Porque é que nos esquecemos de usar o comboio em Lisboa?

De manhã e ao final do dia, a Linha de Sintra está apinhada de passageiros, que se deslocam da periferia para a cidade e vice-versa. Mas e dentro de Lisboa? Que oportunidades pode apresentar o comboio para as deslocações urbanas? E para as viagens de longo curso?

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

Da Avenida de Roma ou do Areeiro ao Braço de Prata são quatro minutos e até ao Parque das Nações são mais três. Benfica está muito próximo da baixa, e de Entrecampos a Alcântara são apenas 13 minutos. As linhas de comboio que rasgam Lisboa acabam esquecidas por muitas pessoas que não as vêem da mesma forma que as linhas de Metro, mas a ferrovia mais tradicional pode ser uma excelente alternativa para chegar ao destino que queremos.

Lisboa tem 17 estações e apeadeiros de comboio: Alcântara-Mar, Alcântara-Terra, Belém, Benfica, Braço de Prata, Cais do Sodré, Campolide, Chelas, Entrecampos, Marvila, Moscavide, Oriente, Roma-Areeiro, Rossio, Santa Apolónia, Santos e Sete Rios. Olhando para os serviços regionais e de longo curso, Santa Apolónia e Oriente são as principais estações da cidade, mas todas as outras permitem conexões internas que servir a cidade e a periferia.

A rede ferroviária na região de Lisboa (grafismo cortesia de Tomás Baptista/Lisboa Para Pessoas)

Quando o passe passou a integrar o comboio

Em 2012, era criado em Lisboa o passe Navegante, passando a integrar num mesmo valor mensal a Carris, o Metro de Lisboa e também a CP na sua oferta urbana. Pela primeira vez, os comboios urbanos passaram a poder ser utilizados na cidade de Lisboa como alternativa aos restantes serviços, o que aproximou algumas zonas não cobertas pelo serviço do Metro.

Um caso paradigmático é o de Benfica. Apesar de existir uma estação de metro na freguesia na zona do Colombo (Colégio Militar/Luz), no coração de Benfica o transporte mais adequado é mesmo o comboio. Da estação de Benfica é possível chegar em menos de 15 minutos de comboio ao Rossio, ou seja, à baixa da cidade. Uma viagem de autocarro entre esses dois pontos pode demorar o dobro do tempo ou ainda mais. Já a partir de Alcântara, onde a rede do metro também não chega, é possível chegar rapidamente ao centro de trabalho da cidade sem metro, usando os comboios que percorrem a chamada Linha de Cintura – uma verdadeira circular ferroviária da cidade e que passa por estações como Sete Rios e Entrecampos.

O passe Navegante (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Em 2019, o passe Navegante foi alargado a todos os 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa (AML) e foi criada a modalidade “Metropolitana”, permitindo o seu uso em toda a AML. Com esta reformulação do Navegante, também o serviço da Fertagus passou a estar integrado no valor mensal, pelo que as ligações ferroviárias dentro e fora da cidade de Lisboa se tornaram ainda mais importantes nas escolhas urbanas de mobilidade.

A linha invisível que dá a volta à cidade

Chama-se Linha de Cintura e circunda Lisboa, ligando as diferentes linhas ferroviárias que servem a cidade: em Sete Rios, conecta-se à Linha de Sintra e permite que os comboios de e para esse concelho possam chegar ao Oriente; na zona de Alcântara, liga-se indirectamente à Linha de Cascais; tem ligações com a Linha do Norte, a do Oeste e a do Sul, é atravessada pelos comboios da Azambuja e, com a futura Terceira Travessia do Tejo (TTT) pode fazer a ligação à Linha do Alentejo que hoje se inicia no Barreiro, passa por Beja e segue para a Funcheira (e que não tem hoje serviço ferroviário activo em toda a sua extensão).

A Linha de Cintura foi inaugurada em 1888, já foi conhecida como Linha de Circunvalação de Lisboa e apresenta um volume de tráfego ferroviário superior a 30 mil passagens de comboios por ano, de acordo com a Infraestruturas de Portugal. A CP não explora a Linha de Cintura comercialmente, isto é, não a comunica como uma Linha em si, nem tem comboios a operar especificamente nesta linha. Há, sim, comboios que atravessem a Linha de Cintura; por isso, o público em geral entende que está a viajar na Linha de Sintra ou na Linha da Azambuja mas não identifica se ou quando está a passar por esta “Linha de Cintura”.

Há algum tempo que se fala em posicionar a Linha de Cintura como uma “linha de metro”, a “quinta linha de metro”. A ideia foi partilhada em 2018 pelo então executivo liderado por Fernando Medina e foi repetida um ano depois. Miguel Gaspar, o vereador da mobilidade na altura, defendia, em 2018, a ligação da Linha de Cintura à Linha de Cascais em Alcântara e a transformação da primeira numa quinta linha virtual de Metro. Essa transformação seria sobretudo através da comunicação e de um sistema tarifário próximo do praticado pelo Metro de Lisboa. “Defendemos fortemente a ligação da Linha de Cascais à Linha de Cintura. Criar-se-ia, assim, uma forma de as pessoas chegarem ao coração da cidade. Deve ser estudada essa ligação e é isso que temos vindo a transmitir com insistência ao Governo. E, por outro lado, defendemos também o alinhamento dos tarifários desta linha com os praticados no Metro de Lisboa, assumindo que, na prática, funciona como uma quinta linha do metro de Lisboa e publicitando-a como tal, dizia Miguel Gaspar ao jornal O Corvo.

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

Já em Março de 2019, numa reunião do executivo da Câmara de Lisboa o então Presidente, Fernando Medina, afirmava que o lançamento dos passes Navegante a 30 e 40 euros/mês iria “traduzir e dar sentido a termos a ferrovia como a quinta linha de metro na cidade de Lisboa” e que, para tal, seria importante “a abertura dos apeadeiros que não estão accionados e pô-los ao serviço das populações” – como o apeadeiro de Chelas, desactivado em 2015, ou de Marvila, onde actualmente poucos comboios param.

A ideia da 5ª Linha de Metro

A Linha de Cintura cruza também todas as linhas do Metro de Lisboa, pelo que poderia oferecer uma complementaridade à rede de metropolitano. Por outro lado, com um tarifário nesta ligação ferroviária semelhante ao do Metro de Lisboa seria possível fazer o metro chegar já hoje virtualmente à zona ocidental da cidade, nomeadamente a Alcântara, sem esperar pela expansão da rede prevista iniciar-se só daqui a quatro anos, em 2025. A partir de Alcântara-Terra, a Linha de Cintura pára em Campolide, em Sete Rios (ligação à Linha Azul), Entrecampos (Linha Amarela), Roma-Areeiro (Linha Verde), Braço de Prata e Oriente (Linha Vermelha). Entre Roma-Areeiro e Braço de Prata, poderia ainda parar em Chelas e em Marvila.

Em Alcântara, a Linha de Cintura está ligada à Linha de Cascais através de um troço não electrificado e que funciona só pontualmente, e de noite, com serviço de mercadorias em direcção ao Porto de Lisboa. Dado que naquele ponto se cruzam as avenidas da Índia, Brasília e a parte final da Avenida de Ceuta (sob designação de Rua de Cascais), é complicado a existência de serviço ferroviário regular, pelo que a solução teria de passar pelo enterramento do serviço ferroviário ou a criação de um canal elevado. Até 2008, existiu uma passagem superior em Alcântara a ligar as duas estações com tapetes rolantes – construída em 1991, foi demolida 17 anos depois devido à insegurança oferecida pela infraestrutura.

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

Para Carlos Cipriano, jornalista do Público com muitos anos de escrita sobre ferrovia, fazer da Linha de Cintura uma 5ª linha de metro “é uma questão quase virtual, ao nível do imaterial; não tem a ver com infraestrutura ou com a oferta física porque penso que não se consegue por ali mais comboios”. “É uma linha que está sempre bastante carregada, que tem uma elevada frequência com comboios da CP e da Fertagus e a soma das duas ofertas já faz com que seja praticamente uma linha de metro. Agora não está divulgado enquanto tal”, aponta.

Para o especialista, a Linha de Cintura “nunca deve deixar de ser uma verdadeira linha ferroviária, que é aquilo que é”. Apesar de a Linha da Cintura não estar institucionalizada como tal – isto é, não é comunicada pela CP com esse nome –, é um eixo ferroviário que atravessa a cidade de uma ponta à outra. “Serve de ponto de congregação das linhas suburbanas de Lisboa – a Linha de Sintra e a Linha da Azambuja. Acolhe dos comboios dos arredores para o centro da cidade”, mas também regionais da Linha do Oeste e os longo curso da Linha do Sul. E “já cumpre a função de ser quase uma linha de metro” para “quem quiser entrar no percurso intermédio” entre o Oriente e Alcântara, “coexistindo com quem vem de fora”. Mas, “dar-lhe essa missão” de forma mais oficial poderia ser “sobrecarregá-la ainda mais”.

Uma questão de sinalética

Carlos Cipriano entende que, mesmo não comunicando a Linha da Cintura como uma “quinta linha de metro”, “faria sentido haver uma melhor informação, principalmente para quem conhece menos bem o sistema de transportes de Lisboa, de que há uma alternativa para cruzar a cidade”. Isso poderia passar por uma melhor sinalética nas estações ferroviárias, indicando, por exemplo, que serviços e destinos se podem apanhar em cada cais em vez de apresentar apenas a numeração dos cais, mas também pelos mapas do próprio Metro de Lisboa, onde se poderia “dar mais dignidade” ao traçado da Linha de Cintura, que aparece a cinzento – “uma pessoa que não conhece Lisboa, acha que aquela linha não é para ela”.

Apesar de o novo passe Navegante já permitir “andar indistintamente na cidade de Lisboa”, sendo “indiferente apanhar o metro ou ali um comboio da CP”, essa versatilidade não se aplica aos bilhetes individuais – o actual título de transporte simples já combina o Metro e a Carris, permitindo viajar entre os dois operadores durante uma hora por 1,50 € e bastaria acrescentar a CP e a Fertagus a essa oferta. “Se tiveres no Campo Pequeno e quiseres ir para Sete Rios, tens de apanhar três linhas de metro. São dois transbordos, ao passo que de comboio vais directamente de Entrecampos para Sete Rios”, explica Carlos. “Então, o ideal seria que eu pudesse ter o mesmo bilhete que já uso no Metro ou na Carris para fazer essa viagem.” No fundo, “o que eu quero é ter um título de transporte que me permita manter no primeiro comboio que passar, tal como faço com o metro, sem olhar para a cor ou para a propriedade desse comboio, e poupar tempo para Sete Rios ou para Alcântara”.

O serviço ferroviário à escala da cidade de Lisboa e à do país poderia ser melhorado significativamente com pequenas intervenções. São exemplo as estações da Linha de Cascais sem qualquer mostrador digital do tempo que falta para o próximo comboio ou se, o comboio que aí vem é um expresso ou dos que pára em todas as estações. É também exemplo a ausência de sinalética clara em todas as estações da cidade e subúrbios sobre para onde vai este ou aquele comboio – isto seria fácil de resolver porque, salvo situações excepcionais que poderiam ser comunicadas por alta voz aos passageiros, os comboios para determinados destinos fazem a paragem sempre na mesma linha. Esta sinalética poderia ser semelhante à existente nas estações de metro, onde é fácil saber em que cais nos situarmos.

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

O desenho arquitectónico de estações como a de Entrecampos ou de Sete Rios não facilita a vida aos passageiros. É difícil saber para onde temos de ir para apanhar esta ou aquela linha, e a ausência de sinalética mais clara dos serviços que existem em cada linha ainda complica mais o uso da estação. Por exemplo, em Entrecampos, um comboio para Setúbal pára quase sempre na Linha 4, tal como um comboio Intercidades em direcção ao Sul; seria lógico haver essa indicação para que um passageiro menos experiente não fique confuso.

Como lembra Carlos Cipriano, a operação ferroviária é mais complexa, em comparação com a de um sistema de metropolitano. “Qualquer linha de metro é fechada, vai do ponto A ao B, pára em todas as estações e não colide com mais nenhuma”, disse. Numa estação de comboio com quatro vias, “as duas da esquerda são para um sentido e as do outro lado são para o outro sentido” e “o passageiro deve posicionar-se de frente para o destino, o comboio vai aparecer-lhe do lado esquerdo”. Em cima disso, “há comboios que páram numas estações e não noutras, e comboios que, mesmo indo no mesmo sentido, podem ir para destinos diferentes”. Contudo, existe um grau de previsibilidade que poderia permitir alguma sinalética mais clara – geralmente os comboios para determinados destinos passam no mesmo sítio e em cada cais poderia estar indicado os diferentes destinos existentes. “Quem não está familiarizado com o sistema de transportes, poderia chegar ali e saber que tem comboios para aqueles sítios todos, que inclusive tem comboios para a margem sul.”

Linha de Cascais?

Uma diferente opinião tem Eduardo Zúquete, engenheiro civil já reformado. “Considerar a Linha de Cintura a 5ª linha de metropolitano é um exercício de planeamento extremamente redutor e ultrapassado”, diz. Para o especialista, o potencial da Linha de Cintura existe nas viagens de longo curso. Quando se fez a ligação da estação de Campolide à estação de Pinhal Novo colocando o comboio a atravessar o rio nos finais do século XX, a Linha de Cintura passou a ficar integrada no eixo Braga-Faro, “que era a figura de referência ferroviária no planeamento dos anos 1970”, e desapareceu a necessidade de transbordo fluvial no Tejo. Tinha sido possível aproveitar a nova ligação, toda ela em via dupla electrificada de Braga a Setúbal, para reordenar completamente o tráfego de longo curso ferroviário, o que não aconteceu.”

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

Zúquete olha antes para a Linha de Cascais como a tal quinta linha de metro. Já o é, só lhe falta vestirem-lhe essa roupa, mantendo a linha fechada em relação à restante rede e criando uma boa articulação com o metro em Alcântara.“O facto de ter um tensão de alimentação e uma bitola diferentes não impede a sua incorporação formal na rede de metro que requer apenas uma decisão administrativa e um ajustamento bilhético.” No entanto, a Linha de Cascais está prestes a ficar integrada na rede ferroviária nacional e a passar a ser uma linha igual a todas as outras. A modernização da Linha de Cascais em curso prevê a migração do actual sistema de electrificação – de 1500 V para 25 kV –, o que, de acordo com a IP (Infraestruturas de Portugal), permitirá harmonizar as condições de exploração desta linha com o resto da rede e reduzir anualmente em mais de um milhão de euros os custos de energia suportados pela CP com a operação do serviço.

O investimento prevê ainda a implementação de painéis digitais de informação nas estações (em falta hoje em dia) e a supressão da passagem de nível em São João do Estoril, onde se situa o Parque das Gerações. Eduardo Zúquete argumenta que “a integração da Linha de Cascais na rede geral é um erro de palmatória que vai custar uma fortuna” e que “a conversão da tensão da corrente e as alterações do ‘gabarit’ para as automotoras da Linha de Cascais poderem circular na rede geral e vice-versa são um erro ainda maior porque nada melhora o serviço dos passageiros, pelo contrário (a corrente contínua é silenciosa)”.

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

A modernização da Linha de Cascais começou a desenrolar-se num momento em que se voltou a discutir o enterramento desse eixo. Carlos Moedas inscreveu a proposta no seu programa eleitoral e Fernando Medina tinha pegado nela na recta final do seu mandato, quando a ligação da Linha de Cascais à Linha de Cintura passou para o fim da gaveta das prioridades depois de dada prioridade à expansão do Metro de Lisboa para Alcântara. “Primeiro, é o erro porque não acrescenta nada ao sistema de transportes; é unicamente para eliminar o efeito barreira”, argumenta Carlos Cipriano. “Segundo, é extremamente caro e embora se possa dizer que a Câmara de Lisboa paga, é, apesar de tudo, dinheiro dos contribuintes, é dinheiro público que pode ser melhor empregue noutras soluções.”

“Terceiro, tecnicamente não sendo impossível é extremamente difícil porque há toda uma zona de lodos com inúmeros vestígios arqueológicos e eu estou convencido que, se partirem para uma aventura dessas, é um projecto que vai demorar muitos anos a ser feito, devido exactamente aos problemas geotécnicos decorrentes da proximidade do Tejo e aos imensos vestígios arqueológicos com que se vão deparar pelo caminho.” Carlos Cipriano lembra a dificuldade que foi levar o metro até ao Terreiro do Paço e Santa Apolónia. “Portanto, eu acho que o projecto daquele tipo recomenda mil cautelas.”

O jornalista especialista em ferrovia não entende como é que se pode entender o caminho de ferro como uma barreira na paisagem e não as duas avenidas paralelas à linha. “Quer dizer, os comboios são uma barreira, e os carros não.” Na perspectiva de Carlos, a cidade ganharia mais com a manutenção da Linha de Cascais à superfície e a construção de pontes pedonais e cicláveis bonitas e com inclinações suaves, ou de passagens inferiores com boa acessibilidade também – “sem escadarias”. “Não coloco a palavra ‘túnel’, falo em ‘passagem inferior’, porque ‘túnel’ reporta para uma coisa escura e que cheira mal. Digo ‘passagens inferiores’ largas e o mais baixas possíveis, um buraco quase a bater com o tecto da linha e que aproveitam o máximo de luz solar possível”, diz. “A Câmara de Lisboa, com o dinheiro que gastaria a enterrar a linha férrea, poderia investir em arquitectos de renome internacional para construir algumas pontes pedonais bonitas. Pontes que fossem obras de arte e mais um atractivo turístico, em que o critério não fosse o preço mas a beleza.”

“Existe, de facto, um gosto imoderado pelo investimento e uma condenação silenciosa no aproveitamento inteligente dos equipamentos existentes e no exercício avisado da reparação e da manutenção. Brincando um pouco com coisas sérias, a quantidade de guarda-chuvas que são deitados fora por pequenas avarias fáceis de consertar deixa-me sempre siderado”, lamenta Zúquete. “A lista de obras inúteis, redundantes, mal aplicadas, é enorme mas não é tema para esta conversa nem estou interessado em o praticar.”

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

Resolver os longo curso

A ligação da Linha de Cascais à de Cintura, contudo, permitiria que quem venha de Cascais ou de Oeiras pudesse aceder directamente à zona central da cidade de Lisboa onde estão as empresas e os serviços, sem ter de passar pelo Cais do Sodré e realizar dois ou três transbordos. Este é o mesmo argumento a favor da construção da Linha Circular de metro ou da expansão do metro até Alcântara. Mas a resolução do nó ferroviário de Alcântara poderia servir também quem quisesse aceder aos serviços de longo curso (Alfa Pendular e Intercidades) da CP.

Na verdade, a infraestrutura ferroviária de Lisboa também tem um papel importante na mobilidade entre territórios e o planeamento das estações na capital pode ter consequências na escolha ou não do automóvel para as deslocações urbanas. E a Linha de Cintura pode, na opinião de Eduardo Zúquete, ser essencial para solucionar a questão do longo curso.

Para Zúquete seria fundamental transferir a figura de “Estação Central de Lisboa” do eixo da “excêntrica Santa Apolónia” e do Oriente para o “complexo de estações já existentes na Cintura”, ou seja, o corredor “Sete Rios/Entrecampos/Roma-Areeiro”. “Uma estação central deve-se situar no centro e não na periferia; o centro de Lisboa situa-se hoje nas Avenidas Novas”, entende, defendendo que esta solução permitiria os serviços de longo curso como os Intercidades atravessarem a cidade “de Leste a Oeste”. “Madrid, para conseguir este resultado, teve de escavar um demorado e caríssimo túnel da estação da Atocha para o Norte e construir a estação de Chamartin. Nós já temos a infraestrutura mas não a sabemos (ou não queremos) mobilá-la, ferroviariamente, da forma adequada. Porquê? Não sei.”

Carlos Cipriano concorda: “Sete Rios e Entrecampos é que são as verdadeiras estações centrais de Lisboa porque estão precisamente no centro da cidade. Idealmente deveria haver mais comboios de longo curso e pararem ali. Quando vens do Algarve ou do Alentejo no Intercidades ou Alfa Pendular, reparo que a maior parte das pessoas desce em Sete Rios e Entrecampos. Com todos os comboios de longo curso a irem para o centro da cidade através da Linha da Cintura, “tornar-se-iam mais atrativos, captando mais pessoas”. “Agora da parte da CP é óbvio que é preferível Santa Apolónia” como estação terminal dos longo curso, “porque em Santa Apolónia que é uma verdadeira estação terminal do ponto de vista operacional, com as oficinas e tudo isso”. Carlos entende que essa função poderia passar para Campolide, por exemplo. “Penso que seria preferível apostar mais nesse eixo no centro de Lisboa da Linha de Cintura como estação terminal dos serviços de longo curso do que propriamente fazer o upgrade de forma oficial para mais uma linha de metro.”

Mudar a centralidade ferroviária de Santa Apolónia/Oriente para Sete Rios/Entrecampos/Roma-Areeiro representaria, na opinião de Zúquete, um “movimento de reduzido investimento financeiro” e “significará que, finalmente, o caminho-de-ferro se apropriou devidamente a travessia que lhe foi facultada fisicamente nos fins do século passado” através da Ponte 25 de Abril. O engenheiro civil entende que as novas gerações, graças ao uso dominante de autoestradas (“que não ‘praticam’ o território, evitam-no”), “conhecem mal o nosso e têm dificuldade em compreender os problemas que se puseram a todos os agentes de transporte até há muito pouco tempo”. Para o engenheiro civil, a centralidade da ferrovia, tornando-a mais conveniente, podia ser uma resposta a essa questão.

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoas

No fundo, em viagens o que importa é o tempo. “Os caminhos-de-ferro suíços, neerlandeses e outros anunciam os seus serviços Intercidades com mapas semelhantes aos dos metropolitanos – porque a redução dos tempos de viagem converteu os seus países em enormes áreas urbanas – temporalmente falando, que é afinal a variável que conta”, relata. “Para isso, não precisamos de regionalização nenhuma, ela foi necessária desde a Idade Média até ao século XIX e para isso existiram os forais, os municípios e a cultura municipal.”

“Hoje precisamos é de desagregar todas as excessivas capitalidades de Lisboa e espalhá-las por esse país fora, unindo os locais escolhidos por um caminho-de-ferro de alta frequência e de qualidade”, diz referindo-se a Lisboa como uma cidade “profundamente muralhada pelas suas excessivas capitalidades (não sei se o termo existe mas a ideia parece-me clara) é capital administrativa, regional, cultural, comercial, turística, portuária, aeroportuária e, até, capital da memória do império”. “Receio bem que o Plano Ferroviário Nacional em curso, privilegiando a faixa litoral de Lisboa até Caminha, com a figura de um caminho-de-ferro de alta velocidade, apenas esteja a estender as muralhas de Lisboa a essa mesma faixa litoral, outorgando assim o estatuto de Aldeia Extra-muros ao restante território. Não será essa a intenção, poderá todavia ser a consequência.”

Eduardo Zúquete volta aos exemplos internacionais. “No seu tempo e depois de um debate muito demorado e alargado, os suíços deliberaram que, antes de investir em mais linhas ou em maiores velocidades, se devia prioritariamente tirar todo o partido das estruturas ferroviárias existentes, pela alta frequência e pela homogeneização dos traçados, política esta que foi seguida com muito rigor.” Para Zúquete “não nos ficaria mal se seguíssemos a mesma linha doutrinária”. “A rede ferroviária actual e alguma da rede encerrada permitiriam, se forem exploradas de forma mais adequada, um serviço muito melhor e mais abrangente e essa análise deveria ser prioritária porque duas coisas muito importantes a recomendam – primeira, enfrentar as alterações climáticas, segunda, deixar aos nossos filhos e netos um país financeiramente plausível.” Na sua perspectiva,“Portugal precisa de reestruturar uma rede ferroviária para uso prioritário de passageiros (e não de mercadorias, que é a filosofia em vigor), praticada em regime da alta frequência (e não em regime de alta velocidade)”.

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