilidade em bicicleta na zona da Alameda dos Oceanos. Depois de ter ido deixar livros à escola de inglês do filho, foi impedido de avançar pela ciclovia junto ao Casino. “Só não deixavam passar pessoas de bicicleta ou trotineta. E não deixavam passar de nenhuma forma, nem mesmo levando pela mão”, relata Gonçalo. A estrada ao lado da ciclovia estava, no entanto, desimpedida e havia automóveis a circular. “Se os carros estavam a passar, porque é que as bicicletas não podiam?” Foi esta pergunta que colocou ao agente da PSP que lhe terá bloqueado a passagem. “Ele respondeu-me que as pessoas a pé não andam na estrada”, numa alusão a uma utilização da ciclovia por peões e a consequentes conflitos com utilizadores de bicicleta e trotineta.
Gonçalo e mais uma família com dois filhos de bicicleta, que entretanto também ficara com a passagem bloqueada, ainda ficaram a falar com os agentes da PSP durante “uma hora a uma hora e meia”. Ao serem confrontados com uma “decisão superior” e com uma inflexibilização, pediram para falar com um superior, que, segundo Gonçalo, “apareceu com uma atitude diferente” – pois residiria nos Olivais e teria vindo para o evento de trotineta – e “um pouco confuso com o facto de não deixarem as pessoas passar a pé com a bicicleta pela mão”. “As regras não eram nada claras”, lamenta Gonçalo. Noutros dias, houve agentes da PSP que o tinham deixado seguir com a bicicleta pela mão, outros que lhe terão dito que a proibição era das 9 às 19 horas, e outros ainda que não disseram nada. Certo é que durante a realização do Web Summit havia várias pessoas a circular de bicicleta pela ciclovia da Alameda dos Oceanos, por exemplo, apanhando uma GIRA a meio do trajecto onde não haveria presença de agentes ou passando inconscientemente por zonas fora do olhar dos polícias, como o Lisboa Para Pessoas conseguiu comprovar.

“Os carros têm imensas alternativas ao contrário das bicicletas”, refere o ciclista urbano, que diz que irá apresentar uma queixa formal em relação a esta situação. Se existem várias artérias paralelas para onde é possível desviar a circulação automóvel, a Alameda dos Oceanos é única do ponto de vista da mobilidade ciclável – o único eixo que atravessa o Parque das Nações de uma ponta à outra e que apresenta uma ciclovia segregada e segura.
Para Gonçalo, não faz sentido permitir a circulação automóvel na estrada mas impedir as bicicletas de seguirem, seja por essa mesma estrada, ou com o veículo pela mão. “Não faz sentido esta discriminação”, aponta, realçando que a circulação dos carros pode também colocar em risco peões e outras pessoas e que existem formas de salvaguardar a coexistência segura entre todos. Para solucionar as preocupações de eventuais conflitos entre ciclistas e peões, numa altura de maior afluência de pessoas, poderia ser melhor separada a ciclovia do restante espaço com gradeamentos, convidando os participantes do Web Summit e outras pessoas que por ali passam a não usar a pista ciclável para caminhar e optar pelo passeio (que é bastante amplo). Poderia também ser colocada sinalização para sensibilizar os utilizadores de bicicletas e trotinetas para uma redução da velocidade e atenção redobrada durante os dias do evento, em que a presença de pessoas a pé é naturalmente maior.

O Código da Estrada é muito claro em relação a esta situação. Se é verdade que o Artigo 4º indica que se “deve obedecer às ordens legítimas das autoridades com competência para regular e fiscalizar o trânsito, ou dos seus agentes” – o que incluir orientações sobre condicionamentos temporários –, também é verdade que, no Artigo 104º, “é equiparado ao trânsito de peões (…) a condição à mão de velocípedes de duas rodas sem carro atrelado” - pelo que alguém que leve uma bicicleta pela mão é um peão igual a qualquer outro peão, não podendo ser discriminado – e que, no Artigo 78º, as ciclovias só podem ser utilizadas por peões “quando não existam locais que lhes sejam especialmente destinados” – o que não é o caso na Alameda dos Oceanos, onde a zona de passeio tem vários metros de largura.
O Web Summit não é um caso único no que toca aos seus impactos na cidade. Ainda no Verão passado, o festival Rock In Rio Lisboa encerrou o Parque da Bela Vista durante vários meses, o que deixou muitos utilizadores da bicicleta como meio de transporte sem uma ligação entre os Olivais e o Areeiro (e vice-versa). Face às queixas e à pressão de partidos da oposição, o Vereador da Mobilidade, Ângelo Pereira, acabou por prometer resolver a situação nos festivais que futuramente se realizariam naquele Parque, como foi o caso do MEO Karolama, referindo que a Bela Vista continuaria disponível para circulação a pé e de bicicleta durante as montagens e desmontagens e que encerraria apenas nos dias dos festivais.
O impacto do Web Summit no Parque das Nações não é pequeno. A realização desta grande conferência de tecnologia e empreendedorismo obrigou à remoção de estacionamentos para bicicletas e ainda de centenas de pilaretes que protegiam a ciclovia da Alameda dos Oceanos no lado em que esta esteve cortada. Estas infraestruturas serão, naturalmente, respostas, mas a sua remoção não deixa de representar um desperdício significativo, uma vez que, pelo menos no caso dos pilaretes, os mesmos foram cortados e a reposição terá de ser com novos pilaretes.

