Opinião.
A Câmara de Lisboa só tem uma coisa a fazer: ouvir realmente as pessoas e deixar a Ponte Ciclopedonal do Trancão como está, sem nome.

A realização da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) em Lisboa levantou várias questões (pertinentes) sobre a relação entre o Estado laico e a Igreja, em particular, a Igreja Católica. E essa discussão, nem sempre realizada da forma mais substanciada, decorreu num contexto que não pode ser ignorado: os abusos sexuais no seio do clero que terão vitimado pelo menos 4815 menores. Em cima disso, encontramos a circunstância dos milhões de euros que Governo e autarquias colocaram no evento, perante todos os contratos realizados por ajuste directo (93% dos total de contratos) e perante também a proximidade dos políticos.
Se Portugal não pode, de um momento para o outro, ignorar todo o seu passado histórico ligado à Igreja Católica, nem tão pouco o fundamental papel social que esta ainda tem junto de inúmeras comunidades, pode, no entanto, gerir melhor a laicidade associada ao sistema democrático. E, talvez, precisemos de um debate sério e maduro sobre esse tema, deixando de lado todas as polémicas efémeras em torno da Jornada Mundial da Juventude. E, para esse debate poder ter espaço para fruir, é preciso não gerarmos mais conflitos supérfluos.
Neste contexto, qualquer profissional da comunicação ou assessor político sensato diria que dar o nome de um alto ex-líder da Igreja Católica em Portugal a uma infraestrutura central da Jornada Mundial da Juventude seria uma má ideia. Principalmente quando esse responsável está indirectamente implicado no caso dos abusos, ocultando das autoridades uma denúncia. Mas foi na passada sexta-feira, 11 de Agosto, que a Câmara de Lisboa anunciou, através de um comunicado enviado à comunicação social, que a Ponte Ciclopedonal do Trancão passaria a designar-se Ponte Cardeal D. Manuel Clemente, “uma homenagem ao 17º Patriarca de Lisboa, após a sua renúncia ao cargo por ter completado 75 anos de idade”. Como reconhece o município, D. Manuel Clemente foi, “nos 10 anos de mandato enquanto líder da Igreja de Lisboa, (…) o grande impulsionador da Jornada Mundial da Juventude”. Por seu lado, o Presidente da Câmara, Carlos Moedas, através da mesma nota, afirma que “os lisboetas estão profundamente agradecidos ao Cardeal D. Manuel Clemente pelo seu contributo para um momento marcante para a cidade, que ficará gravado na história de Lisboa e nos corações de todos os que o viveram. É uma justa homenagem da cidade a um homem que deu tanto a Lisboa ao longo da sua vida”. Mas será mesmo assim?
A obra já estava prevista antes de se saber da realização da Jornada Mundial da Juventude em Portugal, mas acabou por ser integrada na infraestrutura do evento, ligando o recinto de Lisboa ao de Loures. Feita maioritariamente de madeira e aço e com 560 metros de extensão, a Ponte Ciclopedonal do Trancão estabelece uma ligação inexistente entre os concelhos de Lisboa e Loures, permitindo o atravessamento a pé ou de bicicleta do rio Trancão junto à foz com o Tejo e contribuindo, dessa forma, para uma coesão intermunicipal. A ponte vai permitir um corredor pedonal e ciclável contínuo entre Vila Franca de Xira e Cascais, ligando a rede de caminhos e de ciclovias de cada município. O concurso público para a infraestrutura foi lançado pela EMEL em 2020, a obra arrancou em Setembro de 2021, tendo a sua conclusão derrapado do final de 2022 para Julho deste ano. O investimento total foi de 2,97 milhões de euros, com comparticipação de 448 mil euros de fundos comunitários.
Não deixa de ser surpreendente a decisão e o anúncio da Câmara de Lisboa. Uma Câmara que diz ouvir as pessoas não ouviu, desta vez, as pessoas. Não se pedia a realização de um processo participativo para decidir o nome da ponte – tal não faz sentido dada a pouca importância relativa da mesma no contexto global da cidade (iríamos passar a perguntar às pessoas que nomes dar a todas as ruas?) –; mas pedia-se que Carlos Moedas soubesse ler a sala, que tivesse a capacidade de antecipar a vontade geral da população sem lhe perguntar. Moedas, ou quem o assessorou, falhou… duplamente. Na sexta-feira, logo após a Câmara de Lisboa, ter tornado público nas suas redes sociais a toponímia decidida para a ponte as reações negativas não tardaram a surgir. Na rede social X (antigo Twitter), chegaram a existir comentários ocultados e contas bloqueadas. E durante este fim-de-semana, em apenas dois dias, uma petição a pedir um retrocesso na decisão ultrapassou as mais de 15 000 assinaturas. A primeira peticionária foi Telma Tavares, uma das impulsionadoras dos cartazes a lembrar as vítimas dos abusos que foram colocados em Lisboa, Loures e Oeiras.
O texto da petição reforça o número de vítimas estimado, aponta “uma suposta laicidade do Estado”, e refere que D. Manuel Clemente é não só “um dos nomes que está sob suspeita de ter encoberto pelo menos um crime de abuso sexual de menores por parte de um sacerdote”, como também “o protagonista da mais curta liderança de um Patriarca de Lisboa em mais de um século”. Dirigindo-se ao Presidente da Câmara de Lisboa, os peticionários entendem que “a homenagem que V. Exa. pretende levar a cabo pode ser vista até como uma ofensa e/ou desrespeito pelas mais de 4800 vítimas de abuso sexual por parte da Igreja em Portugal” e exigem “que a Câmara Municipal de Lisboa reverta de imediato o processo noticiado no dia 11 de Agosto e que de resto já levantou inúmeras vozes contrárias em diversas redes sociais e não só. Respeitem-se, não só os munícipes de Lisboa, mas também todos aqueles que não pactuam nem tentam esconder os crimes hediondos de que todos tivemos conhecimento e que abalaram de forma ímpar a nossa sociedade”.
A Câmara de Lisboa quereria fazer uma homenagem justa o Patriarca que serviu a cidade durante uma década, e que trabalhou para a concretização de um evento que, diga-se o que se disser, prestigiou Lisboa. Mas a Jornada e os milhões gastos pelo Estado estão ainda muito frescos na memória colectiva, a situação dos abusos sexuais na Igreja Católica está ainda muito mal resolvida. E não só uma homenagem a D. Manuel Clemente num local tão emblemático da JMJ é precipitada, como associada ainda mais as infraestruturas do Parque Tejo-Trancão ao evento e a todo este difícil contexto que se vive no clero português não faz sentido – pelo menos desta forma. A Câmara de Lisboa só tem uma coisa a fazer: ouvir realmente as pessoas e deixar a Ponte Ciclopedonal do Trancão como está, sem toponímia ou, pelo menos, sem o nome de D. Manuel Clemente.
Não parece necessário perpectuar ainda mais a memória da Jornada Mundial da Juventude naquele lugar e seria mais proveitoso procurar agora integrar as novas infraestruturas, concluídas no contexto de um grande evento católico, na cidade que se diz laica e aberta – isto faz ainda mais sentido se quisermos utilizar aquela ponte e o novo parque ribeirinho, tanto no lado de Loures como no lado de Lisboa, para outros eventos que não religiosos (estamos mesmo a imaginar uma Semana Académica de Lisboa referir-se ao seu recinto como Parque Papa Francisco e à entrada como Ponte D. Manuel Clemente?). Sim, neste sentido, baptizar de Parque Papa Francisco o futuro parque verde que ocupará o recinto onde se realizou a JMJ (pelo menos o lado de Loures) também não faz sentido. Um Estado laico não é um Estado indiferente às religiões das pessoas, mas a ponte ciclopedonal do Trancão não precisa de um nome especial, nem tão pouco o Parque Tejo-Trancão precisa de ter outro nome. As suas designações podem ser Ponte Ciclopedonal do Trancão e Parque Tejo-Trancão, e viveremos todos em paz com isso. Sem mais polémicas. Poderíamos, em vez disso, pensar em criar um memorial às vítimas naquele lugar.
A toponímia em Lisboa
Termina-se este artigo com algumas pequenas curiosidades sobre como funciona a toponímia em Lisboa. Esta é decidida pela Comissão Municipal de Toponímia, que é nomeada directamente pelo Presidente da Câmara em cada mandato autárquico. Esta Comissão tem como funções, entre outras, propor a atribuição de topónimos da cidade, emitir pareceres sobre a atribuição de topónimos, propor o conteúdo da legenda a inscrever nas placas toponímicas dos antropónimos e dos topónimos, e propor a localização dos topónimos.
A Comissão Municipal da Toponímia é composta pelo Vereador da Cultura, que tem esta pasta, por alguns directores municipais, por um representante da Gabinete de Estudos Olisiponenses, por dois académicos da Universidade de Lisboa e da Universidade Nova de Lisboa, por um representante da Sociedade Portuguesa de Autores e por outro do Grupo Amigos de Lisboa, por “três cidadãos de reconhecido mérito pelos seus conhecimentos e estudos sobre a Cidade de Lisboa, designados pelo Presidente da Câmara”, e ainda por um representante das Juntas de Freguesia. A actual composição desta Comissão é desde as eleições de 2021 a seguinte: Diogo Moura, Carlos Moura Carvalho, Helena Caria, Mónica Ribeiro, Ana Homem de Melo, Eduardo Ribeiro Ferreira, Bernardo de Campos Miranda, Nuno Carinhas, Maria Salete Salvado, João Amaral, Isabel Mota, Cristina Castel-Branco, Fernando Ribeiro Rosa e José Videira.
De acordo com a Postura Municipal Sobre Toponímia, documento que regula esta matéria, a Comissão Municipal de Toponímia deve considerar “personalidades com relevância para a cidade”, para o país ou “de relevo mundial inquestionável”, “efemérides relevantes”, “movimentos culturais, científicos e políticos com expressão significativa”, “instituições públicas e privadas”, “países e cidades estrangeiros com laços significativos com a cidade de Lisboa” ou ainda “sítios, lugares e conjuntos edificados representativos da memória da cidade”. Nas propostas de atribuição de topónimos, a Comissão deve olhar para alguns critérios, como a não alteração dos topónimos já existentes, a atribuição decorrer cinco anos da morte da personalidade (“podendo esta orientação, a título muito excepcional e devidamente fundamentado, não ser respeitada”) ou o privilégio por individualidades ou efemérides de maior universalidade. A toponímia da cidade de Lisboa é bastante rica e diversificada; podes consultar o catálogo de topónimos aqui.