O Manual de Espaço Público da Câmara de Lisboa diz que, em ruas 30+bici, o estacionamento em espinha deve ser feito de marcha-atrás, pela segurança de quem circula de bicicleta. No entanto, em Alvalade, a Câmara decidiu ignorar as suas próprias orientações e alterar o sentido dos lugares.
Quem até há bem pouco tempo estacionava no lado direito das ruas José Duro e Marquesa de Alorna, no coração comercial de Alvalade, tinha de fazê-lo de marcha-atrás. Apesar de ser uma manobra mais demorada e mais exigente para o condutor, permitia que a janela deste ficasse virada para a rua e para o trânsito. Assim, no momento de sair, o condutor conseguia ver melhor os outros utilizadores que pudessem estar a circular na via, em particular ciclistas, pois ambas as ruas são de sentido único e designadas como 30+bici, incentivando a circulação de bicicletas.
Nas últimas semanas, contudo, o estacionamento nas ruas José Duro e Marquesa de Alorna regressou ao modelo original e mais comum na cidade: os automobilistas deixaram de precisar de fazer marcha-atrás para estacionar nos lugares oblíquos do lado direito destas duas ruas, passando a poder fazê-lo de frente. Uma manobra mais simples mas que, segundo o Manual de Espaço Público da Câmara de Lisboa, não é aconselhada em arruamentos que, por terem marcações 30+bici, também são percursos cicláveis. A alteração do modelo de estacionamento nestas duas ruas, decidida pela Câmara e executada pela EMEL, implicou as repintura das marcações dos lugares – um trabalho que foi feito de forma faseada para ter um baixo impacto no quotidiano da rua.
Mas, então, porque é que a Câmara fez esta alteração contra o seu próprio manual de regras e boas práticas? Recuemos ao início da história.
Boas práticas municipais e internacionais
Em meados de 2020, algumas ruas de Alvalade, nos quarteirões entre o Mercado Rio de Janeiro e a Avenida da Igreja, foram requalificadas com diversas medidas de acalmia: as áreas pedonais nos cruzamentos cresceram para proteger as passadeiras e melhorar a visibilidade dos peões durante os atravessamentos, a velocidade máxima foi reduzida para 30 km/h, foram criadas bolsas com árvores (que criam sombra e também ajudam a diminuir velocidades), e foram pintadas riscadas verdes no asfalto de algumas ruas, sugerindo trajectos seguros e confortáveis para bicicletas.
Essa requalificação, que abrangeu vários arruamentos, levou à alteração da lógica do estacionamento oblíquo onde passou a existir percursos cicláveis em via partilhada, ou seja, nas ruas que passaram a ser 30+bici. Assim, as ruas Acácio de Paiva e José d’Esaguy, como não foram marcadas como 30+bici, continuaram a ter a lógica habitual de estacionamento oblíquo – de frente. Já as ruas José Duro e Marquesa de Alorna, que passaram a 30+bici, tiveram a espinha de lugares invertida e os carros passaram a ter de estacionar de marcha-atrás.
Este desenho respeitava o Manual de Espaço Público de Lisboa, um documento de 2018 com todas as normas e recomendações que devem orientar as obras na cidade e que foi elaborado sob coordenação do então Vereador do Urbanismo, Manuel Salgado. Nas páginas 235 e 238, sobre estacionamento oblíquo em 45º e 60º, pode ler-se o seguinte:
“Quando contíguos a percursos cicláveis (faixa ciclável ou via partilhada) recomenda-se que esta tipologia de parqueamento seja redesenhada de modo a assegurar que o acesso ao estacionamento seja feito em marcha atrás e não de frente (estacionamento oblíquo invertido).”
– Manual de Espaço Público; CML, 2018
O Manual de Espaço Público de Lisboa acompanha as melhores práticas internacionais, sintetizando esse conhecimento em geometrias e desenhos de rua que fazem sentido no contexto da capital portuguesa. “Existe hoje um entendimento crescente de que as ruas não são apenas corredores de circulação viária mas que, acima de tudo, são espaços de suporte à vida urbana, matriz da construção da cidade e da cidadania. A rua não deve ser um local perigoso e de conflito entre diferentes modos de deslocação e transporte mas sim um espaço seguro e de partilha. Investir num espaço público de qualidade – bem projectado e bem construído – reforça a coesão social, atrai investimento e gera retorno económico para a cidade”, pode ler-se na introdução deste documento, que pretende ser algo “aberto e em construção”, ao invés de algo fechado e rígido.
O problema dos tubos de escape
A respeito do estacionamento em marcha-atrás, esta prática não é apenas recomendada no manual da Câmara de Lisboa mas também, por exemplo, pela American Automobile Association (AAA) e por outras figuras de especialidade. A explicação é simples – e pode ser encontrada neste artigo da Vox, de 2018: com a traseira do carro virada para a estrada, o condutor não consegue ver se há carros a circular, pois tem a sua visão bloqueada pelos lugares dos passageiros de trás ou por outros carros ao lado. Se um carro numa rua 30 km/h ainda é um objectivo visível, menor visibilidade terá uma bicicleta junto de um condutor estacionado e a iniciar manobra para sair do estacionamento.
Ou seja, se é certo que estacionar em marcha-atrás é uma manobra que demora mais tempo e é mais exigente, acaba por ter vantagens na saída para a segurança dos demais utilizadores da via, em particular para os mais vulneráveis – os utilizadores de bicicletas e trotinetas. Este é o motivo pelo qual a Câmara de Lisboa recomenda como boa prática o estacionamento em marcha-atrás nas ruas 30+bici e porque implementou essa configuração não só na José Duro e Marquesa de Alorna, em Alvalade, como na Avenida Guerra Junqueiro, no Areeiro, por exemplo.
No entanto, o estacionamento em marcha-atrás estava a causar algum desconforto aos comerciantes e utilizadores dessas duas ruas de Alvalade. Com essa posição, os carros ficavam com os tubos de escape voltados para os passeios, onde circulam peões e onde existem algumas esplanadas. Na Avenida Guerra Junqueiro, a situação é semelhante, mas, neste local, o estacionamento em espinha está em um lado da rua sem esplanadas e há uma pequena área verde a separá-lo da área pedonal.
O marcha-atrás
O pedido para alterar a lógica dos lugares nas ruas José Duro e Marquesa de Alorna surgiu da Assembleia Municipal, em Julho de 2021. Era uma das seis recomendações à Câmara que uma maioria de deputados municipais aprovou, na altura, na sequência de uma petição de 780 assinaturas a pedir o fim da exclusividade do estacionamento para residentes naqueles dois arruamentos. Da leitura do relatório da 8ª Comissão Permanente da Assembleia Municipal, que trata a questões de mobilidade, percebe-se que o tema do marcha-atrás para estacionar não foi central na discussão desta petição. Luís Ramos Costa e os restantes signatários mostravam-se mais preocupados com o “ridículo” de terem durante o dia “lugares vazios, deixados por moradores, e os mesmos não poderem ser ocupados por toda a gente que visita, trabalha e compra em Alvalade”, e deixavam a seguinte proposta: durante o dia, permitir a qualquer pessoa estacionar e, durante a noite, reservar todos os lugares aos moradores.
Foi na redação das recomendações da Assembleia à Câmara – tarefa que coube à deputada municipal do CDS Margarida Bentes Penedo – que o assunto do marcha-atrás ganhou uma maior centralidade. Recomenda-se que a autarquia “inverta o modelo de estacionamento na Rua Marquesa de Alorna, regressando à versão anterior e evitando que os escapes dos automóveis fiquem virados para as esplanadas. O mesmo será recomendado para os outros arruamentos de características semelhantes”, era dito no ponto seis.
Numa Assembleia de Freguesia, a 23 de Abril deste ano, o actual Presidente da Junta de Alvalade, José Amaral Lopes (PSD), tinha revelado a sua concordância quer com a principal vontade dos peticionários, quer com a alteração do sentido dos lugares de estacionamento. “Eu próprio disse aos técnicos que dois anos para decidir alterar – não é fazer obras de profundidade – não é aceitável”, comentou o autarca de Alvalade, que sucedeu ao socialista José António Barbosa nas eleições de Outubro de 2021. “Até a própria técnica responsável pelo projecto anterior disse que nós tínhamos razão e que o projecto [do estacionamento em marcha-atrás] não tinha funcionado.”
A pergunta que fica no final deste artigo: o que é mais importante, o conforto de peões e utilizadores das esplanadas, ou o conforto e segurança de quem circula na via, em particular dos mais vulneráveis Em Outubro de 2023, a Câmara de Lisboa anunciou 58 novos quilómetros de rede 30+bici.