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Carlos Moreno e a cidade dos 15 minutos: “A chave contra a gentrificação? O bem comum”

Carlos Moreno colocou-nos à frente dos olhos uma ideia que, não sendo propriamente nova, foi comunicada de uma forma tão simples que rapidamente se tornou um bom soundbite político: a “cidade dos 15 minutos”.

Carlos Moreno (fotografia de Thomas Baltes/DR)

O vídeo de pouco mais de sete minutos que Carlos Moreno fez para o universo TED em 2020 percorreu os feeds de especialistas – e também entusiastas – de urbanismo e mobilidade. O ano era crítico: a pandemia fez-nos olhar para as cidades de outra forma e valorizar a proximidade, o nosso bairro, o pequeno comércio e os espaços verdes. E Moreno colocou-nos à frente dos olhos uma ideia que, não sendo propriamente nova, foi comunicada de uma forma tão simples que rapidamente se tornou um bom soundbite político: a “cidade dos 15 minutos”, uma cidade onde encontramos tudo aquilo de que precisamos a 15 minutos a pé ou de bicicleta.

A ideia da “cidade dos 15 minutos” – publicada entretanto em artigo científico – foi trabalhada para as eleições autárquicas de Junho de 2020, que recolocaram a Anne Hidalgo à frente da Câmara de Paris. Esta visão de uma cidade de bairros multifuncionais foi a grande visão que a candidata socialista, apoiada pelos comunistas e outros partidos, e pelos verdes na segunda volta, apresentou aos eleitores parisienses, numas eleições que, ainda assim, devido à pandemia de Covid-19 tiveram menor afluência. A reeleição de Hidalgo foi uma vitória para o conceito, polémico, claro, por encerrar uma disrupção vincada em relação ao paradigma existente. Mas a “cidade dos 15 minutos” atravessou fronteiras e foi também ele explorado nas últimas eleições em Lisboa, pelo então candidato e actual Presidente da Câmara, Carlos Moedas. Simultaneamente tornou-se uma buzzword de muitas conferências, posts de LinkedIn, artigos na imprensa, sites de empresas, etc.

Nasceu na Colômbia mas é em Paris que fez e faz a sua vida. Carlos Moreno é professor na Universidade de Sorbonne, mas divide o seu tempo entre conferências e consultorias em várias cidades; foi e continua a ser conselheiro de Hidalgo e da Câmara de Paris. Tem, por isso, uma agenda deveras preenchida e foi entre um voo e outro que conseguiu ceder pouco mais que 30 minutos ao Shifter/Lisboa Para Pessoas, através de videochamada. Houve tempo para três perguntas.

A cidade dos 15 minutos é um conceito que é simples e fácil de perceber, mas encerra em si alguma complexidade. A nossa primeira pergunta é uma que lhe fazem muitas vezes: consegue-se este conceito e o do território de 30 minutos?

A cidade de 15 minutos e o território de 30 minutos são um paradigma para transformar a nossa vida urbana e a nossa vida no território numa vida que dá mais importância à acessibilidade a serviços essenciais, num menor perímetro: 15 minutos de zona compacta, de hiper-centros para cidades com alta densidade; e 30 minutos para territórios com densidade média ou baixa. Definimos seis funções essenciais para aceder, a pé ou de bicicleta, nas cidades de 15 minutos ou nos territórios de 30 minutos. Essas seis funções são: viver em boas condições e com densidade orgânica, trabalhar sem movimentos pendulares diários e longos; fazer as compras em distâncias curtas, acesso aos auto-cuidados para obter uma melhor saúde física e mental, aceder a educação e à cultura através de actividades presenciais ou usando tecnologias digitais, e para usufruir espaços públicos, áreas verdes e com água e ar limpo. Consideramos que se tivermos a possibilidade de oferecer acesso relevante a cada uma destas funções, seja por acesso físico ou digital, podemos reduzir as nossas emissões CO2, desenvolver mais a nossa sociabilidade, e fortalecer mais a economia e empregos locais. Ao mesmo tempo, isto é uma visão não só para a cidade de 15 minutos ou território de 30 minutos para mim como indivíduo, mas é uma visão para todo o território. Nesta ideia, queremos transformar o actual urbanismo, baseado em subúrbios nas periferias sem centros locais, oferecendo cidades e territórios policêntricos que usem mais, e numa melhor forma, a infraestrutura existente hoje. O que implica multiuso, para o uso e reuso de diferentes infraestruturas para desenvolver mais serviços locais e “capital social”, usufruir de áreas verdes e desenvolver mais actividades sociais de forma mais intensiva que nas cidades de hoje.

Carlos Moreno propõe vários centros em redor dos quais as pessoas consigam aceder a diferentes funções sociais; o professor propõe, assim, trocar a mobilidade pela proximidade, para que deixemos de percorrer grandes distâncias diariamente e em vez disso possamos fazer a nossa vida no bairro, sem necessidade de automóvel, deslocarmo-nos a pé ou de bicicleta – e quando precisarmos de ir mais longe, que o possamos fazer de transportes públicos e num raio de 30 minutos. Moreno questiona, aliás, os commutes diários aos quais as pessoas são sujeitas pelo desenho actual de muitas cidades, baseado em zonas monofuncionais como bairros exclusivamente habitacionais, zonas comerciais e centros empresariais, e propõe também a multiplicação dos usos para o mesmo espaço – uma escola pode, ao final do dia ou no fim-de-semana, ser um ponto de encontro e reunião da população para actividades culturais, por exemplo.

Este artigo faz parte da nossa revista.

O Lisboa Para Pessoas e o Shifter apresentam uma revista em papel sobre cidades, urbanismo e a organização do espaço no geral. Uma publicação especial que nos convida a reflectir sobre este tema com ensaios, entrevistas, reportagens e diferentes perspectivas e formas de pensar.​

A visão de “cidade dos 15 minutos” de Moreno foi apresentada na COP21, o encontro das Nações Unidas sobre as alterações climáticas, realizado em 2015, e que deu origem ao acordo climático de Paris e ganhou especial força com a pandemia de Covid-19. Tanto que esta ideia, que contraria o paradigma de cidade fragmentada, onde muitas actividades dependem de longas deslocações de carro ou mesmo de transporte público, foi absorvida também pela rede de cidades C40 Cities, uma união que integra Paris e Lisboa, por exemplo, que em Julho de 2020 anexou a “cidade dos 15 minutos” ao seu programa para uma recuperação justa e sustentável.

A cidade dos 15 minutos pode ser uma ideia só para algumas cidades? Acha que este é um conceito one-size-fits-all ou é provável que seja preciso criar outros conceitos?

A origem do conceito surge logo a seguir à COP21, há seis anos, como resposta às alterações climáticas – foi uma rampa de lançamento desta ideia. Nesse momento, várias pessoas disseram que era uma boa ideia mas ao mesmo tempo uma utopia, porque é impossível trabalhar perto de casa, visto que  precisamos, em qualquer cenário, de ter um emprego. E mesmo se for necessário viajar uma hora ou mais, ao menos existe a possibilidade de temos um trabalho. Durante vários anos, esta ideia era apenas um conceito académico, da minha equipa na Universidade de Sorbonne, até ao momento em que a Presidente da Câmara de Paris, Anne Hidalgo, em 2019, abraçou este conceito, ao propor em Paris para a nova legislatura, na sua campanha eleitoral, e para transformar radicalmente a nossa cidade, neste caso Paris. E nós apresentamos este conceito aos parisienses em Fevereiro de 2020, um mês antes da crise da pandemia. Só depois de a pandemia de Covid-19 ter começado na Europa, esta ideia tornou-se muito popular, porque nas nossas cidades durante o confinamento a cidade de 15 minutos e o território de 30 minutos eram a chave para viver diferente porque durante o Covid-19 precisávamos de reduzir os nossos movimentos, precisamos de viver na proximidades [de bens e serviços essenciais], precisamos de trabalhar usando tecnologias digitais, precisamos de desenvolver novos trabalhos para continuar produtivos durante os confinamentos, e precisamos de ter mais e mais lojas nas proximidades. E em várias cidades à volta do mundo, independentemente do seu tamanho, e dos respectivos contextos económicos, culturais e sociais, muitos líderes locais decidiram implementar este conceito. E hoje este conceito é uma trajectória, é um caminho, não é uma varinha mágica para mudar, em poucos meses, décadas de urbanismo segregado e transvisional. Contudo, grandes cidades como Milão, Roma, Paris, outras cidades em França, Dublin na Irlanda, e Montreal [Canadá] na América do Norte, e cidades da América do Sul como Bogotá e Buenos Aires, e também na Ásia em cidades como Busan e Seul [ambas na Coreia do Sul], conseguimos encontrar cidades médias e cidades pequenas interessadas, ou mesmo territórios rurais. O conceito não é só relacionado com o tamanho das cidades, porque a verdadeira base do conceito é o acesso às seis funções urbanas – viver, trabalhar, consumir, aceder a cuidados, educar e desfrutar – e isso não é relacionado com o tamanho das cidades. Precisamos de desenvolver – mesmo que tenhamos cidades pequenas ou médias, e zonas rurais – mais e mais serviços de proximidade. A cidade de 15 minutos não é um dogma, não se faz através de um mero “copy-paste”. É um plano, uma trajetória baseada em orientações metodológicas para implementar estes diferentes serviços em variadas topologias, baseado neste conceito de locais policêntricos. Acho que é muito importante perceber isso. Não temos de ter um modelo específico, precisamos antes de tudo de identificar os diferentes recursos para implementar estes seis serviços essenciais, para implementar a transformação dos usos dos edifícios para fortalecer o seu multiuso, e para desenvolver mais trabalhos locais; e ainda mais importante, socializar os espaços com a transformação dos espaços públicos, e para ter os espaços públicos mais resilientes face as às alterações climáticas.

O conceito que está a ser aplicado em Paris (ilustração de Micaël, cortesia de Câmara de Paris)

A “cidade dos 15 minutos” não é necessariamente uma utopia. Se consegues caminhar ou pedalar para o trabalho em 15 minutos e aceder a supermercados, cafés, escolas, parques verdes e outras infraestruturas essenciais nesse espaço temporal, então é provável que vivas num “bairro de 15 minutos”. Em Lisboa, uma análise de dados realizada recentemente mostrou que a freguesia de Alvalade é a que mais está preparada para este conceito, com diversas escolas e universidades por perto, quatro hospitais e clínica, quatro estações de metro, uma boa cobertura de ciclovias segregadas, cinco espaços de cowork e diversos espaços verdes próximos. O bairro de Alvalade teve um planeamento cuidado, com influência do arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles. Também em Telheiras – a parte antiga – houve uma preocupação em assegurar serviços ao pé da habitação, criando quarteirões multifacetados. E há cidades pelo mundo fora a experimentar com a ideia de proximidade há largos anos como Ottawa (Canadá), Copenhaga (Dinamarca), Melbourne (Austrália) ou Portland (EUA), esta com os seus “bairros de 20 minutos” iniciados no final dos anos 2000.

Dentro da questão das desigualdades, uma crítica possível é que se gere uma dinâmica de pessoas mais pobres na periferia, mais ricas no centro. Como se pode contrariar esta tendência e a tendência de uniformização social que pode surgir?

Precisamos de implementar este conceito não para fortalecer interesses privados, porque, infelizmente, precisamos de evitar o processo de gentrificação nas cidades. Vivemos hoje em cidades com grandes desigualdades. Temos hoje cidades totalmente fragmentadas, segmentadas: com os seus centros históricos, centros de negócios, zonas culturais, a classe trabalhadora vive nos subúrbios, por exemplo, e áreas ricas localizadas noutra parte da cidade. E isto é um facto hoje. Com o conceito de cidade de 15 minutos, queremos reequilibrar a cidade para desenvolver um uso mais diversificado do espaço. Isto, claro, para funções multiuso e também uma maior diversidade social. Qual é a chave para lutar contra a gentrificação? A chave está num termo muito importante, o bem comum. O bem comum é uma política urbana realmente ambiciosa para ser implementada com a cidade dos 15 minutos. O que é o bem comum? O bem comum é a implementação urbana do conceito proposto pelo Prémio Nobel Elinor Ostrom em 2009. O bem comum urbano é um conjunto de recursos materiais para serem consumidos numa economia de mercado, mas fora de uma lógica especulativa. O bem comum urbano é uma tendência muito importante para combater a desigualdade e para propor uma cidade para todos, e para propor novas ferramentas financeiras administrativas que tornem a cidade mais habitável. Um exemplo concreto. O primeiro é a habitação social. Uma das mais significantes problemas urbanos é o acesso a habitação social; este é uma das razões para a segmentação nas cidades entre os bairros com âncoras urbanas, melhores e mais serviços e maiores rendimentos e receitas fiscais, e o com um alto preço do metro quadrado. Precisamos de implementar não só habitação social para viver dentro de um edifício, temos de complementar a habitação social com outras actividades, culturais, educacionais, áreas verdes, centros de consumo locais. Temos de recriar novas áreas para viver. E a habitação social, não é possível continuar a ser desenvolvida apenas através da segregação, tipo de guetos, só com uma categoria social numa área. Temos de misturar habitação social com preços regulados e famílias com maiores rendimentos. Isto é hoje não existe de todo. O segundo exemplo são lojas locais. Hoje em vários bairros, as lojas locais estão interligadas com os rendimentos das pessoas que vivem naquelas áreas. Temos de gerir o espaço de forma diferente. Para implementar diferentes lojas, que atendam a diferentes interesses como livrarias, pontos de reciclagem, salas de exposições, espaços culturais, e para isso precisamos de criar propriedades comerciais subsidiadas pela cidade para conseguirmos gerir diferentes localizações e alugadas com preços abaixo do mercado especulativo. Desta forma, podemos garantir para artesãos, artistas, localizações com baixos preços e outros serviços como pontos de reciclagem. E neste sentido é melhor termos este tipo de lojas, livrarias, artistas, pontos de reciclagem, do que ter as coisas luxuosas. Isto é o caso em Paris, temos espaços comerciais para desenvolver este equilíbrio. Temos de transformar edifícios apenas dedicados a escritórios e a atividades corporativas, e precisamos de transformar esses escritórios em casas com atividades culturais. Temos, de facto, de gerar muitas intersecções. Uma cidade de 15 minutos real é uma cidade com muitas interseções com mistura de pessoas, categorias sociais, funções. Isto não é possível em três semanas, claro. Isto é uma trajectória para repensar e reimplantar recursos, infraestrutura e serviços, para desenvolver estas misturas. Mas em realidade se queremos um discurso sobre desigualdades, a realidade nas cidades hoje é uma explosão de desigualdades e temos de trabalhar para reduzir isso.

Este artigo faz parte da nossa revista.

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Mário Rui André

Jornalista e editor do Lisboa Para Pessoas, jornal local sobre Lisboa e a área metropolitana. Tenho 30 anos de vida na capital e 10 anos de experiência em comunicação social, tendo co-fundado o Shifter, uma revista independente e de referência na área da tecnologia. Estudei publicidade e marketing na Escola Superior de Comunicação Social e, mais tarde, jornalismo e comunicação na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Escrevo sobre Lisboa e sobre cidades, mobilidade e urbanismo no geral. Acompanho uma visão mais humana do espaço público, e sou pela cidadania e pela transparência da parte dos órgãos governativos.Ver Posts de autor

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