O encontro, que decorreu nesta segunda-feira à tarde, fez parte do processo participativo que a Câmara de Lisboa tem em curso para requalificar todo o eixo da Almirante Reis, e serviu para enquadrar a audiência presente em relação aos desafios e objectivos desse projecto.

Decorreu, esta segunda-feira, ao final do dia, a conferência que marca o pontapé de saída oficial no novo processo participativo sobre o futuro da Avenida Almirante Reis e sua envolvente. Desta vez, o tema não é a ciclovia, mas todo o espaço público de todo o eixo, desde o Areeiro até ao Martim Moniz. E por isso, o tema central da conferência, que reuniu uma centena de pessoas no Lisboa Ginásio Clube, também já não foi a controversa ciclovia.
“Estamos a falar de um projecto integrado de requalificação do eixo da Almirante Reis, não só da avenida”, salientou Joana Almeida, vereadora do Urbanismo na abertura da conferência. “O facto de ser um projecto integrado é muito importante”, acrescentou, explicando que este trabalho cruza diferentes direcções municipais, como o Urbanismo, a Mobilidade e o Ambiente. A expectativa é que a partir de 2025, com as obras de drenagem concluídas, se possa avançar com as obras de requalificação, realizando até lá todo o trabalho de estudo, elaboração de projectos e e de contratação de empreitadas que é preciso ser feito.
O processo participativo sobre o eixo da Almirante Reis está a decorrer desde Abril e deverá prolongar-se até Junho, e, segundo a vereadora do Urbanismo, “tem tido bastante adesão”. Enquanto a população é escutada com diferentes acções, os serviços da Câmara de Lisboa estão a estudar toda a área do eixo da Almirante Reis e respectiva envolvente – são 278 hectares, da qual apenas 1,3 hectares serão efectivamente requalificados. “O facto de termos uma intervenção num eixo não significa que podemos deixar de considerar a envolvente, principalmente falando em mobilidade”, esclareceu Joana Almeida.
O estudo da autarquia está a ser dividido por sector (saneamento, estrutura verde, resíduos urbanos, iluminação pública, acessibilidade, pavimentos, mobilidade, etc…) e, no final, será condensado num “relatório de objectivos e condicionantes”, que, em conjunto com o relatório final da participação pública, permitirá “desenhar o nosso programa de intervenção”. O projecto integrado vai afectar apenas o espaço público, “de fachada a fachada” da avenida, e não o património edificado. “Obviamente que o que se faz nos edifícios se relaciona com a utilização do espaço público, e vice-versa. Toda a componente do património edificado, de actividade comercial e de habitação vai ser analisada, mas o projecto integrado de intervenção cinge-se ao espaço público”, clarificou Joana Almeida.
O painel da conferência contou com a presença de especialistas de diferentes áreas, tendo-se procurando enquadrar a população nos desafios do eixo da Almirante Reis e nos objectivos gerais já definidos para a intervenção. Moderada pela jornalista Ana Fernandes, do Público, a mesa de debate teve Filipa Ramalhete, antropóloga, professora na Universidade Autónoma e autora do livro Atlas Almirante Reis (2020); Catarina Freitas, Directora Municipal do Ambiente; Filipe Moura, professor no Instituto Superior Técnico e especialista em mobilidade urbana e activa; João Nunes, arquitecto paisagista no atelier PROAP; e Mário Alves, consultor de mobilidade e secretário-geral da Federação Internacional de Peões.
“O espaço público não é elástico mas é dinâmico”
Filipa Ramalhete saudou a existência de um site para o processo participativo com a disponibilização de documentos à medida que são feitos. “Na academia, a disponibilização de documentos é algo que estamos sempre a reivindicar. Muitas vezes dizem-nos que estão a fazer o estudo, depois nunca vemos o estudo ou vemos numa altura tardia”, referiu. Para a antropóloga, apesar de “já haver uma percepção geral do que está bem e do que não está” no eixo da Almirante Reis, “este é o momento oportuno para fazer perguntas” e questionar, por exemplo, que usos se pretendem para a avenida. “A avenida é muito longa e se calhar não é possível tudo em todas as partes e temos também de perguntar do que é essencial manter e o que se pode tirar. Às vezes tenho a sensação de que a avenida tem coisas a mais”, disse, exemplificando com o muito e diverso mobiliário urbano nos passeios.
A avenida situa-se numa zona consolidada da cidade e o seu espaço não pode ser ampliado. Esta é uma das principais condicionantes do repensar daquele eixo – “mas será que ainda podemos libertar espaço e criar outros usos diferentes daqueles que lá estão?”, questionou Filipa. “O espaço público não é elástico mas é dinâmico, e a Almirante Reis tem tido uma capacidade admirável – não sei se é pela pouca atenção que tem tido ao longo destes anos – de acolher tudo aquilo que temos em Lisboa, as coisas boas e também as más, como os sem-abrigo, a pobreza, a prostituição e o tráfico”, apontou a antropóloga, que, nas suas intervenções, lançou outra ideia para alimentar a discussão: “Se calhar, há mais pessoas a atravessar a avenida do que a percorrê-la.”

Filipe Moura referiu que é importante definir a função que se pretende para a Almirante Reis, se uma função de mobilidade, se de acessibilidade. “A Almirante Reis continua a ser um eixo importante de acesso ao centro da cidade, com ligação à Gago Coutinho e à Segunda Circular. No PDM, a avenida começa por ser de uma hierarquia superior – nível 2 – de distribuição dos maiores fluxos de tráfego internos ao concelho, e depois passa para nível 3 – um eixo de acesso local, em que transitamos de uma lógica de acessibilidade”, explicou. Moura desafiou a existir um esclarecimento ao nível do PDM da hierarquia viária que se pretende para o eixo, até porque isso vai influenciar decisões como a da velocidade. “Os 30 km/h fazem todo o sentido se quisermos ter uma função de acessibilidade, mas se a função for de mobilidade, se for de escoamento, se calhar não fazem sentido. Talvez faça sentido repensar a hierarquia da Almirante Reis e se queremos que continue a ser um eixo de entrada e saída da cidade como está definido no PDM”, apontou o professor do Técnico.
Filipe lançou cinco desafios. Um primeiro sobre “pensar em todas as transversais, não só do ponto de vista pedonal, mas também do ponto de vista ciclável” para criar ligações com o corredor da Almirante Reis. Um segundo para neste processo participativo e de estudo “identificar tipos de perfis de utilizadores e as suas expectativas” em relação ao futuro do eixo. “Acho que vamos descobrir coisas interessantes.” Um terceiro para se planear neste projecto integrado o faseamento e impacto das obras, lembrando a situação que se prolongou durante vários anos na Praça do Chile. “É preciso pensar também em como se fazem as obras”, disse. Um quarto sobre “fazer uma fotografia do antes e do depois” da futura requalificação no que toca ao caminhar e à utilização da bicicleta, para se perceber as mudanças que as obras trarão, dando como exemplo a análise feita nas avenidas da República e Fontes Pereira de Melo. Por último, Filipe Moura lançou uma ideia: criar espaços públicos flexíveis na Almirante Reis. “Será que podemos atribuir espaço a um modo a uma altura do dia e a outro noutra altura? Será que a Almirante Reis poderia não ser um espaço rígido ao longo do dia ou ao longo da semana? Como é que se poderia implementar essa complementaridade, tendo em conta os efeitos de segunda ordem que às vezes são tramados?”
“A decisão de privilegiar o espaço dos carros ou o estacionamento é uma decisão política”
João Nunes apontou a grande heterogeneidade da avenida entre o Areeiro e o Martim Moniz, constituída “por secções diferentes” – “por exemplo, o troço ao pé da Alameda não tem nada a ver com o troço da Igreja dos Anjos”; essa evidência“deve moderar a intenção de a transformar num objecto único e com as mesmas características”, refere. “É uma avenida onde será difícil encontrar uma estratégia comum e regular em toda a sua extensão. Há também uma parte da avenida que contacta com outras grandes avenidas e outra em que o automóvel já está mais estrangulado.” Ainda assim, refere, que há na Almirante Reis um “potencial muito grande para se criar algo homogéneo na sua diversidade“. João diz que “em Lisboa parece haver uma tendência de homogenia”. “Há cada vez mais uma tentação de transformar a cidade numa coisa de qualidade genérica, onde se perde a capacidade de trabalhar o detalhe, de realçar as características de cada sítio”, clarificou, dando como exemplo a iluminação pública em que se tende para usar o mesmo modelo de candeeiro por toda a cidade.
Para João Nunes, “as paisagens urbanas são os nossos esforços para construirmos o nosso mundo. Costumo dizer que as paisagens urbanas são as faces das comunidades, isto é, os desejos das pessoas exprimem-se muito nas paisagens que vemos”. Mas, “quando encontramos contradições entre as ambições para o futuro do carro nas cidades e a enorme pressão automóvel que vemos nas ruas, é altura de questionarmos o que não foi feito, é altura de ter coragem política para tomar decisões mais drásticas”. O arquitecto não duvida de que “a decisão de privilegiar o espaço dos carros ou o estacionamento é uma decisão política, e é uma decisão da maior importância, porque torna o futuro de um espaço da cidade endereçado numa direcção ou noutra. Não é uma decisão técnica. Mas assumir o privilégio do automóvel terá consequências, que depois terão de ser assumidas”.
“Quando falamos da qualidade de vida nas cidades, temos de falar em primeiro lugar da qualidade ambiental, do ar, do ruído, da possibilidade de estar com crianças na rua. Estas questões não são de especialistas. São de senso comum, bastante elementares para as quais não são precisos especialistas”, referiu. Para João Nunes, a requalificação do espaço público “é o ponto de partida” para a requalificação do comércio e do património. “Não vale a pena pensarmos em qualificar o comercio sem requalificar o espaço publico.” O arquitecto paisagista apontou que pode ser interessante pensar-se neste projecto integrado nos espaços como cafés e outros estabelecimentos comerciais que, não sendo espaços públicos, são “espaços de acessibilidade abertas” e “oportunidades laterais”. “Creio que há um potencial muito grande mesmo na relação do espaço público com as fachadas e os edifícios. Estas cumplicidades funcionam e geralmente geram-se relações muito interessantes. Os sentimentos de abandono geram-se por essas relações não funcionarem.”

Catarina Freitas disse que a resposta às alterações climáticas “depende de todas as opções que forem tomadas para o espaço público”, pelo que o trabalho de “deitar abaixo alguns dos silos” que existem na Câmara e de colocar diferentes departamentos a falar é positiva. “Se quisermos promover a regulação climática no eixo da Almirante Reis, precisamos que esse objectivo seja consagrado nos usos dos 25 metros de perfil transversal da avenida, se vamos ter mais modos suaves em detrimento de carros, se vamos ter mais árvores… Estamos dependentes disso se quisermos promover o bem estar e qualidade de vida às pessoas que vivem e circulam nessa avenida”, apontou a Directora Municipal do Ambiente. Catarina deixou ainda um diagnóstico: a Almirante Reis tem 254 árvores nos seus 2,8 km, das quais 226 estão no eixo central. “Ninguém caminha a pé no eixo central. Temos pessoas a caminhar junto às fachadas sem protecção ou com muito pouca protecção arbórea.”
“Se fizermos um bom espaço público, o capital estrangeiro compra tudo e os preços aumentam”
Mário Alves começou por elogiar a realização da conferência. “Acho que estes momentos são importantes para contarmos histórias uns aos outros e, quando o fazemos, somos políticos. A mobilidade é um problema político com soluções políticas, o espaço público é político. Quando falo de político não é do executivo que está lá, mas das conversas que temos, em que todos queremos as nossas partes – peões, cargas e descargas, ciclistas, automobilistas – e em que vamos ter de falar para chegar a consensos e uma definição da avenida”, elaborou. Mário não tem dúvidas de que “a Almirante Reis dependerá do que queremos para a Baixa e, se queremos que a Baixa seja Património da Humanidade, vamos ter de restringir os automóveis. A dificuldade está no como e na criação desses consensos”.
Abordando as questões da pedonalidade, Mário Alves apontou que a linearidade da avenida “aborrece os peões”, pois “sentimos mais tempo quando vemos o fim da avenida ao fundo” e “o segredo para desconstruir essa monotonia poderá estar nas ligações transversais da avenida”. “Esta invenção das zebras, das passadeiras, foram uma forma de a indústria automóvel mecanizar os movimentos pedonais. Até aos anos 1920, 1930, as pessoas atravessavam a rua em qualquer lugar. Se calhar temos de desmecanizar esses atravessamentos”, atirou o especialista, sugerindo zonas de uso misto ou de coexistência nos cruzamentos. Outro ponto levantado por Mário prendeu-se com a velocidade. Defensor activo dos 30 km/h como padrão das cidades – com sinalização dos locais onde se poderia exceder esse limite e que seriam excepções –, o consultor disse que os 30 km/h são “fundamentais para o conforto e segurança dos peões, e para diminuir os atropelamentos”. “Podemos notar que os pais, quando vão com uma criança numa avenida a 50 km/h, levam-na do lado das fachadas com medo e não lhe largam a mão”, contou, referindo a importância de trabalhar não só a segurança mas também a autonomia das crianças e jovens no espaço público.
Mário disse que a diminuição da velocidade é também uma forma de aumentar espaço nas estradas, uma vez que “um carro a 50 km/h ocupa muito mais espaço que um carro a 30”, pois é necessário considerar uma maior distância de segurança entre veículos a maior velocidade. “Se calhar, podemos ir a esta questão buscar algum espaço.” O especialista levantou ainda a questão das cargas e descargas, “referindo que o valor de uma carga e descarga é 10 vezes superior ao de um carro que anda para aí na cidade”. “As cargas e descargas têm um valor fundamental para a cidade e, por isso, têm de ter um grau de prioridade maior”, referiu, defendendo a melhoria das condições para esta actividade e a criação de um regulamento. “Lisboa não tem um regulamento de cargas e descargas há décadas.” No final, deixou um alerta: “Também temos de ter atenção que, se fizermos um bom espaço público, o capital estrangeiro depois compra tudo e os preços aumentam. Não se pode pensar só no espaço público. Tem de se pensar nas outras questões.”
A plateia contou com cerca de uma centena de pessoas, num auditório quase cheio. Uma parte da audiência consistia em técnicos da própria Câmara de Lisboa, de diferentes direcções e departamentos. O público teve a oportunidade de intervir e de colocar questões em duas rondas. Infelizmente, como é prática em iniciativas camarárias, não existiu qualquer transmissão online da conferência, o que poderia ter permitido expandir a audiência do evento e acolher mais participação. “Espero que continuem connosco e que continuem a participar neste trabalho”, referiu Joana Almeida, na despedida do encontro. A Vereadora do Urbanismo deixou um repto para que essa participação seja “positiva”: “Pensemos em soluções e em como podemos mudar as coisas, mais do que apontar problemas.” O calendário do processo participativo sobre a Almirante Reis conta com várias actividades, que podem ser conhecidas aqui – incluindo um inquérito online que pode ser preenchido aqui.