Crítica.
A peça de teatro “Diários de Uma Bicicleta” coloca-nos na pele e nos pés dos estafetas de entrega de comida, através do nosso telemóvel e de um peddy-paper que nos conduz por três monólogos intensos. Durante uma hora e meia, somos confrontados com a dura realidade destes trabalhadores, uma realidade precária e, muitas vezes, desumana.
No jornalismo, tentamos muitas vezes colocar em palavras e imagens não só factos como também sensações. Procuramos transmitir ao leitor a perspectiva do jornalista em relação a uma determinada realidade, tentando que o leitor compreenda essa actualidade da forma como nós a presenciámos. Não estamos a falar de dramatizar ou de adulterar factos, mas apenas de transpor aquilo que nos contaram ou que vimos. E, claro, não estamos a falar de realidades banais ou, se quisermos fúteis, mas de situações complexas e, por isso, também complexas de relatar.
Ao longo deste Verão, dedicámo-nos a perceber a precariedade por detrás da profissão de estafeta de comida, através de plataformas como a Uber Eats, a Glovo e a Bolt Food, numa altura em que se fala cada vez mais das questões de imigração. Começámos em Lisboa, onde sentimos a barreira linguística e o medo de falar de alguns estafetas; e rumámos depois a Coimbra e ao Porto, para conversar com duas pessoas, dois brasileiros cuja primeira actividade em Portugal foi com entregas. O artigo que vamos publicar em breve, na nossa edição física, vai falar desta realidade de baixos rendimentos, horas de trabalho a fio, famílias separadas, fraca segurança social, etc. Vai ser o resultado de algumas entrevistas e de vários testemunhos a primeira pessoa. É um bom artigo; acima de tudo, é um artigo importante. Mas, talvez, não seja um artigo capaz de nos provocar aquele murro no estômago. De nos despertar ao ponto de pensarmos duas vezes na próxima vez que pensarmos mandar vir algo. Porquê? Porque é difícil um texto conseguirmos colocar-nos na pele do outro como uma peça de teatro onde somos público mas também participantes.
Diários de Uma Bicicleta é uma peça de teatro e simultaneamente um peddy-paper sobre estafetas de entrega de comida. A peça foi criada pela Lobby Teatro, uma companhia de teatro focada em artistas emergentes e diversas, e aliadas a questões feministas e anti-racistas, e integrada na programação do Festival Todos, que decorreu no início de Setembro na freguesia de Arroios. Joana Brito Silva, co-fundadora da Lobby Teatro, assumiu a direcção artística e Sandro William Junqueira fez os textos.
Apesar do nome, o foco de Diários de Uma Bicicleta não é a bicicleta, mas a precariedade que circula em duas rodas pela cidade de Lisboa, e que muitas vezes é invisibilizada e desumanizada pela tecnologia. Durante aproximadamente uma hora e meia, somos convidados a pegar no nosso telemóvel e a seguir as instruções que este nos dava, através de uma aplicação cuja ideia replicar a experiência de uma plataforma de entregas da perspectiva do estafeta.
De imediato, essa app atribui-nos um número – porque o que seria sermos mais que isso para ela – e recebemos a primeira tarefa. Uma vez concluída, temos outra tarefa e depois outra. Ao longo do percurso, que fazemos sempre em grupo com outros participantes, somos levados a desbloquear pequenos enigmas e trivias, mas também a realizar entregas. E é nesses momentos que sentimos algumas das frustrações e dificuldades dos estafetas, como moradas erradas e alteradas a meio da viagem, ou clientes impacientes e a ameaçar apresentar queixa se não nos despacharmos.
O peddy-paper assume, na peça de teatro, um carácter mais lúdico e interactivo. Serve para prender o público e ligar os três principais momentos-chave da peça: um aconteceu no Mercado de Arroios, outro nas traseiras de uma loja e o último numa garagem de automóveis. É a app que nos conduz para cada um destes locais, onde, em cada um deles, somos confrontados com uma história: primeiro, um estafeta imigrante que atravessou o mar desde o sul da Ásia; depois, uma mulher negra de espírito destemido; por fim, um estafeta brasileiro recém-chegado, que deixou sua família para trás. As três histórias são-nos entregues por três actores excepcionais – Eduardo Molina, Rute Rocha Ferreira e Gabriel Delfino Marques – e baseadas em entrevistas feitas por Joana e Sandro a estafetas reais. (Uma nota: nunca soubemos o nome das personagens que os três actores interpretaram, mostrando que os estafetas são apenas números e acentuando, assim, a sua desumanização.)
Coube essencialmente a Sandro o desafio de transformar esses testemunhos reais em monólogos que Eduardo, Rute e Gabriel depois entregaram ao público. O surpreendente foi como os textos, apesar de serem ficção, conseguiram parecer tão reais e tão completos. Todas as questões que encontrámos também no nosso trabalho jornalístico estão presentes nesta peça e surgem escritas de uma forma maravilhosa, em que todo o detalhe do texto conta. Eduardo, no Mercado de Arroios, falou da sua vinda para Portugal à procura de uma vida melhor e como as entregas foram, por não ser necessário falar português, a única forma de começar a fazer dinheiro. Tocou na questão do racismo (“é tudo a mesma espécie”, “andam a encher o ar de especiarias”), do alojamento em casas sobrelotadas (entrámos todos juntos numa arca frigorífica minúscula no piso subterrâneo do mercado, simulando um desses apartamentos), do trabalho à chuva e debaixo de outras condições ingratas, ou da insegurança rodoviária e incapacidade de a nossa voz valer perante um “Mercedes”.
O monólogo transmitido por Eduardo foi o mais duro dos três. No final, sentiu-se um desconforto partilhado por olhares e cabisbaixos entre todo o grupo. Apetecia ir dar um abraço ao “estafeta“, só que depois lembrávamos que ele era só um actor, que não valia a pena. O que realmente importaria era agir em relação aos muitos imigrantes que este monólogo representava. Mas o que poderíamos fazer? Não houve respostas e o nosso trajecto seguiu, a olhar para a aplicação para saber o destino seguinte, levando esse desconforto e essa impotência connosco.
O peddy-paper ajudou, no intervalo entre monólogos, a descomprimir um bocadinho e o segundo texto foi um pouco mais leve. Rute chegou com um pedido por entregar a uma tal Joana que nunca apareceu. “É sempre a mesma coisa”, terá dito – ou, se não disse (porque é difícil fixarmos todo o texto tal e qual como foi escrito), expressou corporalmente essa frustração. A atriz, de pele negra, falou de como a culpa é sempre de quem “está no fundo da cadeia alimentar”, do assédio que recebe enquanto mulher e do qual só se safa por ser firme e alguém capaz de fazer frente às adversidades que lhe colocam, e ainda dos contrastes sociais entre quem entrega e quem recebe a encomenda, como os condomínios fechados onde não deixam entrar de bicicleta e o cliente não se digna a vir à porta.
O último texto foi-nos dado numa garagem, onde Gabriel, de repente, aparece à procura de uma bicicleta para comprar. Tinha acabado de chegar a Lisboa e precisava de uma para começar a fazer entregas, para começar a fazer vida cá. Aqui ouvimos sobretudo sobre as dificuldades de arrancar numa cidade desconhecida, longe da família, que ficou para trás enquanto ele tenta criar as condições financeiras para que possam se reunir no futuro. O final termina com os três actores juntos e a repetição da frase: “Quem se lixa é quem está no fundo da cadeia alimentar.” É com esta ideia que ficamos no final. Chegam as palmas, e é nesse momento que os actores deixam as suas personagens.
Há um pequeno alívio, mas não dura: aquilo tudo, mesmo tendo sido apenas uma peça de teatro, é a realidade que está por toda a cidade de Lisboa. O trabalho de Joana, da Lobby Teatro, de Sandro e de todos os actores não foi criado com o propósito de ser um documentário ou um artigo jornalístico, mas acaba por nos aproximar de uma realidade com que nos cruzamos diariamente e cumpre a promessa de humanizar a rotina desses estafetas de entrega Esta peça de teatro/peddy-paper deixa bem claro como as plataformas prometeram um futuro confortável onde estafetas, chamados por aplicações, receberiam uma remuneração justa por entregas rápidas e seriam donos do teu tempo e liberdade, mas que não cumprem essa promessa idílica.
Infelizmente, Diários de Uma Bicicleta não vai ter mais sessões. Por ter estado integrada na programação do Festival Todos, a peça só teve duas exibições no dia 14 de Setembro, integrado no tal Festival Todos, mas seria fantástico haver mais sessões. Fica esse desejo. Até porque acho que muitas mais pessoas deveriam ter oportunidade de assistir.