Portugal vai ter um Plano Ferroviário Nacional, que resista às mudanças de governo e que defina as prioridades para a rede ferroviária do país. O Plano ainda não existe; o que há é uma vontade política de o criar e algumas ideias que podem servir de ponto de partida à sua discussão – que se quer aberta a todos o que dela queiram fazer parte.
“O automóvel é um dos maiores símbolos da sociedade hiperindividualista em que vivemos, o comboio é um dos maiores símbolos de uma vida em comunidade e partilhada.” Quem o disse foi Pedro Nuno Santos, Ministro das Infraestruturas e da Habitação, durante o evento que deu o pontapé de saída para a elaboração do Plano Ferroviário Nacional e que decorreu esta segunda-feira no LNEC, em Lisboa. O Plano Ferroviário Nacional – disse Pedro Nuno Santos – é um “contributo para dar a centralidade à ferrovia que ela tem de ter no país”, “para que à medida que formos tendo capacidade financeira se saber o que é que o país quer que se faça”, em vez de ser feito um planeamento isolado de uma estratégia mais ampla sempre que esse financiamento surja (nomeadamente do lado de Bruxelas).
O Plano Ferroviário Nacional (PFN) pretende juntar operadores de transporte, autarquias, especialistas, utilizadores da ferrovia e meros interessados na sua construção porque, segundo o Ministro, quanto mais participado for o processo mais apropriado pela população vai ser o Plano que dele resultar. Os contributos podem ser dados através deste website e, desta discussão pública (que decorrerá até Julho), resultará a redacção do Plano pelo Governo. Já substanciado, o Plano voltará a ser debatido publicamente, entre Outubro e Dezembro. No primeiro trimestre de 2021, prevê-se a finalização do PFN na forma de lei pelo Conselho de Ministros, com apreciação e discussão final pela Assembleia da República.
O intuito é que este Plano Ferroviário Nacional possa existir com o mesmo estatuto do Plano Rodoviário Nacional, publicado originalmente em 1945, revisto em 1985 e 2000, e que estabelece as necessidades de comunicações rodoviárias de Portugal. Para Pedro Nuno Santos, é fundamental acabar com o “pára-arranca” dos grandes projectos ferroviários e consensualizar uma visão e uma estratégia para a ferrovia do país. “Nós não precisamos de uma rede de alta velocidade. Precisamos de uma rede ferroviária. Ponto. Nalguns sítios, o comboio vai andar mais depressa e, noutros, mais devagar, porque as realidades são diferentes.” O Ministro rejeitou também a discussão em torno da bitola, referindo que Espanha não está a planear migrar de bitola e que a infraestrutura construída em Portugal está preparada para uma migração de bitola “quando e se acontecer” do outro lado.
Qual é o ponto de partida?
No encontro de lançamento da discussão do Plano Ferroviário Nacional, Frederico Francisco, coordenador do grupo de trabalho, apresentou algumas ideias iniciais juntamente com alguns projectos em curso, procurando traçar caminhos para a discussão que se avizinha:
- a rede ferroviária portuguesa actual é em “árvore”, o que significa que é difícil servir as pontas da rede com serviços frequentes, pois os fluxos nesses locais são também reduzidos. A estratégia deve passar, por isso, por fechar essa rede, criando uma malha;
- um desses fechos de rede já está pronto a inaugurar: Guarda e Covilhã vão voltar a estar conectadas por comboio, através de um novo troço de 46 km/h que irá ligar as Linhas da Beira Alta e da Beira Baixa (isto enquanto o troço Pampilhosa-Guarda da Linha da Beira Alta não for encerrado para obras de modernização, o que deverá acontecer no final do ano e até Junho de 2022). Já no final de 2023 deverá estar pronto o troço Évora-Elvas, fechando um anel no Alentejo e permitindo alta velocidade entre Lisboa e Madrid, mas também uma melhor ligação ferroviária de mercadorias entre Sines e país vizinho;
- a futura linha de alta velocidade entre Lisboa e Porto, apontada para 2030, irá permitir ligar as duas cidades em menos de 2 horas ou em 1h15 (com velocidades de 250 km/h ou 300 km/h, respectivamente). Esta linha irá ter paragens em Leiria, Coimbra e Aveiro e deverá ser a espinha dorsal da rede ferroviária nacional, uma espécie de “auto-estrada ferroviária” que intersecta com as linhas convencionais (do Norte, Oeste e Minho, e as conectadas a estas) e que encurta distâncias no país: Leiria ficará a 35 minutos de Lisboa e Coimbra a cerca de uma hora, por exemplo. Mas, apesar de se desenvolver no eixo Atlântico, a nova linha entre as duas maiores cidades do país vai também aproximar o interior do litoral – a título de exemplo, pode tirar uma hora de viagem à ligação entre Lisboa e a Guarda;
- os tempos de viagem no comboio são importantes para que este possa ser uma alternativa real ao automóvel. A ferrovia é competitiva até 3 horas de viagem, sendo que o desafio passa, por isso, por colocar o maior número de cidades e pontos do país a 3 horas ou menos de Lisboa e do Porto. Uma terceira travessia no Tejo parece inevitável para aproximar o Norte do Sul do país em termos ferroviários, tirando meia hora aos trajectos;
- o comboio deve servir todas as cidades com mais de 20 mil habitantes, como é o caso de Felgueiras, Loulé e Quarteira, além de ligar todas as capitais de distrito (Bragança, Vila Real e Viseu estão fora da rede ferroviária actual). O comboio deve ir ao centro das cidades, isto é, com estações centrais, que reúnam serviços e que estejam articuladas com outras redes de transporte colectivo (metro, barco, autocarro…) e com soluções de bicicletas partilhadas;
- de forma geral, reactivar as linhas que já foram encerradas pode não fazer sentido, pois foram pensadas no contexto do século XIX, apresentando traçados sinuosos e indirectos, sendo, por isso, ligações demoradas e que passam por zonas rurais de baixa densidade populacional. Podem, no entanto, ser úteis para serviços regionais;
- para voltar a colocar Viseu na rede ferroviária, está a ser estudada uma linha entre Aveiro, Viseu e Mangualde, que poderá ser potenciada pela linha de alta velocidade entre Lisboa e Porto e que pode ser uma saída para Madrid. Para a região de Trás-os-Montes, terá de ser estudada uma ligação entre Porto, Vila Real e Bragança, que poderia seguir para Zamora, em Espanha. Em Felgueiras, podemos estar a falar da futura Linha do Vale do Sousa, com paragem em Paços de Ferreira, Lousada e Amarante, e que pode passar pela reactivação do troço da antiga Linha do Tâmega entre Livração (Linha do Douro) e Amarante;
- simultaneamente, podem ser estudadas soluções alternativas ao transporte ferroviário pesado, como metros ligeiros e metrobuses (como o que está a ser instalado no antigo Ramal ferroviário da Lousã). Podem também ser equacionadas ligações ferroviárias em conjunto com o transporte rodoviário, para que com um mesmo bilhete uma pessoa possa, por exemplo, usar a Linha do Alentejo de Lisboa para Évora e aí apanhar um autocarro para Portalegre. Ao todo, a sua viagem demoraria menos de 3 horas; usando apenas o comboio – pelas Linha do Norte até ao Entroncamento daí pela Linha do Leste até ao destino –, a viagem (que é hoje possível) dura mais de 4 horas.
Retirar carros das cidades e das estradas
Pedro Nuno Santos complementou a apresentação do coordenador do grupo de trabalho do Plano Ferroviário Nacional com uma retrospectiva do trabalho desenvolvido ao longo dos últimos anos, destacando-se:
- o contrato de serviço público entre a CP e o Estado (o Ministro diz que a CP tem uma “dívida histórica” porque no passado o Estado “não fazia a sua parte”, não pagando à operadora o serviço público que prestava mas exigido que o prestasse);
- a fusão entre a CP e a EMEF, que permitiu aproximar o operador ferroviário público da empresa que fazia a reparação do material circulante e que hoje são a mesma empresa;
- a reabertura de oficinas em Guifões e Figueira da Foz, acompanhada pela estratégia de recuperação de material circulante que se encontrava encostado/abandonado. Com esta opção, ter-se-á conseguido poupar milhões de euros ao Estado, por comparação ao que a compra de material novo representaria. As carruagens e locomotivas recuperadas permitem à CP reforçar a oferta enquanto o material novo já comprado não chega e enquanto não há dinheiro para comprar mais;
- a redução do número de supressões e do número de comboios grafitados: “Todos ambicionamos ter a melhor rede ferroviária do mundo mas se conseguimos que o comboio apareça, apareça a horas e que esteja limpo já estamos a ter uma grande vitória”, disse Pedro Nuno Santos.
“Temos muitos anos de atraso para recuperar.” O Ministro das Infraestruturas e da Habitação disse que não esconde que quer tirar carros e camiões das cidades e das estradas. Se quisermos fazê-lo, “temos de ter ferrovia pesada a ir ao centro das cidades”. Exemplificando com a Linha de Sintra, Pedro Nuno Santos descreveu que um comboio de oito carruagens naquela linha consegue transportar 1,8 mil passageiros, o que corresponde a 36 autocarros e 360 automóveis cheios. Na Linha de Sintra circulam hoje seis comboios por hora, mas com a conclusão da quadruplicação dessa Linha pode pensar-se numa duplicação dessa capacidade, ou seja, em ter 12 comboios por hora (será preciso, como referiu o Ministro, estudar este valor tendo em contra os outros comboios que circulam na Linha).
Esse projecto está previsto no Programa Nacional de Investimentos 2030 (PNI2030) e envolve, no troço entre o Areeiro e a Gare do Oriente, passar de duas para quatro vias férreas, como já existe no troço entre o Areeiro e Sintra. Para Pedro Nuno Santos, este investimento permitirá tirar carros da estrada e de Lisboa, onde diz existir “um problema de mobilidade gravíssimo” que só se conseguirá resolver “se tivermos ferrovia pesada a transportar mais pessoas”, e não com “a passagem de carros movidos a combustíveis fosseis para carros eléctricos”.
O representante político apontou que o comboio vai continuar a não chegar a todas as zonas industriais e a todos os bairros, mas que será possível não depender do automóvel se tivermos “um sistema de transportes colectivo pensado e construído para nos permitir isso” ou se conseguirmos “levar uma bicicleta dentro do comboio para que possamos chegar a um sítio e ir à nossa vida sem ter um carro à nossa espera”. Num discurso sem rodeios e directo ao assunto, Pedro Nuno Santos salientou também a importância de Portugal contribuir para a fabricação de comboios, a necessidade de se apostar no Turismo ferroviário como forma de melhor rentabilizar algumas linhas e lançou algumas farpas para a fogueira: “Este país tem um problema crónico de dependência de importações. O principal componente de importações é combustíveis fósseis e nós ainda hoje não temos a nossa rede ferroviária electrificada. Um país que produz energia renovável como poucos na Europa, que não tem uma pinga de petróleo, andou durante décadas a financiar o automóvel e a desinvestir na ferrovia, que facilmente podia ser electrificada. Um país que importa e que desinvestiu num meio de transporte que permitia ao país depender menos de combustíveis fósseis.”