Durante meses, dezenas de imigrantes pernoitaram no largo da Igreja dos Anjos, num cenário de espera interminável por respostas das autoridades competentes. Embora a situação tenha sido entretanto resolvida, Mariana Carneiro, activista da SOS Racismo, detalha nesta entrevista, gravada em Maio, a situação de emergência vivida naquele local.
![](https://lisboaparapessoas.pt/wp-content/uploads/2024/10/marianacarneiroanjos_01.jpg)
Mariana Carneiro é activista, comprometida com as causas sociais e antirracistas, sendo membro activa do SOS Racismo e de várias organizações de luta pela memória e justiça social. Licenciada em Sociologia do Trabalho pelo ISCSP da Universidade de Lisboa, com uma pós-graduação em Direito do Trabalho pela Universidade Lusíada, actualmente é mestranda em História Contemporânea na NOVA FCSH. As suas principais áreas de interesse incluem o colonialismo português, a resistência antifascista, o racismo e as questões de género.
No início deste ano, Mariana Carneiro transformou a Igreja dos Anjos, em Lisboa, no seu “escritório”, onde, diariamente, procurava apoiar imigrantes sem-abrigo que pernoitavam naquele local, aparentemente abandonados pelo Estado e deixados à mercê de “tubarões” que lhes exigiam dinheiro por todas as partes. Mariana foi uma das vozes mais críticas às alegadas tentativas de remoção forçada destas pessoas daquele local. Nesta entrevista, gravada em Maio, quando a situação nos Anjos atingia um dos seus piores momentos, Mariana explica a emergência vivida naquele espaço, agora já resolvida.
Nota: esta entrevista faz parte de uma grande reportagem que pode ser lida aqui.
Podes ler uma segunda parte desta entrevista, publicada em Dezembro, aqui.
Mariana, explica-nos o que se tem passado aqui.
Este espaço costuma ser procurado por pessoas sem abrigo. É natural porque há uma Igreja, há uma casa-de-banho aqui perto, os balneários são ali a caminho da Estefânia e também estão perto daqui, temos o Centro Social da Santa Casa da Misericórdia à nossa frente… E depois também pelo próprio espaço e pela infraestrutura que tem. Portanto, este espaço sempre foi procurado pelas comunidades sem abrigo, comunidades porque são muito díspares, muito diversas. Tem havido sempre uma atitude bastante complicada do lado do Executivo da Junta de Freguesia aqui de Arroios. Já houve várias tentativas de expulsar as pessoas que aqui estavam, sem que houvesse qualquer tipo de alternativa para elas. Por exemplo, em 2022, na altura, havia um grupo de 12 timorenses que eu estava a acompanhar – as pessoas que estão aqui são essencialmente de Timor, do Senegal e da Índia –, e houve uma tentativa de expulsão por parte da Junta, sem qualquer tipo de alternativa. Uma tentativa de limpeza, de varrer as pessoas deste espaço. O argumento é sempre o mesmo: são obras de qualificação. Existem sempre cartazes a anunciar uma grande obra, o espaço é completamente fechado, entaipado, e a seguir o espaço é reaberto sem que se veja obra nenhuma. É o que tem vindo a acontecer sucessivamente. Nesse momento especificamente plantaram umas buganvílias, mas foi a única coisa que se viu. Não percebi bem para onde é que foi o orçamento que se anunciou e para que foi aquele espalhafatos todo sobre a grande obra de beneficiação. Mas o que é certo é que a Junta tenta sempre limpar este espaço sem querer resolver de fundo a questão dos sem abrigo. Não é algo novo aqui ter sem abrigos na igreja. O que é que mudou este ano? Mudou a dimensão. Mudou a dimensão porque tivemos grande número de migrantes, nomeadamente do Senegal, que é o maior número que aqui está, mas também da Gâmbia, que pediram asilo em Portugal. Esse pedido de asilo foi recusado, foi considerado infundado, mas não houve depois acompanhamento em termos de alternativas de regularização.
Recusado por quem?
Pela AIMA, que veio herdar as tarefas do SEF. Qual é o problema? Primeiro, a AIMA tem uma herança pesadíssima de 400 mil processos pendentes de regularização e de pedidos de asilo. Tem um défice em termos financeiros e de recursos, que vem detrás e que se manteve. Todas as funções que transitaram para a AIMA exigem um reforço de meios, nomeadamente as funções que eram do ACM. As funções do ACM incluem o apoio à regularização e à integração; não é só uma questão burocrática de tratar dos processos, é também encaminhar as pessoas, integrá-las, etc. E a AIMA, neste caso, analisou os processos de pedido de asilo. Podemos discutir se a análise foi bem feita ou não – porque os processos, infelizmente, não são tão humanizados como deveriam ser e também não são conduzidos da melhor forma, porque não há recursos para isso –, mas a verdade é que a partir do momento em que estes pedidos foram considerados infundados, estas pessoas ficaram no limbo. Não têm direito a asilo, mas também ninguém se preocupou em arranjar outro meio de regularização, porque as pessoas já cá estão, têm currículos e experiências profissionais.
E não vão desaparecer por obra do Espírito Santo. E, como é óbvio, não vão voltar outra vez de piroga para o Senegal e para a Gâmbia, porque foi assim que eles vieram para Espanha, pelo Tenerife, e depois para Portugal. São pessoas que pagaram grandes somas para entrar numa piroga, num barco sem qualquer condição, com centenas de pessoas que viram as suas famílias e amigos a morrerem pelo caminho no Océano. E, portanto, não se pode esperar que, de repente, essas pessoas tenham condições de voltar para a sua terra, ou melhor, para o sítio de onde partiram, porque neste momento a sua terra é esta, é onde estão a tentar integrar.
O que acontece aqui é que, mais uma vez, houve várias intimidações por parte do Executivo da Junta de Freguesia, que teve cá, em Janeiro, a ameaçar os migrantes que tinham menos de 24 horas para abandonar este espaço, sem qualquer alternativa, portanto, que tinham que sair, caso contrário, a polícia viria retirá-los. Eu já estava aqui no terreno, nessa altura – estou aqui desde o final de Janeiro, início de Fevereiro, diariamente, a acompanhar os senegaleses, mas também o grupo que timorenses, que também já cá esteve e já saiu. E eu, nessa altura, contactei vários colectivos explicando o que estava a passar, de que havia uma tentativa de varrer as pessoas como se fossem lixo. Mobilizei várias pessoas e conseguimos impedir que esse processo avançasse. Entretanto, posteriormente, começaram a ser colocados novos cartazes, começámos a perceber que isto ia voltar à berra. Tivemos a garantia de que não iriam retirar estas pessoas sem que houvesse uma alternativa, nomeadamente por parte da Vereadora dos Direitos Sociais.
A verdade é que, uns tempos mais tarde, já em Abril, veio a PSP, encabeçada por quem lida com o processo das fronteiras, portanto pelos antigos inspectores do SEF. E houve aqui uma operação montada exatamente para tentar novamente essa limpeza. Essa operação não foi levada a cabo, porque os colectivos e os activistas mobilizaram-se novamente. As autoridades, nomeadamente a PSP, perceberam que isto não era caso de polícia, não era caso para expulsar pessoas. E foi montada uma task force, com estas tendas que vêem aqui e que são tendas onde estiveram elementos do NPISA, com a Santa Casa e a AIMA. Essa task force deixou de funcionar sem qualquer pré-aviso, não sei bem, e as tendas têm estado vazias já há muito tempo, mas não sei se continua a haver reuniões ou qualquer tipo de iniciativa entre estas três entidades.
Os colectivos, as associações, os activistas passaram a estar no terreno diariamente. Eu estou aqui, já estava antes, e continuei a estar. Estou aqui diariamente. Passei a trabalhar aqui, de portátil debaixo do braço. E, basicamente, o que nós fazemos aqui é: primeiro, encontrámos dentro do enquadramento legal existente outra forma de regularizar estas pessoas, dentro da lei de imigração, e avançámos com esses processos de pedido de regularização. A AIMA, de uma forma mais célere do que é costume, está a analisar esses processos e há agendamentos para o mês de Junho. Portanto, neste caso temos cerca de 60 pessoas aqui que são de nacionalidade senegalesa, gambiana e também da Mauritânia – duas pessoas –, que estão em processo de regularização. Ou seja, temos cerca de seis dezenas de pessoas em processo de regularização a aguardar uma entrevista com a AIMA, a aguardar que o seu processo seja analisado. A AIMA dará um parecer, terá a última palavra a dizer se estas pessoas têm direito ou não de aqui viver em condições de segurança e de sair desta clandestinidade, desta situação indigna em questão.
As pessoas têm algum apoio com a barreira linguística?
Desde que os colectivos entraram no terreno, nós temos tido sempre a exigência de que haja tradução na sua língua materna. Houve advogadas que, para o bono, se disponibilizaram para acompanhar as pessoas nas entrevistas feitas para esta task force, porque os migrantes têm direito a estar acompanhados pelo advogado. E a nossa preocupação foi que os direitos destas pessoas fossem devidamente respeitados. Foi isso que nós tentamos garantir aqui de uma forma completamente voluntária. Aquilo que eu me dedico mais aqui é na questão dos procedimentos e dos documentos de regularização dos migrantes sem abrigo. Faço os pedidos de regularização junto da AIMA, faço todos os esforços para que esse processo esteja, de facto, esteja bem encaminhado e para haja os documentos necessários, faço contactos com a Embaixada do Senegal, por exemplo, para que todas estas pessoas tenham um passaporte na mão, principalmente aquelas que não o tinham.
E, portanto, houve assim esforço colectivo entre os activistas, a AIMA, e até o envolvimento da Embaixada do Senegal para que estes processos fossem devidamente encaminhados. Há este apoio que é o apoio da regularização e e dos documentos, mas há outros apoios que temos vindo a prestar porque não têm vindo a ser salvaguardados pelas autoridades competentes, nomeadamente alimentação. Estas pessoas não têm uma refeição quente por dia garantida. É uma coisa esporádica e desestruturada. A Comunidade de Vida e Paz é quem está sinalizada para fazer o apoio alimentar aqui, mas faz de uma forma irregular e nem sempre tem comida para toda a gente, os horários não são consistentes e, portanto, há uma irregularidade que é complicada para a manutenção do bom estado de saúde. Há muitas associações que param aqui e que trazem coisas, mas é quando vem, quando calha: há dias em que vem, há dias em que não vem.
E nós garantimos que fosse assegurada uma refeição diária através da Cozinha dos Anjos. Basicamente uma associação cedeu o espaço e nós fazemos recolha de donativos em género e em dinheiro, para que seja possível ter os géneros para que as pessoas possam cozinhar. São os próprios migrantes que cozinham. Eles têm um orçamento apertadíssimo. Eles têm um euro por pessoa, por dia para cozinhar. São eles que fazem as compras e que gerem esse orçamento. Alimentam cerca de 120 pessoas porque alimentam não só este grupo, mas também todas as outras pessoas que vêm aqui pernoitar.
São os próprios migrantes que fazem tudo?
Sim, são os próprios migrantes. Há também activistas que estão dedicados especificamente a esta Cozinha, a dar apoio. Eu não sou uma delas. Mas, basicamente, é um grupo pequeno restrito de migrantes que se levanta de manhã, faz as compras com um euro por pessoa, carrega tudo lá para cima, cozinha, volta para baixo com os panelões, distribui por toda a gente que está aqui, e, por fim, vai lavar todos os panelões lá em cima. Eles fazem isto diariamente. São horas e horas de mobilização. São os próprios migrantes que estão a assegurar uma refeição quente diária por dia. Isso com o apoio dos activistas e das associações. Porquê? Porque as autoridades competentes não o fizeram.
Depois temos problemas sérios, sanitários, Temos grave problema aqui com a Junta de Freguesia, que também se recusa a ter horário alargado nos sanitários. Temos os sanitários hoje a fechar às quatro da tarde, sabendo que existem aqui dezenas de pessoas. Nem sequer nisto conseguimos que haja o mínimo de humanidade e dignidade. Temos também a questão do acesso à saúde. Têm o apoio dos Médicos do Mundo que vêm cá, mas que também não têm os meios materiais e os medicamentos suficientes. Encaminham São José ou para Alameda, onde eles não têm número de utente. Portanto, temos aqui uma data de problemáticas que decorrem todas de uma situação de indignidade em que eles vivem.
A cantina da Santa Casa é mesmo aqui em frente, mas eles não têm acesso, pois não?
Não há apoio nenhum da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Estas pessoas não podem usufruir dos serviços de apoio da Santa Casa, seja em termos de alojamento, seja em termos alimentares, seja ao nível de roupa. Está-lhes vedado esse acesso. A Santa Casa tem um problema: só quem é sinalizado pela Santa Casa pode ter acesso a esse apoio, e quem é sinalizado tem de ter autorização de residência no país e com morada em Lisboa.
Há um discurso que está a ser propalado, que é: não temos condições de acolhimento, portanto, estas pessoas não deviam vir cá. Isso é uma falácia gigantesca. Estas pessoas não vão desaparecer. Elas correram risco de vida ao vir para Portugal. Vir para cá foi uma decisão pensada e arriscada. Arriscaram a sua vida e vieram para cá. Estas pessoas têm profissões e têm qualificações que são importantes para o país. Em termos de economia, eu odeio sempre vir buscar este assunto, mas não há ninguém neste país que possa dizer que nós não precisamos dos imigrantes. Eles salvaguardam sectores económicos importantíssimos para o país. Temos um saldo demográfico assustador, e são os imigrantes neste país que equilibram o nosso saldo demográfico, que equilibram as nossas contas públicas. Toda a gente sabe que nós precisamos delas aqui. Elas têm direitos humanos e esses direitos não estão a ser salvaguardados, a sua dignidade não está a ser salvaguardada. Nós temos cantinas a funcionar com capacidade mas que não estão a dar a resposta.
Tivemos, quando foi da pandemia, vários centros de acolhimento de emergência abertos – o Casal Vistoso, o do Quartel de Santa Bárbara… – que foram necessários não só para os refugiados da Ucrânia (e nós devemos orgulhar-nos da resposta que demos a esses refugiados), mas utilizados antes disso, durante a pandemia, para dar condições de saúde sanitárias adequadas.. Porque não agora também? Porque razão é que já deixou de existir condições para alojar estas pessoas? Existem, existem condições, mas não existe a vontade política. Tivemos agora anúncios, nomeadamente do Presidente da Câmara de Lisboa, de que vai haver reforço financeiro e novas respostas. Isso já era preciso há muito tempo. Todas as associações, todos os técnicos no terreno, têm vindo a dizer que houve aumento exponencial de sem abrigos. Na cidade inteira, não é só aqui. Fala-se de 125%, outros falam noutros números, porque também é difícil de contabilizar, mas a verdade é que isso é inegável. Vemos aqui, vemos em Santa Apolónia, no Cais do Sodré, na Gare do Oriente. É impossível negar essa realidade. Como é que o orçamento camarário no que toca às respostas sociais não aumentou? E como é que nós tivemos respostas sociais temporárias de urgência que fecharam e que não deram lugar a alternativas? É inaceitável. Isto não é um problema de haver ou não resposta ou que estas pessoas deveriam estar ou não aqui por não termos condições para acolher. Nós temos condições, não queremos activá-las. E também nós não estamos a discutir se queremos ter cá imigrantes ou não, estamos a discutir é que tipo de condições é que queremos dar aos imigrantes que estão aqui.
As pessoas vêm para cá e ficam à espera que nós, imediatamente, tenham uma resposta para lhes dar. Não devia haver uma maior regulação ou controlo?
Porque é que as pessoas entram aqui de forma irregular? Porque não há meios seguros de entrar na Europa, no espaço Schengen. Porque é que as pessoas entram aqui e se vêm à mão de máfias? Porque é que as pessoas vêm alimentar os grandes patrões do Alentejo e noutras partes do país? Na verdade, as pessoas vão trabalhar para a agricultura e quem beneficia, quem beneficia do trabalho deles, são os grandes patrões portugueses. Há os intermediários, que são as empresas de trabalho temporário, de prestação de serviços agrícolas que os contratam. Mas o beneficiário final é o grande patronato português. O grande patronato português está a utilizar a mão de obra migrante. Os imigrantes timorenses, os imigrantes senegaleses… Eu vou convosco às casas que vocês quiserem no Alentejo, casas sobrelotadas com 15 pessoas por quarto, a ganhar menos que o salário mínimo. O contrato diz que é o salário mínimo, mas pagam-lhes apenas os dias que eles trabalham e é o patrão que decide em que dias é que eles trabalham. Porque se chove, não trabalha, não recebe, o que é totalmente ilegal.
Portanto, Portugal é um faroeste. As pessoas chegam aqui de forma irregular porque não há vias seguras de entrada no espaço Schengen, na Europa. E, portanto, as pessoas são obrigadas a pagar à cabeça e a vir com máfias. E, portanto, é o sistema que alimenta a irregularidade e a clandestinidade. E ela é muito útil para muitos sectores. É muito útil para os salários baixos neste país, é muito útil para a exploração laboral. Um migrante irregular, obviamente, não tem os direitos laborais que tem migrante com condições de regularidade. Nós precisamos de migrantes, só que há muita gente aqui que quer migrantes sem direitos nenhum. Há muitos interesses neste país que quer migrantes sem direitos. Isso prejudica-nos a todos, porque quando nós temos migrantes sem direitos, temos os salários a baixar, então nivelamos por baixo tudo. A partir do momento em que temos mão de obra escrava, que trabalha ao preço mais baixo, todos os outros trabalhadores de Portugal acabam por ser prejudicados.
Quando nós lutamos pelos direitos dos imigrantes, basicamente estamos a lutar pelos nossos direitos também. Esse é o problema. Estamos a lutar por estas pessoas, e por todas as pessoas que em Portugal não têm trabalho, ou têm mas ganham mal, ou não têm casa. Esta é uma luta de todos nós. É de todas nós, esta luta.
Os imigrantes com quem falámos diziam-nos muito que lhes bastava um NIF ou um número que os identificasse para conseguirem ser alguém aqui em Portugal para conseguirem um trabalho que lhes permitisse fazer o seu caminho. Porque é que é tão difícil esse NIF?
Para os cidadãos estrangeiros terem um NIF, é necessário ter um representante fiscal, alguém que se responsabilize pelo migrante. Nós fingimos, neste reino da hipocrisia, que isso é uma medida de segurança, mas não é nenhuma medida de segurança. Veja bem: uma empresa de trabalho temporário ou uma entidade colectiva pode ser o representante fiscal. Encontra em vários documentos de NIFs de migrantes neste país empresas que são criadas na hora, extintas na hora, com a burocracia toda facilitada, e que podem ser representantes fiscais.
As finanças não conseguem responsabilizar esses representantes por qualquer falha de pagamento de impostos. Eu sou representante fiscal de mais de 200 pessoas, migrantes timorenses. E sou representante fiscal, porque tínhamos um problema com os migrantes timorenses que não conseguiam ter número de contribuinte, e eu fui um meio de as pessoas que conseguiriam regularizar aqui. Um meio que até foi anunciado no Parlamento, até pela própria Ana Catarina Mendes, que disse que estava a ser resolvido na altura a questão dos timorenses e a questão do acesso ao número de contribuinte. Pois, eu dei um passo à frente para ser a responsável fiscal deles, e a custa disso é que eles têm em NIF. Mas isto é uma hipocrisia, porque um migrante chega a Portugal e vai ter que pagar ao prestador de serviços, à tal empresa de trabalho de prestação de serviços agrícolas do Alentejo, para lhe fazer número de contribuinte. Então, aparecem em Portugal, advogados, patrões e pessoas sem escrúpulos a pedir dinheiro para fazerem o NIF. Neste país, os migrantes têm que pagar todos os documentos.
Neste país, os migrantes chegam aqui e têm que pagar pelo NIF, porque têm que ter um representante fiscal que lhes pede dinheiro. Depois, para terem Segurança Social, eles não têm informação nem apoio. Há sempre alguém que se oferece para lhes fazer a Segurança Social se pagarem mais uns euros. Manifestação de Interesse, que é um pedido de autorização de residência, também não têm informação ou serviços que lhes dêem esse apoio, pagam outra vez. Pagam a advogados, pagam a pessoas sem escrúpulos. Os migrantes pagam para ter documentos. Os migrantes pagam, às vezes, para ter contrato de trabalho. É-lhes descontado no salário o seu alojamento… Pagam a todo tipo de pessoas e empresas que andam a lucrar com eles Há um negócio chorudo, gigantesco, de exploração de migrantes neste país, que é vergonhoso.
![](https://lisboaparapessoas.pt/wp-content/uploads/2024/10/marianacarneiroanjos_02.jpg)
O migrante chega aqui e cai num aquário de tubarões. E a lei laboral, a lei de imigração, sendo aplicada, se nós deixarmos de ser faroeste em que é permitido o abuso, nós aí começamos a ter condições de uma imigração regular, com garantias e com direitos, e que será bom para os migrantes, mas será bom para o país também, para a economia do país e para os trabalhadores todos deste país, porque estamos a nivelar direitos. Ao contrário do que dizem, Portugal não é nem de perto, nem de longe, o país com mais migrantes no espaço europeu. Estamos muito longe de outros países da Europa que têm uma percentagem muito mais elevada do número de migrantes na sua sociedade. Os imigrantes que chegam aqui e que são necessários ao nosso país, depois de passarem, muitos, por experiências altamente traumáticas para chegarem cá, querem trabalhar aqui, querem contribuir para o país. Mas obriga-los a toda uma teia burocrática infindável para se regularizar, a todo o tipo de obstáculos, a serem expostos a todo tipo de abuso, a todo tipo de exploração, não faz sentido. Isto não faz sentido.
É preciso alterar a lei da imigração, revê-la?
A lei da imigração pode ser sempre melhorada, claro. Mas há quem queira atacar agora a lei de imigração e dizer que o nosso problema é que temos uma lei muito permissiva. Nós não temos uma lei muito permissiva. Nós temos uma boa lei de imigração, que precisa de melhoramentos para que se assegurassem mais os direitos de imigrantes, mas que é uma boa lei. Mas quem diz que a lei está mal é porque quer destruí-la. Eu quero melhorá-la, eu quero imigração com condições aqui. Quero uma lei de imigração que seja respeitadora dos direitos humanos e que, ao mesmo tempo, também seja boa para o país. O que é bom para o país é a integração. O que é bom para o país é combater o abuso e a integração dos migrantes.
Nós temos aqui as tais cerca de seis dezenas de pessoas de que eu estava a falar, que estão aqui desde Fevereiro/Março, há três/quatro meses aqui em tendas e que pediram asilo, mas que esse asilo foi recusado e agora estão num processo de regularização.
Aqui, na Igreja dos Anjos, estão 60 pessoas aproximadamente?
Não, cerca de seis dezenas de pessoas são essas de que eu estou a falar, do Senegal, da Gâmbia e da Mauritânia, que chegaram há três/quatro meses. Temos outras que são em trânsito, são pessoas que, vendo aqui um ajuntamento de tendas, se vão juntando também. Sentem-se mais protegidas. Mas são pessoas com situações muito diferentes e com nacionalidades muito diferentes, algumas com a autorização de residência, já com o seu processo documental tudo pronto, mas que não encontram nenhuma solução por parte das autoridades portuguesas. São pessoas que estão mais em trânsito, portanto, não estão cá há três/quatro meses. Assim, aqui na Igreja dos Anjos há duas grandes comunidades: a tal comunidade de senegaleses, gambianos e mauritanos, que estão a aguardar o seu processo de regularização e que vieram para cá a pedir asilo; e há outros que são mais heterogéneos, com condições soluções documentais muito diferentes, mas que estão aqui de forma temporária, enquanto não conseguem encontrar outro tipo de apoio.
Então, quantas pessoas temos aqui?
Varia, mas já chegaram a ser 120. Agora não lhe posso dizer, porque todos os dias vai variando. O que é certo é que enquanto não tirarmos aqui o grosso, encontrando uma solução para estas cerca de 60 pessoas, é óbvio que isto vai ser pólo atractivo para mais gente.
Tantas pessoas para tão parcas instalações sanitárias…
A Junta de Freguesia tem vindo aqui para intimidar, de uma forma que eu não consigo perceber. A forma persecutória como a Junta de Freguesia tenha lidado com este espaço, eu não entendo. E há várias inverdades que são ditas na comunicação social e que são muito graves, são muito graves mesmo. A Junta chegou a alegar que os migrantes aqui não queriam que houvesse processos de lavagem, isso é mentira. Estas pessoas estão a auto-organizar-se para cozinhar todos os dias. Estas pessoas fazem processos de limpeza. Auto-organizamos para andar a recolher lixo neste espaço todo. Estas pessoas querem sanitários abertos e sentem-se completamente incomodadas por não terem espaços para urinar ou defecar. Como é que a Junta se diz preocupada com os direitos dos fregueses, se depois não garante que os balneários estejam abertos, que é uma medida logística tão simples e que garante que haja condições sanitárias para os migrantes e também para todas as pessoas que circulam neste espaço. Não há justificação para não serem criadas melhores condições sanitárias aqui. As casas-de-banho fecham às quatro da tarde. Às quatro e meia, está fechada. Quando há visitas aqui é para intimidar, não é para acompanhar ou integrar. Não há qualquer tipo de tentativa de melhorar as condições sanitárias aqui.
Tens passado aqui bastante tempo. Que histórias nos consegues contar?
Dessas 60 pessoas, do Senegal e da Gâmbia, tenho ouvido histórias de pura miséria nos países de origem. E as causas dessa miséria muitas vezes somos nós – somos nós, os países europeus, que temos culpa nisso. Por exemplo, temos muitos pescadores aqui, e esses pescadores foram altamente prejudicados pelos acordos que foram feitos entre o Senegal e a União Europeia, em que a pesca foi completamente capturada pelos grandes interesses, nomeadamente europeus, e os pequenos pescadores do Senegal ficaram sem meios de sobrevivência.
Nós secámos os meios de sobrevivência deles nos países de origem. As pessoas ficaram condenadas à miséria, e ainda achamos que elas não têm o direito de procurar uma vida digna. Estas pessoas meteram-se numa piroga, que é um barco de madeira, e tiveram no oceano no mínimo cinco dias. Às vezes, oito, nove, dez, onze dias. Viram pessoas a morrer ao seu lado, tiveram a conviver com cadáveres durante a viagem, ou atiraram-nos ao oceano. Houve alturas em que não souberam se iam sobreviver à viagem. Passaram por tempestades. Estamos a falar de crianças, de mulheres, e também de homens, sem condições, em barcos sobrelotados, que pagaram à cabeça para vir e que chegam aqui e são tratados desta forma. São pessoas que deviam estar a ter acompanhamento psicológico, inclusive. São pessoas altamente criativas, apesar de tudo. Temos aqui pessoas que cantam rap, que desenham, que jogam futebol… temos aqui um bocadinho de tudo. Estas pessoas têm sido um exemplo gigantesco de integração. Falamos de pessoas que se auto-organizam para cozinhar, que se auto-organizam para limpar este espaço, que participaram na manifestação do 25 de Abril com uma faixa própria, feita por eles, participaram no 1º de Maio e distribuíram panfletos. Estão a participar de futebol, aqui com o Relâmpago, com equipas daqui locais.
Eu sou uma mulher no meio de uma comunidade quase totalmente de homens, e nunca me senti insegura, nunca tive uma falta de respeito. Eu tenho aprendido de uma forma que nunca imaginei com estas pessoas, porque eu não sei se teria a capacidade de resiliência que elas têm. São pessoas que eu admiro profundamente, porque são constantemente mediatizadas, exploradas, sujeitas a todo tipo de mentiras. Tiveram aqui a extrema-direita a se dizer que eram indocumentadas, perigosas, criminosas. Vêm para aqui filmá-las, tirar-lhes fotografias, como se de um museu se tratasse. Estão permanentemente a ser intimidadas, permanentemente a ter a sua privacidade invadida. Para mim, tem sido uma lição de vida.
Por que não há mais mulheres e crianças aqui?
Bem, eu nunca conheci nenhuma criança aqui. Houve menores que apareceram desacompanhados também do Senegal e da Gâmbia e que foram imediatamente, quando sinalizados por nós, encaminhados para as autoridades competentes. Temos mulheres. Agora duas mulheres aqui a viver que não são da Senegal ou da Gâmbia, mas essencialmente uma brasileira e um portuguesa. Já houve acompanhamento pelas autoridades mas não houve uma possibilidade de haver uma resposta, e já me ultrapassa também, porque são problemas muito complexos. Mas a migração é essencialmente masculina. As mulheres vêm essencialmente para reagrupamento familiar, ou seja, as mulheres vêm quando os homens já estão cá regularizados e, então, as mulheres juntam-se.
O reagrupamento familiar é um processo que também é vergonhoso, e nós, país, precisamos tanto desse reagrupamento. Mas ele tem estado pendurado em águas de bacalhau, durante longos meses, exatamente por causa da inoperância do SEF. Mas as mulheres vêm essencialmente numa segunda vaga. Os homens arriscam mais, são os primeiros a vir e tentam ter as condições necessárias para depois trazer as suas famílias. Felizmente, já temos uma diversidade enorme nesta freguesia, nomeadamente nas escolas, com crianças de outras nacionalidades, o que é lindíssimo. Temos aqui, em Lisboa e na área metropolitana, experiências lindíssimas de integração entre as crianças, em que elas próprias têm um espírito de inclusão que é fabuloso. Neste espaço tem acontecido o mesmo, tem havido um esforço de integração incrível.
A AIMA tem sido vossa amiga?
Temos, de facto, conseguido trabalhar com a AIMA. Isso é uma vitória e deveria ser um precedente. Esta capacidade de a AIMA dialogar com os colectivos, com os ativistas, e de podermos fazer este trabalho conjunto. Acho que é importante realçar que a AIMA precisa, de facto, de recursos para poder cumprir as funções que lhe estão atribuídas. A AIMA precisa ter esses recursos, porque senão não vamos ter políticas de imigração humanizadas. E é preciso que as outras entidades, tanto a Santa Casa, como a Câmara e a Junta sejam chamadas à sua responsabilidade, nomeadamente habitacional. Como é que a gente como é que é possível continuarmos a ter responsáveis, a virem à televisão, a dizerem que isso é um problema, quando a solução está à mão, porque já foi feita?
Podes ler uma segunda parte desta entrevista, publicada em Dezembro, aqui.