Há oito anos, os jovens de São João do Estoril, em Cascais, conquistaram um parque de skate num local privilegiado. Mas o Parque das Gerações pode estar ameaçado, com a Câmara de Cascais a querer rompê-lo com um túnel ou uma estrada “a céu aberto”.
O Parque das Gerações (PDG), em São João do Estoril, Cascais, é muito mais que um parque de skate. É um ponto de encontro das novas gerações e de diferentes gerações, e um símbolo da tradução que a vontade da população pode ter. A história do PDG começa a ser escrita em 2011, quando o projecto foi um dos vencedores do Orçamento Participativo (OP) de Cascais, com 832 votos e 300 mil euros para a execução. Se as crianças e jovens não têm muitas vezes uma palavra a dizer no espaço público e este nem sempre responde às suas necessidades, neste caso o OP consagrou uma vontade que agora se vê ameaçada.
A obra arrancou no início de 2013 num terreno ao lado da linha férrea e a poucos metros da estação de São João do Estoril, com uma vista privilegiada para o mar e foi inaugurada nove meses depois. A ideia passava por criar um parque com várias zonas e obstáculos para os amantes do skate, replicando ao mesmo tempo o ambiente de rua que os skaters também procuram. Ao mesmo tempo, pretendia-se que o Parque das Gerações fosse mais que um parque de skate – conta com áreas de lazer, uma cafeteira e um parque infantil, tornando-se num espaço de convergência para de diferentes gerações.
Em 2017, o Parque das Gerações voltou a vencer o Orçamento Participativo de Cascais, desta feita com uma proposta de melhoramento – pretendia-se agora requalificar o circuito pedonal, introduzir uma zona de exercício físico ao ar livre, dotar o parque de iluminação pública, construir casas de banho unissexo e acrescentar novos equipamentos para a prática do skate, como uma pista de betão para vertente “bowl”, com dimensões olímpicas, e um half pipe em madeira com dimensões profissionais. O projecto preliminar está pronto desde Março de 2020 e os utilizadores do PDG aguardam agora a sua concretização, agora em sobressalto perante as notícias sobre o futuro deste seu querido espaço.
Uma estrada a meio do PDG? Um túnel?
Numa quinta-feira de manhã, de sol, mesmo com as aulas já de volta, o Parque das Gerações não está vazio. Há pelo menos meia dúvida de skates a rolar nos diferentes obstáculos e espaços. A loja está aberta e a esplanada tem movimento. Mas o PDG está de luto. O preto tornou-se cor predominante nas rampas, nas paredes, em qualquer sítio; e letras brancas pintadas por cima gritam palavras de ordem: “Make Ramps, Not Roads” é uma das mensagens mais fortes – mas há outras. Ao longo do gradeamento que encerra o parque, estão pendurados cartazes feitos por várias pessoas com palavras da mesma ordem.
De modo a eliminar a única passagem de nível da Linha de Cascais, situada mesmo ao lado da estação ferroviária de São João do Estoril, o Plano Director Municipal (PDM) da autarquia prevê um túnel que, dessa forma, estabeleça a ligação entre a Estrada Marginal e os bairros São João, mais concretamente a uma via circular – a Circular Nascente a São João – que ainda está por concluir. A ligação subterrânea seria executada ao lado do actual PDG, mas agora, na revisão do PDM que está em curso e em fase de consulta pública, a Câmara de Cascais olha para outra alternativa: fazer uma passagem inferior que passa pelo parque de skate. A autarquia diz que será em túnel, mas a comunidade do PDG duvida, pois não entende como é que um túnel pode ser feito ali sem perturbar o parque e o bairro.
No Instagram, há um vídeo partilhado com mais de 78 mil visualizações, à data deste artigo.
O que está em causa?
O Plano Director Municipal (PDM) é um documento elaborado pelos municípios para planificação dos seus territórios; contém linhas orientadoras sobre a implementação de infraestruturas, a utilização colectiva dos espaços, o modo de edificação e a sua integração na paisagem, além de organizar territorialmente as diversas actividades de interesse geral. São feitas revisões do PDMs de tempos em tempos, e Cascais está agora no meio desse processo, que envolve uma fase de consulta e participação pública até 2 de Fevereiro.
Há várias alterações propostas nesta revisão mas apenas uma preocupa a comunidade do PDG, a número 308. É esta que propõe uma nova ligação entre a Estrada Marginal e a Rua Egas Moniz, mesmo ao lado do parque. Na documentação, a alteração é justificada com “uma alteração substancial ao traçado” da via originalmente previsto, que iria passar a norte da Escola Secundária São João do Estoril, sendo que é mantida a referência a “passagem inferior sob a linha de comboio”. Por outras palavras, o PDM abre caminho para um túnel que atravesse o Parque das Gerações de uma ponta à outra.
“A primeira coisa espantosa é não haver qualquer referência ao Parque das Gerações, como se o mesmo pura e simplesmente não existisse. Como se esta nova via fosse atravessar o terreno baldio que ali existiu até 2012”, contesta Pedro Coriel, em conversa por escrito com o Lisboa Para Pessoas. “Não há justificações ao nível da mobilidade, dos custos, do impacto no bairro, já para não falar no impacto no Parque das Gerações” acrescenta Pedro, o autor da ideia do Parque das Gerações em 2011. Publicitário de profissão, Coriel já não está ligado ao PDG – que pertence à cidade e cuja gestão está concessionada –, mas como bom “pai”, mostra-se preocupado com o futuro.
“O encerramento da passagem de nível junto à estação de São João do Estoril, a única que prevalece no concelho, já vem do século passado. Não é um tema novo e há muito que tem uma solução estudada e terrenos, que estiveram décadas reservados para esse fim” e que diz a Câmara de Cascais inutilizou recentemente com a construção de um parque de estacionamento, “infringindo o seu próprio PDM”. A preocupação de Pedro é além do PDG. “A única solução viária séria para se poder encerrar definitivamente aquela perigosa passagem de nível, é a que consta no PDM em vigor”, garante. Foi a pensar nessa solução que a Escola Secundária de São João do Estoril “viu a sua área ser reduzida” para, ali, ser futuramente construída “uma grande rotunda que receberia o trânsito vindo da Marginal e o distribuiria pelas povoações próximas (São João do Estoril, Areias, Galiza, Livramento)”.
A solução agora proposta procura substituir a grande rotunda contígua à escola secundária por uma rotunda “num largo onde funcionam dois jardins de infância, a casa mortuária do Centro Paroquial do Estoril e uma oficina automóvel”. “Todo o trânsito proveniente da Marginal passaria a ser canalizado pelo interior da Quinta da Carreira, com passagem, entre outros, à porta da Escola Básica de São João do Estoril”, explica. “Dizer que esta é a solução que ‘melhor responde responde às necessidades urbanas e à sua conjugação com equipamentos e infraestruturas existentes’ é fazer pouco da qualidade de vida de quem mora na Quinta da Carreira e é um atentado à inteligência de qualquer pessoa que conheça minimamente o local.”
Túnel ou não túnel?
No PDM, fala-se em “passagem inferior sob a linha de comboio”, o que não especifica se se trata de um túnel ou de outro tipo de passagem, como uma ponte. Numa resposta enviada a munícipes e partilhada com a comunicação social, a Câmara de Cascais esclarece que, “neste processo (de alteração do PDM para adequação ao RJIGT), não há espaço para especificar que a passagem será em túnel e preservará o Parque das Gerações”, uma vez que “o Plano Diretor Municipal é um plano estratégico, desenhado à escala 1:10.000, sem possibilidade de apresentar detalhes ao nível de projectos que ainda não se iniciaram”.
Mas Pedro tem muitas dúvidas em relação ao túnel. “Ainda ninguém conseguiu explicar, nem apresentar, a solução de engenharia milagrosa que permite que um túnel vindo da Marginal chegue à superfície sem tocar no Parque das Gerações. Uma saída vertical? Um elevador que descarrega os carros directamente no largo dos jardins de infância?”, comenta. Mesmo que a solução passe por um túnel que preserve o Parque das Gerações, Pedro Coriel entende que uma obra dessa “dimensão e complexidade” obrigaria o parque a “encerrar portas por tempo indeterminado”, bem como a uma mudança da localização da entrada, da cafetaria e esplanada de apoio, da POP Skate Shop, da área lounge e de uma parte da praça nascente para abrir espaço para a saída do túnel e rotunda.
“Mais: no PDM, esta alteração está orçamentada em 1 milhão e 700 mil euros, menos de metade do custo do novo Parque Urbano da Quinta da Carreira. Se fosse um túnel não custaria menos de 8 milhões”, refere, apontando a estimativa feita por um engenheiro civil “com mais de 20 anos de experiência, que inclusive esteve envolvido na construção do Túnel do Marquês” e que convidou ao parque para escrever um parecer técnico. “Um pouco de bom senso: faz algum sentido construir um túnel que custaria no mínimo 8 milhões para salvaguardar um parque que custou 300 mil? Ou seja, fazer o túnel seria o equivalente a construir quase 30 Parques das Gerações. Se há assim tanto dinheiro disponível para investir naquele local, invistam no parque. Com um quarto de túnel, ficava só um dos melhores parques de skate do mundo.”
Pedro Coriel explica que, numa reunião da Câmara com o concessionário do PDG no ano passado, foi dito que as obras de melhoramento do PDG no âmbito do Orçamento Participativo de 2017 não poderiam avançar para já porque, pelo meio do parque, iria passar uma estrada a céu aberto – essa estrada ligaria a Estrada Marginal ao interior do bairro da Quinta da Carreira, com duas rotundas de cada lado e passado por baixo da linha férrea, havendo um estudo prévio para o projecto. “Foi a imagem dessa estrada que divulguei no meu post de Abril de 2021. Fui insultado, rotulado de mentiroso e a minha publicação recebeu o carimbo de ‘falso’, sem sequer ter sido ouvido, por esse grande exemplo de isenção e bom jornalismo chamado Polígrafo”, lamenta Pedro. “A tal estrada que era apenas um estudo prévio estava afinal a ser planeada desde 2018 e fazia parte da alteração ao PDM em que a Câmara de Cascais estava a trabalhar nas costas de todos, inclusive da concessão. Tudo o que eu tinha escrito em Abril era afinal verdade e desta vez não havia como o desmentir. Prova-o o silêncio total da Câmara nesta última semana.”
A Câmara de Cascais garante que “o Parque das Gerações é um equipamento muito importante no Concelho” e que, “por isso, nunca foi opção desactivá-lo”. Acrescenta que “o novo acesso vai ter que passar sob a linha do comboio e, por conseguinte, também passará sob o Parque das Gerações sem o por em causa”. Para a autarquia, “este novo acesso irá, assim, melhorar o acesso ao Parque”. O executivo presidido por Carlos Carreiras diz ainda que “o presente Plano estabelece como prazo para esta infraestrutura o ano de 2025 (prazo do PDM), mas não existe ainda, da parte dos serviços competentes, uma data específica para se iniciarem os projetos que só serão viáveis após a entrada em vigor deste processo”.
“Mas se há coisa que este Parque não precisa são melhores acessibilidades, aliás foi um dos factores que mais contribuiu para o sucesso deste equipamento: estar perto de tudo”, argumenta, nomeando a estação de comboio, as paragens de autocarro na proximidade, a Marginal e a A5, as escolas, o comércio local e o centro de saúde. “As melhorias que o Parque precisa estão mais do que identificadas, venceram o Orçamento Participativo de Cascais em 2017 e estão à espera de ver a luz do dia há mais de 4 anos.”
Câmara não valoriza o PDG?
Num texto que escreveu por ocasião do 5º aniversário do PDG, em 2018, e que partilhou com o Lisboa Para Pessoas referindo manter-se muito actual, Pedro escrevia que, quando meteu na cabeça que “um terreno baldio com 11 000 m2, em frente ao mar, no bairro onde vivo desde que nasci, era o sítio perfeito para fazer um dos melhores Parques de Skate da Europa”, isso era “impensável para qualquer autarca deste país”. Um parque de skate, dizia, não podia ser construído “num terreno de primeira linha, perto de tudo (transportes, escolas, comércio) e ainda por cima com vista para o mar” mas “o mais longe e no terreno menos valioso possível”, porque o “skate é para vândalos”. Pedro lamentava em 2018 como agora que a Câmara de Cascais não valorize mais o equipamento de que dispõe:
É um orgulho enorme ver o Parque encher-se diariamente com pessoas de todas as idades, de todos os géneros, cores e estratos sociais, num ambiente extraordinário de partilha e camaradagem. Ver nascer a melhor loja e a melhor escola de skate do país. Ver o reconhecimento internacional, a quantidade de estrangeiros que vem de propósito conhecer o Parque e as marcas mundiais (Element, Volcom, Vans) que escolheram o Parque das Gerações, entre todos os Parques da Europa, para aqui realizar a etapa final dos seus campeonatos.
“O Parque das Gerações, apesar de ser um equipamento que já venceu dois Orçamentos Participativos, que já recebeu dezenas de provas nacionais e internacionais, que movimenta há mais de oito anos milhares de pessoas de todas as idades e nacionalidades, sempre foi um equipamento desprezado pela Câmara de Cascais”, comenta Pedro. “Apesar de ser um parque público, é dos únicos, senão o único, sem iluminação pública, sem casas de banho, sem sistema de rega, sem espaços verdes dignos desse nome. Se fosse um equipamento importante para o concelho já teria tido as obras de manutenção e expansão que tanto precisa. Mas como equipamento importante que nunca foi, precisou de mendigar essas mais do que justificadas obras no Orçamento Participativo de 2017.”