Depois do chumbo da Carta Municipal de Habitação antes do Verão, a Vereadora Filipa Roseta e os partidos com assento na Câmara de Lisboa negociaram diferentes alterações, permitindo a aprovação, agora, daquele que é o grande instrumento estratégico do município para intervir na habitação nos próximos 10 anos.
A Câmara de Lisboa deliberou, em reunião do Executivo no passado dia 11 de Outubro, aprovar e submeter a consulta pública a Carta Municipal de Habitação. Depois do chumbo do documento antes do Verão, motivado por um desacordo da oposição em relação a parte do conteúdo, a Vereadora da Habitação, Filipa Roseta, reuniu com as diversas forças políticas que compõem o Executivo Municipal e foram encontrados consensos, principalmente com o PS.
A Carta Municipal de Habitação de Lisboa é o grande instrumento estratégico de intervenção municipal no domínio da habitação; tem vigência de dez anos e representa, nas diferentes medidas e propostas, um esforço de investimento de 918 milhões de euros. Para Carlos Moedas, Presidente da Câmara, “foi finalmente possível aprovar um documento tão importante para o futuro da cidade”. “Tudo temos feito para procurar responder da melhor forma àquele que é o maior desafio que enfrentamos neste momento: o da habitação. Precisamos de medidas muito concretas, diversificadas e realistas, e é isso que estamos a fazer desde o início do mandato. Sem ideologias ou promessas, mas sim com concretizações e políticas que permitam responder a este complexo desafio“, salienta o autarca.
O que é uma Carta Municipal de Habitação?
A Carta Municipal de Habitação é um documento que os municípios estão obrigados a ter à luz da Lei de Bases da Habitação, aprovada em 2019. A Carta é, no fundo, o grande documento estratégico que reúne um diagnóstico da situação habitacional de um concelho e define um conjunto de medidas para resolver esses problemas. O documento tem de ser aprovado em reunião de Câmara e depois na Assembleia Municipal, mas, antes de ir aos deputados municipais, tem de passar por um processo de consulta pública. Lê mais aqui.
A Carta define uma estratégia para executar no período 2023-2033, tendo em conta, por um lado, as necessidades e as carências habitacionais, e por outro os recursos disponíveis. No geral, este instrumento apresenta os mesmos três objetivos fundamentais – “erradicar a pobreza”; “fixar famílias”; “Lisboa mais sustentável” – e elenca mais de 30 medidas para a sua concretização. No detalhe, a versão agora aprovada da Carta apresenta várias diferenças em relação à versão que foi chumbada antes do Verão, mais precisamente a 28 de Junho, em reunião de Câmara. O novo documento resulta das negociações entre a Vereadora Filipa Roseta e os partidos, em especial o PS, com quem a equipa de Moedas teria mesmo de chegar a acordo para poder ter uma maioria favorável na votação.
Por exemplo, foi introduzida a medida de subsídio ao arrendamento jovem que o PS tinha aprovado com o apoio da esquerda, e retirada a isenção do IMT, proposta de Moedas chumbada duas vezes. Foram também feitas várias alterações relacionadas com o Programa Renda Acessível, um tema particularmente sensível para os socialistas.
No entanto, a reunião deste dia 11 de Outubro – onde a nova versão da Carta, com as alterações da referida ronda negocial, foi aprovada – trouxe um conjunto de novas alterações dos vários partidos; por isso, o documento terá de passar por uma nova fase de edição antes de ser colocado de a discussão ser aberta a toda a população interessada.
O que há de novo?
A versão da Carta Municipal de Habitação que chegou a reunião de Câmara na passada semana tem aproximadamente mais 20 páginas que a versão original de Junho, fruto de várias alterações que o PS negociou, em várias reuniões, com a Vereadora da Habitação e as restantes forças políticas. As principais alterações dos socialistas foram três:
- foram feitas alterações no planeamento do Programa de Renda Acessível (PRA). Assim, o município vai construir, sozinho, habitação de Renda Acessível também para famílias com rendimentos intermédios, não apenas para famílias com rendimentos baixos. A proposta anterior dividia o PRA em dois: por um lado, a construção municipal seria apenas para Renda Acessível destinada a famílias com rendimentos mais baixos; por outro, a construção de habitação por privados (em parceria com o município) seria exclusivamente para famílias de classe média. O PS também quis fixar na Carta uma lista e respectivo calendário dos projectos de Renda Acessível já previstos, a saber: o do Restelo (“procedimento de loteamento em análise e deliberação a propor em Câmara até ao final do presente ano”); as operações da Rua de São Lázaro e da Rua Gomes Freire (“expectativa de conclusão das obras até 2026”); os projectos de Benfica, Parque das Nações, Olaias e Alto da Ajuda (“revisão o modelo financeiro e contratual, prevendo-se o relançamento em 2023”); e o loteamento do Casal do Pinto, na freguesia do Beato, “cujas obras de urbanização decorrentes de loteamento a aprovar estão previstas em orçamento municipal”;
- foi introduzida na Carta o programa de apoio ao arrendamento jovem que o PS tinha aprovado em Novembro de 2022, em alternativa à proposta de Moedas de isentar os jovens até aos 35 anos de pagar IMT na compra de uma casa até 250 mil euros. A proposta socialista, então discutida, sugere dar um subsídio de até 400 euros (300 se for uma pessoa sozinha) aos jovens inquilinos até aos 35 anos, se o valor que pagam de renda for superior a 30% do seu rendimento líquido – a medida custaria 4,5 milhões de euros ao município por ano, mais ou menos o mesmo que a proposta do IMT de Moedas. Esta ideia está agora redigida na Carta desta forma: “lançamento de concursos extraordinários de subsídios ao arrendamento acessível destinados a jovens”, fica agora do lado da Câmara concretizar a medida dentro do já existente Subsídio Municipal ao Arrendamento. Ao mesmo tempo, a proposta da isenção do IMT foi removida da Carta;
- a Carta passou a contar com um diagnóstico das carências habitacionais – todo um novo capítulo em que se fala da evolução das necessidades de habitação na cidade de Lisboa. Neste capítulo, há uma conclusão importante: “a avaliação (…) mais adequada para quantificação de carência habitacional, e da correspondente necessidade de expansão, relaciona-se com a procura manifesta de habitação acessível, pela população que quer, e tem direito a morar na cidade, mas que se vê impedida pela incapacidade de aceder a habitação no mercado”. Ou seja, a carência habitacional corresponde ao número de famílias que se candidataram aos programas municipais de habitação acessível, como o PRA, sem que tenham encontrado resposta – ou seja, 10 mil famílias.
O PS também conseguiu incorporar na Carta Municipal de Habitação estas : 1) o exercício do direito legal de preferência pelo município para adquirir imóveis que possam reforçar o parque municipal de habitação, e assim introduzir celeridade na capacidade de disponibilizar casas de acordo com as necessidades e os requisitos identificados; 2) projectos-piloto de construção modular e co-habitação para estudantes universitários e profissionais deslocados de entidades públicas; e 3) através da declaração pelo município de que tem uma situação de carência habitacional, poderá condicionar as operações urbanísticas privadas para cumprir as metas de Renda Acessível definidas na Carta e fazer o mesmo para o Alojamento Local, condicionando a emissão de novas licenças.
E o que mudou “à última hora”?
Apesar das reuniões privadas entre a Vereadora Filipa Roseta e os partidos ao longo do Verão, as várias forças políticas ainda apresentaram, reunião de Câmara no passado dia 11 de Outubro, propostas de alteração à versão da Carta Municipal de Habitação. O PS, por exemplo, aproveitou o momento para aperfeiçoar a regulação do Alojamento Local (AL).
A Carta, na sua versão original, já previa a regulação desta actividade económica “através da delimitação das áreas de contenção absoluta e relativa e da definição de medidas de regulação, monitorização e fiscalização, no âmbito da revisão do Regulamento Municipal do Alojamento Local (RMAL)”, que está em curso. Ora, durante o processo de negociação, foram quantificadas essas zonas de contenção absoluta e relativa:
- as áreas de contenção absoluta, onde não podem ser atribuídos novos registos de Alojamento Local, correspondem a freguesias em que pelo menos 15% da habitação disponível está afecta ao AL;
- as áreas de contenção relativa, em que podem ser admitidas novas licenças dentro de determinadas condições, correspondem a freguesias em que pelo menos 5% da habitação disponível está afecta ao AL e também a bairros fora destas freguesias em que pelo menos 15% da habitação disponível está afecta ao AL.
Estas percentagens não são novas e já tinham sido definidas para a proposta de revisão do Regulamento Municipal de Alojamento Local (RMAL), tendo apenas sido integradas na Carta. Olhando para o panorama da cidade, estes rácios significam que Misericórdia, Santa Maria Maior, São Vicente, Santo António e Arroios ficariam a ser freguesias de contenção absoluta, enquanto que Alcântara, Estrela e Avenidas Novas ficam em contenção relativa – juntamente com 19 bairros específicos, como Santa Isabel, em Campo de Ourique, os Sapadores, na Penha de França, vários bairros em Belém e outros tantos na parte Oriental da cidade.
Agora, na reunião de Câmara de Outubro, o PS levou duas propostas que aprofundam esta regulamentação do Alojamento Local na cidade, desde logo:
- o estabelecimento de um rácio ideal para o conjunto da cidade de 5%, ou seja, que o Alojamento Local em Lisboa não possa superar 5% da habitação disponível – este ponto foi aprovado por maioria, com os votos contra da coligação Novos Tempos (PSD/CDS);
- o compromisso de fazer uso dos instrumentos ao alcance do município, como a oposição à renovação dos registos, “de modo a permitir, por exemplo, que freguesias como Santa Maria Maior e Misericórdia, que actualmente atingem rácios, respetivamente de 71% e 47%, possam recuar para o limiar dos rácios de contenção que venham a ser estabelecido no RMAL” – este ponto foi aprovado por maioria, com os votos contra da coligação Novos Tempos (PSD/CDS) e a abstenção dos dois vereadores do PCP.
Estes dois pontos do PS vão ser introduzidos na Carta, aquando de uma nova revisão do documento que terá de ser feita depois desta reunião de dia 11 de Outubro.
Além destas propostas do socialistas, vão também ser encaixadas estas alterações, aprovadas por maioria também nesta reunião de Câmara de dia 11:
- o Livre conseguiu que, no âmbito do Programa Municipal Cooperativo, que está descrito na Carta, passe a constar a criação de linhas de financiamento específicas e garantias de crédito exclusivas para cooperativas, em articulação com o Governo, e também que seja testado um projecto-piloto de “cooperativas Intergeracionais” – aprovado por maioria, com os votos contra da coligação Novos Tempos (PSD/CDS);
- o Livre conseguiu ainda que seja criado um indicador de risco em caso de sismo para os edifícios habitacionais, dando cumprimento a uma proposta que o partido já tinha apresentado e aprovado em reunião de Câmara (e também na Assembleia da República). O Livre quer que a nova construção e a reabilitação urbana sejam concretizados tendo em conta o risco sísmico e tenha uma “ficha de resiliência sísmica” – aprovado por maioria, com os votos contra da coligação Novos Tempos (PSD/CDS);
- o PCP mostrou-se preocupado com o período de consulta pública da Carta Municipal de Habitação e quis garantir que decorre durante 60 dias. Os comunistas também quiseram fixar que este período de consulta pública integre “um conjunto de sessões temáticas, em modelo de fórum aberto, onde sejam divulgas e discutidas as diversas medidas, chamando os seus actores, promotores e destinatários” – aprovado por unanimidade;
- o PCP introduziu, por fim, uma nova medida na Carta: a elaboração de um “Estudo da Capacidade de Carga Turística de Lisboa”, em que seja feito um diagnóstico e avaliação dos impactos do turismo ao nível local, principalmente nas freguesias centrais de Lisboa. Esse estudo, que os comunistas tinham já aprovado numa proposta apresentada em reunião de Câmara em 2019, terá como objectivo “elaborar uma Carta do Turismo de Lisboa e introduzir um adequado conceito de Capacidade de Carga Turística, a desenvolver com o contributo de diversos serviços da Câmara de Lisboa, Universidades, Associações e outras organizações da sociedade civil”. “A Carta do Turismo de Lisboa constituirá o instrumento de suporte ao diagnóstico, planeamento e ordenamento da actividade turística na Cidade, nas diferentes escalas de planeamento urbano e será integrada em futura revisão do PDM, estabelecendo objectivos gerais e identificando condições ambientais, sociais, culturais e económicas de equilíbrio para as comunidades”, pode ler-se na descrição desta medida – aprovado por maioria, com os votos contra da coligação Novos Tempos (PSD/CDS);
Todas as alterações propostas pelo BE foram todas reprovadas. Uma das principais reivindicações dos bloquistas era acabar com as parcerias entre o município e privados para a construção de habitação para Renda Acessível, tendo tentado que todas as casas fossem públicas. Também o Cidadãos Por Lisboa (CPL) – que propôs suspender preventivamente a aprovação e licenciamento de novos hotéis e unidades de Alojamento Local nas Zonas de Prioridade de Habitação identificadas na Carta – não colheu votos favoráveis. O Livre, por seu lado, tentou criar um “Índice de Pressão Turística” para identificar áreas da cidade onde, devido a uma elevada pressão turística, fosse necessário restringir o Alojamento Local – mas a sua sugestão também acabou por ser chumbada. Por seu lado, os socialistas tentaram que, em zonas identificadas como de carência habitacional (ou seja, onde seja declarado que faltam casas a preços acessíveis), as operações urbanísticas de privados tivessem de ter uma parte dos fogos destinadas a habitação de renda acessível; em concreto, uma quota de 25% do total de fogos produzidos seriam vendidos a preço de construção ao município para este disponibilizar nos seus programas municipais. Mas o PS viu esta proposta rejeitada com com os votos contra dos Novos Tempos e a abstenção do PCP e BE.
Concluídas a discussão das novas alterações, a Carta Carta Municipal de Habitação (CMH) foi votada. O documento colheu os votos favoráveis da coligação Novos Tempos (PSD/CDS), os votos contra do BE e do Livre, e as abstenções do PS, PCP e Cidadãos Por Lisboa.
Aprovado, e agora?
Para a Vereadora Filipa Roseta, em declarações ao jornal Público, esta CMH “marca um momento inovador na história de Lisboa” e revela “uma ambição de construção pública apenas igualável ao PER”, o Plano Especial de Realojamento, lançado há 30 anos. Esta Carta “enquadrada num sistema municipal de habitação que se traduz em estímulos à oferta privada de habitação acessível e no redesenho de parcerias com o município, tais como as cooperativas e operações de maior escala”; e é “igualmente inovadora na definição de indicadores rigorosos e metas mensuráveis, em cada ano e medida a medida, que permitem que este compromisso político possa ser continuamente escrutinado ao longo deste mandato e dos próximos”. “Estamos contentes com esta aprovação, que resulta do esforço de consensualização alcançado com todas as forças políticas e que permite passar a carta para as mãos dos lisboetas para que possam formalmente pronunciar-se sobre a política de habitação da cidade”, concluiu a autarca responsável pela Habitação.
Num comunicado enviado às redacções, o BE explicou os quatro motivos pelos quais votou contra o documento: “1) A Carta Municipal de Habitação é totalmente liberal. Diz que se os promotores construírem muito, os preços baixam. Acontece que os estudos dizem que isso não é verdade. A nova construção é nos segmentos para ricos, visto que as casas caras são mais rentáveis para os promotores. Esta estratégia não irá reduzir o preço das habitações para as famílias de Lisboa; 2) Há uma aposta no Programa municipal de Renda Acessível em versão PPP, com benefícios para os privados. Este programa já falhou com Fernando Medina, não tendo produzido uma única casa desde 2017, e vai falhar com Carlos Moedas; 3) A CMH não prevê nenhuma forma de recuperar as casas perdidas para o negócio do Alojamento Local, apesar de haver freguesias que já ultrapassaram duas vezes ou mesmo três vezes o rácio previsto no regulamento; 4) O Programa de Renda Acessível 100% Público, criado pelo Bloco e o único que trouxe realmente 1400 casas para as pessoas, devia ser a grande aposta. No entanto, Moedas tem um preconceito ideológico com o seu sucesso.”
Por seu lado, também numa nota de imprensa, o PCP considera que a nova versão da Carta Municipal de Habitação “não traz alterações de fundo, face ao documento apresentado anteriormente, em particular no que respeita à resolução dos problemas da habitação”. “A CMH não prevê que a função social da habitação se concretize no caso das dezenas de milhar de casas vagas/devolutas existentes em Lisboa, mantendo-se, nesta nova versão, silenciosa relativamente a esta questão. Em contrapartida, atribui ao Subsídio Municipal ao Arrendamento uma dimensão que abre a porta ao risco de ela se tornar a medida central da política municipal de habitação – longe do caráter circunscrito e focado que deveria assumir – através de um mecanismo que impulsiona a subida das rendas, favorecendo, desta forma, a especulação”, escrevem os comunistas. “Os vereadores do PCP, não obstante as manifestas insuficiências e deficiências da proposta agora aprovada, não se opuseram a que a mesma seguisse para consulta pública, aguardando que essas lacunas e erros, que a tornam, em grande medida, ineficaz para a resolução do grave problema da habitação na cidade, possam vir a ser colmatadas, decorrente de uma ampla discussão pública e recolha de contributos.”
Quais os próximos passos? A disponibilização da Carta Municipal de Habitação para consulta pública, por um período de 60 dias e com sessões de discussão abertas à população, após a publicação do documento em Diário da República e no site da Câmara de Lisboa.