Na “Praça Sem Nome”, as esplanadas trouxeram vida mas a Junta de Arroios quer tirá-las

Perto do Mercado de Arroios, há uma praça que não tem nome mas que ganhou uma dinâmica diferente com os bares que nela se instalaram. De um lado, é freguesia de Penha de França, do outro é Arroios. De um lado, as esplanadas podem ficar até Dezembro. Do outro, a Junta quer tirá-las o quanto…

A confeitaria de Adriana Araújo colocou uma esplanada com flores e plantas (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

N’A Viagem das Horas, Ricardo Maneira não tem descanso. Aproximam-se as 5 da tarde e está quase a receber os primeiros clientes. É ao balcão que conversa connosco. “A Junta de Freguesia de Arroios tomou uma decisão unilateral sem falar com as pessoas”, desabafa. “Eu quero uma Junta que esteja aqui para me ajudar e não contra mim.” O bar de Ricardo abriu há cerca de um ano e conseguiu, pouco depois, licenciar uma esplanada no lugar de estacionamento em frente, libertando espaço no passeio, onde por vezes as mesas e cadeiras não deixavam passar com um carrinho de bebé.

A Viagem das Horas junta boa comida, boa bebida e boa música. As paredes do pequeno estabelecimento estão preenchidas com vinho e vinis, e há apenas quatro mesas para sentar clientes. A esplanada permite a Ricardo fazer mais negócio, justificar empregar mais pessoas e dar mais vida ao bairro. “Nós também fazemos um papel social ao darmos vida ao bairro”, aponta Ricardo, que diz que a maior parte dos seus clientes são pessoas locais, de Arroios ou da Penha de França, e que vêm ao seu bar a pé ou de bicicleta. Mas “estamos a falar de pequenos negócios também”, refere Ricardo. “A Junta tem de estar cá para ajudar. Com a Junta, podemos encontrar soluções que sejam viáveis para quem vive cá e para quem também tem um negócio. É uma questão de bom senso”, refere Ricardo.

Ricardo Maneira d’A Viagem das Horas (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Esplanadas eram temporárias

A pandemia de Covid-19 empurrou-nos para casa em Março de 2020, encerrando comércio e restauração; quando pudemos sair, as esplanadas foram para as pessoas uma forma de regressar aos convívios – porque o vírus se transmitia menos ao ar livre – e para os negócios uma via para recuperar a actividade. Com os passeios tantas vezes estreitos e uma pandemia que nos fez repensar o espaço das cidades, a instalação de esplanadas em lugares de estacionamento tornou-se a solução mais lógica – em Lisboa, no âmbito do programa Lisboa Protege, criado para responder à pandemia, existiam à data de Março passado pelo menos 365 esplanadas autorizadas em lugares de estacionamento.

Este número já terá sido mais alto, pois houve estabelecimentos que entretanto desactivaram as suas esplanadas. Por outro lado, das 365 esplanadas contabilizadas em Março, 68 contavam-se na freguesia de Arroios, a freguesia da cidade com maior número de lugares de estacionamento reconvertidos. Seguia-se Santo António, com 51. Só as freguesias Campo de Ourique, Carnide, Parque das Nações e Santa Clara não tinham esplanadas autorizadas no âmbito do programa municipal.

Os comerciantes beneficiaram de apoios financeiros à aquisição de mobiliário de esplanadas – comparticipações até 50% pela autarquia – e ainda de isenções das taxas de ocupação do espaço público, um benefício lançado em 2020, e prolongado até ao final de 2021, depois até 31 de Março deste ano e mais recentemente até 31 de Dezembro.

Agora está na mão das Juntas de Freguesia, ao abrigo da atribuição de competências às mesmas por parte da Câmara de Lisboa. O e-mail que Ricardo e outros comerciantes de Arroios receberam da Junta de Freguesia, e ao qual o Lisboa Para Pessoas teve acesso, não deixa margens para dúvidas: “(…) sendo que a autorização [de esplanada] lhe foi concedida a título precário, efémero e provisório, a mesma caduca a 30/09/2022. Significa isto que, após esta data, a esplanada e todo o mobiliário urbano e suportes publicitários associados à mesma deverão ser retirados do lugar de estacionamento”.

A “Praça Sem Nome” (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Entre esplanadas e estacionamento, Junta prefere estacionamento

A Junta de Freguesia de Arroios não deixa outra opção aos comerciantes que não a retirada da esplanada. Contactada pelo Público, a Junta refere que o seu território consiste “numa zona de alta densidade populacional da cidade de Lisboa, que contém inúmeras ruas e arruamentos estreitos e onde a dificuldade de estacionar, de moradores e trabalhadores, é uma realidade diária”, e que “não tem parques de estacionamento de grande dimensão que consigam constituir alternativas ao estacionamento em via pública”.

“Nunca o presente executivo de Arroios divulgou ou fez entender a quaisquer empresários que as medidas excepcionais de ocupação do espaço público poderiam de alguma forma tornar-se permanentes”, aponta ao mesmo jornal a Junta de Arroios, que pretende terminar já em Setembro com as licenças das 43 esplanadas que ainda se mantém em lugares de estacionamento. Segundo ainda o Público, existem outras seis esplanadas do mesmo género cuja licença era anterior e se manterão.

Vista da praça do interior d’A Viagem das Horas (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

“Substituir um carro por uma esplanada, eu acho uma coisa bonita. Torna a cidade mais amiga das pessoas”; e, ao mesmo tempo, “ao ter aqui a esplanada, consigo dar emprego a mais duas pessoas. Não tendo, provavelmente não vou precisar dessas duas pessoas.” Ricardo Maneira não entende: “Como é que a Câmara de Lisboa deixa que as esplanadas possam ir até Dezembro, mas a minha Junta de Freguesia, por excesso de zelo, quer antecipar a sua retirada?” E se, depois de retirar a esplanada por ordem da Junta de Freguesia – com todos os custos que tal operação acarreta –, Ricardo receber do município a informação de que, afinal, elas podem ficar até ao final de Dezembro?

A Viagem das Horas fica na “Praça Sem Nome”, assim chamada informalmente porque, de facto, não tem nome. O pequeno largo é formado pela intersecção das ruas José Ricardo e Carvalho Araújo; de um lado é freguesia de Arroios, do outro é Penha de França. É por isso que Ricardo vai ter de tirar a sua esplanada em Setembro, mas a de Orlando pode ficar até ao final do ano. É que O Malta, o bar que Orlando Malta gere juntamente com Sylvia Hink, holandesa a residir em Lisboa há uns três anos, fica no lado da Penha e a sua Junta de Freguesia já disse que não vai fazer qualquer alteração às licenças antes do final do ano.

Orlando e Sylvia d’O Malta (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

“Ao sairmos de Lisboa para outras capitais, vemos mais pessoas na rua. Lisboa é muito carro ainda”, desabafa Orlando.“Se é o comercio de carro que fica em 2ª fila durante 5-10 min que queremos, não acho muito produtivo. Acaba por atrapalhar todos. Acredito que há muito mais comercio se as pessoas se puderem deslocar a pé ou de bicicleta”, diz Orlando. “Até porque vendemos álcool, e isso desincentiva” a deslocação em carro próprio.

Tal como o seu vizinho Ricardo, Orlando sempre teve noção de que as medidas seriam temporárias, mas que o diálogo que foi existindo apontava “no sentido de isto ser algo que nascia ao abrigo do Lisboa Protege mas que a dinâmica da cidade ia nesse sentido” de tirar espaço ao automóvel. “Muitas pessoas investiram o dinheiro que era necessário para criar condições para aumentar o seu negócio” e, como aponta Orlando, houve apoios até 50% “com dinheiros públicos” para a aquisição de material para as esplanadas. “É um dinheiro público que está a ser desperdiçado, atirado ao lixo”, comenta Ricardo.

“Quando se sente esse apoio das instituições públicas por detrás, não estamos a pensar que isto vai voltar para trás”, refere Orlando. “É temporário agora, mas no futuro vai reverter numa coisa em que nós vamos poder pagar o espaço. Queríamos ter essa hipótese de pagar aquilo que estamos a ocupar na estrada”, como já acontece no Porto, por exemplo, desde o início do ano. Alguns comerciantes de Arroios começaram num abaixo-assinado através da plataforma Petição Pública em defesa das esplanadas na freguesia e na cidade. Entre as 1 689 assinaturas, estão a de Ricardo e a de Orlando. Mesmo que não esteja a ser afectado a curto prazo, o dono d’O Malta – que se estabeleceu naquela praça em Dezembro de 2018 – receia que a a visão da Junta de Arroios seja a mesma do executivo municipal e que “devolvam isto à EMEL e voltemos a ter estacionamento”. “É por isso que me junto ao movimento de Arroios, porque aquilo que acontecer em Arroios passado três meses também vai acontecer na Penha de França.”

A esplanada d’O Malta (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Reporta o Público que a Junta de São Vicente também está preocupada com o estacionamento na freguesia e que não vai prolongar as esplanadas, e a de Santo António quer estudar caso a caso para equilibrar os interesses de moradores e comerciantes. E, como relata a CNN Portugal, na freguesia da Misericórdia, os comerciantes da Rua da Silva (mais conhecida como “Green Street”) foram surpreendidos nos últimos dias pelo regresso dos automóveis àquela rua que tinha, durante a pandemia, sido fechada ao trânsito.

Encontrar um equilíbrio na cidade

“Esta praça tinha vários problemas, a criminalidade era um deles. Agora a dinâmica que estamos a conseguir promover nesta praça trás outro tipo de clientes, outro tipo de negócios”, relata Orlando. Do outro lado da praça, mesmo ao lado d’A Viagem das Horas, esta ideia é corroborada por Adriana Araújo: “Entre o que era antes dos nossos estabelecimentos e o que é hoje, a mudança de pessoas é gritante, melhorou muito o bairro, ficou muito melhor frequentado.” Adriana tem um café especializado em bolos e salgados – começou a fazê-los em casa durante a pandemia e a vendê-los para fora pela internet, mas diz que encontrou ali o “sítio certo” para fixar o negócio e crescer. Não tiveram esplanada logo no início, quando abriram em Outubro de 2020, mas dizem que fez “bastante diferença”.

“A esplanada foi o que ajudou a gente a continuar. Mais clientes vieram, viram a esplanada com as flores e ficaram curiosos. Chama à atenção. E ao final do dia é super fresquinho [estar aqui]”, conta. Se ficarem sem ela, “vai atrapalhar bem”, diz Adriana. “Vai atrapalhar as vendas, vai ter um carro estacionado aqui na frente que não vai ajudar a gente em nada, vai diminuir o pessoal. De cara, vai ser duas pessoas desempregadas. As esplanadas geraram emprego”, aponta a gestora do espaço. A esplanada de Adriana Araújo está pintada com flores em volta e tem também uma bicicleta florida à porta. Também as esplanadas dos vizinhos têm algum tipo de decoração que ajuda os clientes a distraírem da praça inóspita em redor, sem árvores e carregada de carros parados. Ao final do dia, quando os motores dos carros se deixam de ouvir tão frequentemente, as vozes de pessoas a falar sobrepõem-se e o ar torna-se mais suave. Há vida no bairro.

A esplanada da confeitaria de Adriana Araújo (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

“É uma praça que está cada vez mais viva e que tem cada vez mais pessoas, do bairro. Estas esplanadas que conseguimos colocar na estrada trouxeram a população de novo para a rua. Se se perderem as esplanadas, perde-se também essa vida”, aponta Orlando d’O Malta.“Antigamente, sem as esplanadas, parava só carro. A praça não tinha movimento. Não tinha flores”, completa Adriana Araújo. “Que cidade queremos, é a pergunta que temos de fazer. Se queremos só carros na cidade, é uma coisa. Agora se queremos pessoas na rua a viver a cidade, a viver o bairro, o caminho é este, com esplanadas. É uma escolha”, comenta Ricardo, d’A Viagem das Horas.

A comunidade de bares, cafés e restaurantes que se instalou na “Praça Sem Nome” rejeita problemas com a vizinhança e diz que até fecha mais cedo (à meia noite) do que os alvarás permitem (duas da manhã) para dar descanso aos moradores. “Estabelecemos aqui um compromisso com a vizinhança. Nós fazemos o negócio, mas chega àquela hora e eles conseguem descansar”, refere Orlando. Nem sempre é assim e em zonas residenciais há quem veja com maus olhos a existência de esplanadas, argumentando que promovem ruído nocturno e colocam em causa o descanso.

O equilíbrio nem sempre é fácil de estabelecer e, em Arroios, também interfere com a disponibilidade de estacionamento para residentes. Numa freguesia densamente populada, onde os prédios não têm garagem, é comum vermos veículos a ocupar cada preciso metro quadrado disponível, seja um passeio, uma passadeira ou um cruzamento. “Muitas vezes vivem seis famílias num prédio, cada família tem dois carros, são 12 carros à porta num espaço de seis metros que dão para dois carros”, diz Orlando. Para Sylvia, que veio de Amesterdão para Lisboa, faz confusão tanto automóvel na cidade e diz que lá as ruas dos bairros têm menos lugares de estacionamento e mais espaços para as pessoas usufruírem, sejam jardins infantis, parques caninos ou praças de estadia. “A Alameda tem um espaço verde, mas quando vens para dentro do bairro o verde perde-se. Tens só estacionamento e prédios. Este largo podia ser dinamizado nesse sentido”, aponta Orlando, que, com os colegas, já sonhou com algo mais verde no meio desta “Praça Sem Nome”.

O fim das esplanadas de Orlando, Ricardo e Adriana iriam significar um acréscimo de apenas seis a sete lugares na zona. Numa rua paralela, ali mesmo ao lado, vão ser criados 27 lugares de estacionamento no âmbito do projecto da nova ciclovia da Avenida Almirante Reis que prevê a eliminação de um corredor BUS existente. Os comerciantes que ouvimos alegaram que houve um investimento público também na criação destas esplanadas, defendem que estas geraram emprego e procuram, no fundo, certezas para saberem qual o futuro dos seus negócios.

Citada pelo Público, a Câmara de Lisboa refere que até “ao final deste ano, haverá certamente lugar a uma reavaliação da situação e uma decisão em conformidade” sobre a questão das esplanadas licenciadas temporariamente em estacionamentos, e disse ser necessário “ponderar todos os diferentes interesses da cidade e acautelar e acomodar na medida do possível os efeitos mais penalizadores de cada actividade”. Entende que a “existência de novas esplanadas e a dinamização do comércio ao ar livre” são “uma tendência positiva para a economia e para a vida da cidade”.

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