Ao contrário de outras cidades, Lisboa tem criado espaços para velocípedes partilhados em espaços pedonais, ao mesmo tempo que tenta resolver os conflitos existentes com a ocupação de passeios por estas bicicletas e trotinetas sem doca.

Vários novos locais para estacionamento de trotinetas e bicicletas partilhadas sem doca foram criados nos últimos meses em Lisboa em passeios. Apesar de não estarem ainda activos nas aplicações de mobilidade suave partilhada (Bolt, Lime, Bird, etc), alguns desses novos pontos de estacionamento, criados pela Câmara de Lisboa, foram colocados no meio de zonas pedonais de circulação, violando as regras do próprio município.
No eixo ribeirinho da Avenida 24 de Julho, encontrámos dois exemplos. Numa ampla área pedonal junto à interface de transportes do Cais do Sodré – onde, em 2015, chegavam 35,500 pessoas pessoas de comboio e barco e, em 2017, o número de passageiros anuais no metro era de cerca de 16 milhões –, a autarquia assinalou um local de estacionamento de velocípedes partilhados (também designado de “hotspot”). Quando esse parque for activado nas apps das operadoras privadas, as trotinetas e bicicletas sem doca passarão a bloquear uma linha evidente de circulação e de desejo de peões.

Se esse “hotspot” já será um obstáculo para qualquer pessoa, ainda mais o será para pessoas com mobilidade condicionada, como invisuais. O estacionamento em análise poderia ter sido colocado junto edifício da estação de comboios e à estação GIRA aí existente, ou mesmo instalado no eixo do restante mobiliário urbano (caixotes de lixo, bancos e árvores), de modo a deixar a área principal de circulação desimpedida.
Uma situação idêntica encontramos mais adiante, a chegar a Santos, no passeio largo da Avenida 24 de Julho. Com um estacionamento para velocípedes mesmo ao lado, que foi instalado, aquando da requalificação daquela avenida em 2017, no alinhamento das árvores e de outros obstáculos, a Câmara marcou agora um local de paragem para veículos de mobilidade suave fora dessa linha, ocupando uma zona que seria de passagem de peões. Também ainda inactivo, este “hotspot” poderia ter sido posto no mesmo alinhamento das árvores, da iluminação e do estacionamento existente.


A Câmara de Lisboa começou a criar estes pontos de estacionamento de trotinetas e bicicletas partilhadas sem doca quando, em 2018, autorizou a operação destes veículos na cidade. Depois de uma primeira geração de “hotspots”, alguns deles acabaram por desaparecer, fruto também do desaparecimento dos vinis que os assinalavam. Outros foram convertidos em lugares de estacionamento de bicicletas, com a instalação de sheffields.
Actualmente, os utilizadores de trotinetas e bicicletas partilhadas sem doca só podem parar nesses “hotspots” e nos locais de estacionamento de bicicletas. Por causa do novo acordo com os operadores e da futura regulamentação, a autarquia esteve nos últimos meses a instalar novos sheffields para bicicletas pela cidade, bem como a marcar novos “hotspots”, como os dois que mostramos neste artigo. Todos estes novos locais de estacionamento ocupam zonas pedonais, seguindo a estratégia do executivo de Moedas de não retirar mais lugares de estacionamento automóvel a favor da mobilidade suave. Algumas dessas docas virtuais para trotinetas, ao contrário dos que mostrámos, foram colocados em zonas “mortas” de passeio, junto a outros obstáculos, não impedindo directamente a circulação de peões.
Contra as regras do espaço público

A instalação de “hotspots” no meio do passeio, como vimos entre o Cais do Sodré e Santos, vai contra os regulamentos da própria Câmara de Lisboa. O Manual de Espaço Público, lançado em 2018, é claro: “os percursos pedonais acessíveis devem ter em todo o seu desenvolvimento um canal de circulação contínuo e desimpedido de obstruções”, sendo consideradas obstruções “a iluminação pública, a sinalização vertical, luminosa e informativa, as árvores, as caldeiras e as floreiras sobrelevadas, o mobiliário e equipamento urbano, e todos os outros elementos que possam bloquear ou prejudicar a circulação das pessoas”. Recomenda-se, por isso, “como boa prática” que essas infraestruturas necessárias sejam concentradas “numa única faixa”, “libertando assim a restante área do passeio de quaisquer obstáculos”.
Também o Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa, publicado em 2013 pelo município, não deixa margem para dúvidas: “A colocação dos obstáculos deve respeitar um alinhamento, de preferência rectilíneo, e não pode prejudicar nem a continuidade nem a coerência do canal de circulação pedonal (o peão não deve ser obrigado a fazer um ‘slalom’).”
Mário Alves, secretário-geral da Federação Internacional de Peões e um activo defensor dos direitos de quem circula a pé, está preocupado com a localização destes novos pontos para bicicletas e trotinetas partilhadas. “A ocupação selvática dos passeios é um problema inaceitável que a cidade de Lisboa terá que resolver e nunca agravar – seja pelos carros, seja mais recentemente por trotinetas partilhadas”, perspectiva. “Criar hubs de micromobilidade no passeio é oficializar e agravar uma situação desde já muito negativa para os peões. Fomenta inclusivamente a ideia errada que o estacionamento e circulação das trotinetes é no passeio.” Para o especialista, “colocar ainda mais ‘tralha’ no espaço já exíguo dos passeios é um incómodo para todos e um ataque injusto aos mais vulneráveis”.
Ao contrário de outras cidades, Lisboa tem criado espaços para velocípedes partilhados em espaços pedonais, ao mesmo tempo que tenta resolver os conflitos existentes com a ocupação de passeios por estas bicicletas e trotinetas sem doca. No Porto, os designados “pontos de partilha” para este tipo de veículos têm sido maioritariamente instalados em lugares de estacionamento automóvel, o que tem permitido circunscrever os locais de estacionamento por design (as trotinetas ficam rodeadas por lancis, estrada e outros carros) e manter bem separado o que é pedonal do que não é.