Em Arroios, a Rua Cruz da Carreira foi requalificada com melhores condiรงรตes para caminhar. Miguel e Silke querem agora transformar a sua rua num espaรงo social, onde a vizinhanรงa se possa encontrar e desenvolver laรงos.

Passeios estreitos, alguns pilaretes ou outro tipo de barreiras a impedir o estacionamento abusivo, caixotes do lixo empurrados para junto das paredes dos prรฉdios e, no fundo, uma rua apertada onde o espaรงo pedonal e o espaรงo do automรณvel estavam muito definidos. Assim era atรฉ hรก bem pouco tempo a Rua Cruz da Carreira โ uma pacata rua na freguesia de Arroios, ali junto ao Campo Mรกrtires da Pรกtria. Mas Miguel Macedo e Silke Jellen, residentes no nรบmero 3, conseguiam imaginar um espaรงo diferente.


Em 2021, a rua entrou em obras num projecto executado pela Junta de Freguesia de Arroios com financiamento da Cรขmara de Lisboa e que ali resultou numa zona de coexistรชncia: as linhas entre o que era passeio e o que era estrada desapareceram. Agora, a รกrea รฉ prioritariamente do peรฃo e os veรญculos sรฃo convidados a atravessรก-lo com atenรงรฃo redobrada e velocidade contida. A intervenรงรฃo deu ร Rua Cruz da Carreira o mesmo aspecto que, anos antes, a Travessa Sรฃo Bernardino e Travessa da Recolhidas, contรญguas ร quela rua, tinham recebido. Os moradores passaram a contar com um espaรงo pรบblico melhorado, que convida a sair de casa, a andar a pรฉ, a brincar, a conversar com os vizinhos.

Nรฃo hรก lugares de estacionamento na Rua Cruz da Carreira a nรฃo ser ร porta de Miguel e Silke. Aรญ a rua alarga-se e forma uma pequena praรงa, onde foram desenhados oito lugares para carros, assim como uma bolsa para motociclos e um espaรงo para bicicletas. “Isto aqui deveria ser uma praรงa pedonal, apenas com um ou dois lugares apenas para mobilidade reduzida e cargas e descargas”, atira Miguel, que se mudou com Silke para aquela rua hรก uns quatro anos. Na altura, existia estacionamento dos dois lados nessa praรงa, o que significava que muitas vezes nรฃo conseguiam entrar ou sair de casa com a bicicleta, com umas compras mais volumosas ou, eventualmente, com um carrinho de bebรฉ.
O passeio ร porta de casa era minรบsculo (e inconforme com a lei da acessibilidade) e, como se nรฃo bastasse, os lugares eram tarifados pela EMEL. “Costumava dizer que se uma ambulรขncia me viesse buscar, a maca nรฃo passava na porta.” Inconformado, Miguel diz que falou com a Cรขmara, com a Junta de Freguesia e com a EMEL para que a situaรงรฃo fosse resolvida; depois de alguma insistรชncia (como infelizmente costuma acontecer nestes casos), lรก conseguiu que lhe dessem razรฃo. O estacionamento foi retirado e trocado por balizadores de borracha โ e Miguel e Silke comeรงaram a ocupar a รกrea com um pequeno jardim caseiro.




A partir do nรบmero 3, continuam a regar e a cuidar dos seis vasos que, entretanto, se tornaram um elemento distintivo da rua. As plantas estรฃo agora mais murchas porque durante as obras foram levadas para dentro mas Miguel e Silke acreditam que vรฃo voltar ร beleza de antes e esperam que possam contagiar toda a rua, tornando-a mais verde e interessante.
Num abaixo-assinado dirigido ร Junta de Freguesia, com 72 assinaturas recolhidas entre a vizinhanรงa, pedem que depois desta obra a rua seja dinamizada com mais vasos e arbustos, de que as pessoas da rua possam cuidar. Tambรฉm sugerem bancos, papeleiras e outro tipo de mobiliรกrio urbano dispostos ao longo da rua para impedir tentaรงรตes de estacionamento abusivo mas tambรฉm limitar a velocidade, que ali รฉ de 20 km/h por se tratar de uma zona de coexistรชncia. Deveria ser posto um sinal para lembrar e educar os condutores, indica Miguel, reconhecendo que as zonas de coexistรชncia sรฃo ainda um conceito novo e com o qual as pessoas estรฃo pouco familiarizadas.



A ideia seria intervalar os vasos e o mobiliรกrio urbano entre os dois lados da rua para eliminar o seu perfil recto e forรงar ao abrandamento do trรขnsito. Com estes elementos, poderiam ser removidos os balizadores de borracha colocados num dos lados da rua para impedir que os veรญculos estacionem ali, mas esses pilaretes acabam por separar o espaรงo pedonal do espaรงo viรกrio e isso รฉ algo que nรฃo se pretende numa zona de coexistรชncia. “A rua deve ser um espaรงo social. E uma rua mais humanizada รฉ uma oportunidade para encontros”, diz Silke. Alemรฃ a viver em Lisboa, onde trabalha como tradutora e intรฉrprete, nรฃo tem dรบvidas de que, no seu paรญs, aquela rua “nรฃo tinha pilaretes, claro que nรฃo”, porque “o perigo de ter estacionamento ilรญcito nรฃo existira na Alemanha”. “As pessoas tรชm mais a consciรชncia de que a rua รฉ para todos”, aponta, e “um carro estacionado nรฃo dรก alegria nem vida”.

A Junta de Arroios colocou ao longo da rua quatro vasos de madeira com pequenos arbustos de que a comunidade local promete tratar. Miguel questiona, entretanto, porque nรฃo aproveitar paletes de madeira para fazer mais destes objectos. “Os serviรงos de higiene urbana da Cรขmara devem ter imensas paletes que sรฃo recolhidas e vรฃo para o lixo.” Poderia inclusive haver um local onde qualquer pessoa se pudesse dirigir para recolher paletes e, depois, com os vizinhos organizava-se uma tarde para em conjunto criar os vasos. “Todos estes meus vasos foram feitos com material aproveitado”, conta. E “muitas destas plantas foram doadas.” Ainda tem mais em casa โ plantas que algumas pessoas lhe entregam porque jรก nรฃo as querem ou que simplesmente lhe deixam ร porta. Mas nem tudo sรฃo rosas. Como em tudo, a vizinhanรงa รฉ diversa, hรก intrigas entre algumas pessoas e “hรก sempre quem nรฃo goste”. Ainda hรก pouco tempo, tinham uma hera “lindรญssima” a trepar por uma das paredes e que foi presenteada com sal. Miguel nรฃo reparou e quando regou o sal matou as raรญzes. Agora estรก seca.



A aceitaรงรฃo geral do pequeno jardim que Miguel e Silke conceberam ร porta de casa รฉ positiva, no entanto. Hรก sempre um desconforto inicial porque a vizinhanรงa estranha quando alguรฉm decide cuidar do espaรงo para alรฉm da sua casa โ o Nuno Prates, do Jardim das Plantas Doadas, relatou-nos um sentimento semelhante em Julho do ano passado. ร uma coisa “cultural”. Silke diz que na Alemanha as pessoas se conhecem melhor nos bairros, mesmo numa grande cidade, e hรก um maior sentimento de comunidade. Aqui, diz, a base estรก criada com esta intervenรงรฃo no espaรงo pรบblico mas falta melhorar a obra e fortalecer uma comunidade entre a vizinhanรงa. Hรก exemplos em Lisboa onde isso acontece. Nas escadaria da Rua Cidade de Manchester, em Arroios, por exemplo, hรก uma biblioteca onde a vizinhanรงa pode trocar livros entre si e jรก foram organizadas plantaรงรตes e colheitas em comunidade de frutos e vegetais comestรญveis. E nรฃo muito longe dali, na Penha de Franรงa, estรก a ser construรญda uma horta comunitรกria feita pelo bairro e da qual o bairro se poderรก alimentar.
Ambos os exemplos tiveram o cunho do Regador, uma associaรงรฃo local que tem vindo a estimular a comunidade em torno do cultivo num espรญrito colaborativo e cooperativo. Miguel gostava de contar com a ajuda do Regador na dinamizaรงรฃo de um pequeno jardim ou horta comunitรกria num canto da rua onde hoje se acumulam os caixotes do lixo. E quem fala no Regador, fala no Brincapรฉ, um projecto que tem vindo a encerrar ruas ou cantinhos da cidade ao trรขnsito para promover brincadeiras na rua. E se hรก rua que poderia ser encerrada รฉ a da Cruz da Carreira. Nรฃo tendo sido bloqueado o trรขnsito a meio para impedir o atravessamento, os vizinhos pedem no abaixo-assinado ร Junta de Freguesia que a sua seja encerrada a trรขnsito apenas de moradores e que os 18 lugares de estacionamento que existem nรฃo sรณ nessa rua mas tambรฉm nas duas outras travessas sejam tambรฉm reservados a residentes.


Miguel Macedo e Silke Jellen mostram-se esperanรงosos com o novo executivo da Junta de Freguesia de Arroios, que dizem estar mais disponรญvel para ouvir os fregueses. Miguel lamenta as dificuldades que tinha tido com a anterior Presidente de Junta, “mesmo perante a crรญtica assertiva, documentada e directa” de quem pretendia apenas melhorar a sua rua e freguesia. Com o novo executivo, tรชm conseguido dialogar mais e sentido algum apoio ร iniciativa dos cidadรฃos; a Junta chegou a fornecer-lhes umas plantas para colocarem nas caldeiras das รกrvores. Mas vรฃo ter de esperar para perceber atรฉ onde chegarรก essa conversa e se vรฃo realmente conseguir, em conjunto, tornar a rua num espaรงo mais social e dinรขmico. Por agora, quando o tempo aquecer, Miguel e Silke querem organizar um churrasco para conhecerem melhor os vizinhos e resolverem alguns atritos que ainda possam existir.



