O Selim, um projecto que promove a economia circular em Lisboa, nasceu em Setembro de 2020 com o suporte da autarquia. Agora, sem dinheiro da Câmara desde Abril, cansou-se de esperar pela prometida renovação do apoio e procura novas formas de subsistência, porque o que quer é mesmo continuar.
Carlos Moedas tem dito que gosta “muito” de bicicletas, mas da palavra é preciso passar à prática e projectos da cidade ligadas aos pedais começam a desesperar entre a falta momentânea do apoio da Câmara a que estavam acostumados e a incerteza de saber se esses apoios se vão manter. É o caso do Selim, um dos braços da associação Cicloda, que tem como objectivo estimular a economia circular. O Selim recebe bicicletas doadas por quem não precisa mais delas, recupera-as e disponibiliza-as a quem precisa.
Gennaro Giacalone veio de Itália para Lisboa em 2018, com uma tese para fazer. Arquitecto de profissão, aperfeiçoou na capital portuguesa a sua paixão por mecânica de bicicletas. Já tinha apanhado o gosto nas oficinas comunitárias que havia em Milão e a Cicloficina dos Anjos foi, em Lisboa, o primeiro contacto de Gennaro com as ferramentas e a comunidade local de ciclistas. Foi lá que conheceu a Rosa Félix e o Nuno Pinhal, duas pessoas centrais da comunidade e também da Cicloda. No ano passado, foi convidado para integrar a tempo inteiro o Selim.
“Isto é o meu trabalho. Estou aqui todos os dias”, reitera Gennaro, dissipando as dúvidas que pudesse haver sobre se um mecânico de bicicletas num projecto social seria uma ocupação a tempo inteiro como as outras. É no número 246 da Rua de São Bento que podemos encontrar Gennaro. O espaço foi cedido pela Câmara de Lisboa à Cicloda, que nele “investiu bastante dinheiro” a recuperar paredes, em pinturas, na criação de uma copa e noutras obras para torná-lo usável. A Cicloda paga uma renda simbólica à autarquia pela loja, que só pode usar para o Selim.
Enquanto conversamos, Gennaro limpa cuidadosamente a ferrugem e outra sujidade no aro de uma roda. Está a trabalhar numa bicicleta que, diz, irá fazer o seu futuro proprietário ou proprietária muito feliz. O ambiente é escuro e acolhedor. A iluminação incide apenas nos pontos essenciais, como a bancada de trabalho. No fundo, roda uma playlist para dar ritmo. Desde que foi lançado em Setembro do ano passado, o Selim já recuperou 230 bicicletas das “cerca de 300 bicicletas, um pouco mais, 310” que recebeu de pessoas e entidades que não precisavam mais delas. Por outras palavras, o Selim contribui para que bicicletas que estavam encostadas a um canto algures numa garagem ou arrecadação voltem a circular, depois de devidamente recuperadas e disponibilizadas a quem as peça.
O empréstimo é feito a pensar na longa duração e por um valor único entre os 10 e 30 €, consoante o tipo de bicicleta – uma eléctrica será mais cara, mas ainda assim muito mais acessível que a aquisição de um veículo novo numa loja. Metade do valor que o Selim pede funciona como caução e é devolvido no final do empréstimo, que não tem propriamente uma data de término. No entanto, os empréstimos de bicicletas realizados ao longo deste ano de 2021 terminam no final de Dezembro. As pessoas que queiram devolver a bicicleta, recebem a caução de volta – ou seja, metade do valor do empréstimo. Se quiserem ficar com ela, podem comprá-la ao Selim, o que significa devolverem o total do valor do empréstimo.
Já no que toca a doações, o Selim aceita bicicletas em qualquer estado e também acessórios como luzes, reflectores, cadeados, suportes de bagagem, campainhas e descansos. Para pedir uma bicicleta ou para dar, basta preencher um formulário no site do Selim e aguardar um contacto por parte de alguém do projecto. Gennaro diz que têm neste momento cerca de 600 pedidos activos e “não conseguimos responder a todos por falta de bicicletas”. “Temos consciência de que podemos e podíamos ter feito mais, mas não depende tudo de nós. Se não houver doadores, não temos material para trabalhar.” Gennaro refere que não falta mão de obra, ainda que mais dois braços pudessem ajudar a acelerar processos.
Depois de um primeiro ano a funcionar com o suporte financeiro da Câmara de Lisboa, o Selim tinha pedido a extensão desse apoio para manter a equipa actual e adicionar um mecânico. O dinheiro da autarquia para o Selim terminou em Abril e, desde então, tem sido a Cicloda a sustentar o projecto, incluindo o salário de Gennaro, que acumula a mecânica com a gestão do Selim, e os recibos verdes das duas pessoas que, a tempo parcial, tratam de toda a logística, respondendo aos pedidos de doação de bicicletas e fazendo as recolhas das mesmas. À Cicloda tem sido prometido o prolongamento dos apoios, mas Gennaro diz que “já estamos a ouvir isso há demasiado tempo”.
Na reunião pública da Câmara Municipal, o ex-vereador da mobilidade, Miguel Gaspar, actualmente vereador sem pelouro, questionou o actual executivo sobre se a ausência da proposta que regularizava o prolongamento do apoio municipal ao Selim tinha sido excluído da votação por “opção política”, ao que Moedas respondeu que a mesma estaria ainda nos serviços e que seria apreciada, mais tarde, noutra reunião.
Gennaro e a Cicloda não sabem ainda qual o futuro do Selim, mas, mesmo sem o dinheiro da autarquia, o espaço não está em risco. Têm tentado candidaturas a outros fundos sociais e estão a estudar alternativas de receitas dentro do que o contrato de cedência do espaço lhes permite fazer. Uma das ideias em cima da mesa passa por realizar formações de mecânica e outra de transformar o Selim num espaço de cowork com mais mecânicos que pudessem, ali, trabalhar nos seus projectos. Gennaro gostava de continuar a consertar bicicletas e espera puder continuar a fazê-lo no Selim, ainda que em regime de voluntariado, juntamente com mais voluntários, se novos fundos não surgirem, permitindo a continuação do Selim de forma regular. Pelo menos, poderá regressar à arquitectura.
“Vimos comunicar, com imenso pesar, que o projecto Selim vai ser suspenso a partir de 2022 por falta de verbas. Esta foi uma decisão difícil, e a nossa equipa foi incansável na procura de uma resolução contrária à que estamos a anunciar. Temos, no entanto, de encarar a realidade dos números, mesmo que a motivação e esforço pessoal nos tenham trazido tão longe, para lá do sustentável. A realidade resume-se ao seguinte: o SELIM está a funcionar sem apoio da Câmara Municipal de Lisboa desde Abril de 2021. O projecto conseguiu continuar com fundos próprios da associação Cicloda, com muito comedimento orçamental, o que incluiu obras no novo espaço de oficina e o pagamento do trabalho dos colaboradores do projecto durante os últimos 8 meses, sempre na perspectiva da aprovação do prolongamento do apoio da CML. Neste momento, no entanto, tornou-se insustentável continuar, face à falta de financiamento efectivo do projecto, público ou privado.”
– excerto do comunicado do Selim, a 4 de Dezembro de 2021
No próximo sábado, dia 19 de Dezembro, a partir das 15 horas, o Selim vai organizar uma feira de Natal no seu espaço com vista à angariação de receitas, onde qualquer pessoa poderá vender peças de bicicletas ou outros produtos relacionados com a bicicleta. Marcas também se poderão juntar. Cerca de 10% de cada venda reverterá para o Selim e o restante para o vendedor, a não ser que este queira doar mais ou a totalidade do que ganhou.
No mesmo dia, às 18, existirá uma espécie de peddy-paper de bicicleta por Lisboa. Na verdade, a iniciativa-se chama-se AlleyCat Race, ou corrida de orientação, e ganhará quem conseguir melhor orientar-se pela cidade. Cada participante terá alguns pontos espalhados por Lisboa por onde terá de passar (que serão diferentes de outros participantes) e o desafio de passar por todos eles no menor tempo possível. Não é uma prova de esforço físico, mas de conhecimento da cidade. As inscrições custam 5 euros. Para te inscreveres quer na feira, como na corrida, bastará mandar uma mensagem ao Selim por e-mail ou pelo Messenger.